A aus�ncia de Jo�o Cabral numa dedicat�ria a Luiz Guilherme Piva
Da poesia de Jo�o Cabral de Melo Neto se diz que � �rida, de linha reta, matem�tica. O poeta assim a constr�i: ele a lapida, lixa e p�e de p� em tijolos l�gicos. Quer "Dar a qualquer mat�ria/ a aritm�tica do metal".
Mas n�o o consegue totalmente. E isso o incomoda. A incapacidade de erigir sua obra inteiramente c�bica e seca � uma aus�ncia que ele carrega.
V�-se aos estudos, �s declara��es do poeta sobre suas refer�ncias. L� est�o Le Corbusier e a casa s� moradia. Mondrian e as linhas cubistas. O engenheiro e poeta Joaquim Cardoso. � o que ele pretende de sua poesia. A concis�o. O ponto exato. A propor��o �urea. O poema forjado na bigorna.
Acervo Pessoal | ||
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Dedicat�ria de Jo�o Cabral de Melo Neto em seu livro "Obra Completa" a Luiz Guilherme Piva, em 1994 |
Mas n�o consegue. As curvas, a m�sica, a dan�a entopem-lhe as molduras, transbordam o arame farpado, esparramam-se. Como o canavial ao vento, que desrespeita a geometria da cidade e enche de gente as ruas e as pra�as. A multid�o � que � a imagem do canavial.
O mais importante � que o canavial tem g�nero e forma: "� como um grande len�ol/ sem dobras e sem bainha;/ penugem de mo�a ao sol,/ roupa lavada estendida". Eis o ponto: � a mulher que faz desbordar as dimens�es que o poeta quer conter. Seu corpo recurva a paisagem retil�nea.
E assim Jo�o Cabral, talvez na contram�o do que pretendia, se aproxima do desenho de Niemeyer, cuja medida � o corpo feminino. Ali�s, � interessante registrar que Joaquim Cardoso foi o calculista das obras de Niemeyer.
A mulher � a casa ("a vontade de corr�-la/ por dentro, de visit�-la"), e isso p�e o poeta em conceito oposto aos de Le Corbusier e Gerrit Rietveld, cuja proximidade sua obra evoca.
A mulher � o mar ("o dom de se derramar/ que as �guas faz femininas"), o fogo da dan�arina ("gestos das folhas do fogo,/ de seu cabelo, sua l�ngua") e a voz ("fresca e clara, como se/ telefonasses despida"). Mar, fogo e som n�o cabem em esquadros.
Mulher que ele v� "numa gaiola", tendo a assedi�-la um p�ssaro –que � o resto do universo que com a gaiola faz divisa–, porque sem ela ele se sente em um c�rcere, embora s� lhe falte o espa�o m�nimo que a mulher habita –ou que a veste ("de uma gaiola vestida").
O universo, o p�ssaro, � Jo�o Cabral, que se sente enjaulado por n�o tirar a mulher da gaiola e incorpor�-la a seu dom�nio, mesmo tendo domado o mundo com sua r�gua. Ela est� fora das paredes de pau a pique, de cimento e cal, de argila e pedra de seu verso –e por isso ele se incompleta, se incomoda.
� essa incompletude que o define. O poema "Uma Faca s� L�mina" � sua confiss�o, est� enterrado em seu corpo o peso da aus�ncia, a avidez por algo que n�o se obt�m: "Seja bala, rel�gio,/ ou a l�mina col�rica,/ � contudo uma aus�ncia/ o que esse homem leva".
� isso o que est� entredito na dedicat�ria que ganhei do autor em seu livro "Obra Completa", de 1994, da editora Nova Aguilar. Na noite de aut�grafos, ao saber meu nome, ele se surpreendeu e escreveu: "Para o Piva, que tem a sorte de ser conhecido laconicamente, of. [oferece] o prolixo Jo�o Cabral de Melo Neto".
Ele est� insatisfeito por n�o ter obtido a concis�o que queria, a come�ar pelo pr�prio nome. Mas � mais do que o nome. � sua poesia e sua exist�ncia que est�o incompletas. A aus�ncia � sua marca. Nos poemas, a aus�ncia tem a forma da mulher, indom�vel e inalcan��vel. Na dedicat�ria, est� o lamento quanto ao nome longo, anticoncreto, quase parnasiano.
O curioso � que na noite do lan�amento eu tinha viajado e quem pegou o aut�grafo foi um amigo, que para tal se apresentou com meu nome.
Isso mesmo. A dedicat�ria � para mim. Mas eu estava ausente.
LUIZ GUILHERME PIVA, 54, economista e doutor em ci�ncia pol�tica pela USP, publicou "Ladrilhadores e Semeadores" (ed.34).
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