Quinze anos depois, filme "Lavoura Arcaica" ainda � corpo estranho
RESUMO Lan�ado em 2001, o aclamado longa de Luiz Fernando Carvalho afastava-se do realismo social ent�o predominante no cinema brasileiro para sondar, em chave barroca, mitos fundadores e pilares da civiliza��o, como autoridade, ordem e transgress�o. Os autores tra�am os contornos desse �vni audiovisual.
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Juliana Carneiro da Cunha, Selton Mello, Simone Spoladore e Caio Blat em cena do filme "Lavoura Arcaica", de Luiz Fernando Carvalho |
"O tempo � o maior tesouro de que um homem pode dispor. Embora inconsum�vel, o tempo � o nosso melhor alimento [...] Pois s� a justa medida do tempo d� a justa natureza das coisas." Era o que diziam ao filho os serm�es do pai.
Quando "Lavoura Arcaica", filme de Luiz Fernando Carvalho a partir da obra hom�nima de Raduan Nassar, estreou no pa�s, h� 15 anos, dizia-se que o tempo era seu tema e sua mat�ria.
"Lavoura" nascia em 2001 como um corpo estranho face ao cen�rio do cinema brasileiro de in�cio do s�culo, naquele momento marcado pelas est�ticas do realismo e pelo enfrentamento direto das quest�es sociais e urbanas nacionais em filmes como "O Invasor" (2001), "Cidade de Deus" (2002), "Carandiru" (2003), "�nibus 174" (2002) e "Not�cias de uma Guerra Particular" (1999) –que deram o tom do debate acerca do cinema do pa�s na imprensa e na academia.
Distante, por�m, de uma "verdade pedestre" (na express�o de Eduardo Coutinho, que tamb�m marcara a �poca com o seu "Edif�cio Master", de 2002), o primeiro longa-metragem de Carvalho, j� com vasta experi�ncia na televis�o, nascia com status de obra-prima e rara, angariando dezenas de pr�mios ao redor do mundo. Mais do que obra primeira de um diretor j� maduro, "Lavoura", em seu di�logo �ntimo com a literatura, nascia como �pera, afastando-se da fei��o mais apol�nea que, ressalvada a festa dos sentidos, prevalecia na fatura do romance.
Entre a ordem e a desordem, a lei e os afetos, a palavra e a imagem, Carvalho comp�s um estilo que reconhecia a diferen�a das mat�rias, transformando o tempo, a luz e a m�sica em personagens e se inclinando na dire��o de uma dic��o barroca.
Aqui, a desmesura e o excesso do protagonista Andr�, cujo mundo interior � colocado em primeiro plano, d�o o tom m�stico, m�tico e delirante, fazendo do barroco a pr�pria geometria do destino de seus personagens. Andr�, ser pr�-cultural, cuja h�bris e cujo desejo desafiam o tabu estruturador da cultura –o tabu do incesto–, retorna, como uma esp�cie de musgo, ao h�mus e ao �tero da terra depois da trag�dia.
No romance, tudo se conduz pelo relato de Andr�, o narrador que institui a sua pr�pria hist�ria. No filme, a sua fala em primeira pessoa se incorpora como voz over, locu��o que afirma seu tempo e lugar em rela��o ao presente de cada cena vis�vel. H� o tempo e a postura da voz do Andr� narrador, num futuro indefinido, e h� o tempo agitado do jovem Andr� em cena a compor e a observar, sempre de maneira convulsionada, o movimento da trag�dia familiar. Em contraponto, manifesta-se a polaridade maior: os serm�es do pai, figura da ordem, e os gestos da m�e, imagem do afeto.
No filme, a separa��o entre o jovem convulso e o narrador futuro ganha corpo em dois timbres distintos: em cena, no registro dram�tico, vale a dic��o exaltada do ator Selton Mello; na recapitula��o, a dic��o mais l�rica e melanc�lica que reconhecemos ser de Luiz Fernando Carvalho.
Essa cis�o torna incisiva a fei��o tr�gica de Andr�, quando desaba o mundo do "profeta de si mesmo" e ele abandona a casa, agonizante e ressentido. Ap�s o seu retorno, o contraste entre a eloqu�ncia inerte de Andr� e o sil�ncio explosivo de Ana, encarnada com visceralidade pela atriz Simone Spoladore, atinge seu �pice na coreografia transgressiva e muda da irm�, motor efetivo da trag�dia.
APOLO X DION�SIO
Na esteira da tens�o entre a ordem e a desordem, entre os ramos apol�neo e dionis�aco da fam�lia –estando o ramo dionis�aco, os "frutos podres", sempre � esquerda do pai–, a batalha entre afirma��o da vida e puls�o de morte articula o desfecho de "Lavoura Arcaica". Estamos diante do sacrif�cio de Ana, figura da do�ura e da transgress�o; do atavismo de Andr�, ser sem projeto, descomedido e regressivo; da dissolu��o da fam�lia e do colapso incontorn�vel da ordem paterna, antes seara da lei, da obedi�ncia e da justa medida das coisas.
Nessa �pera barroca, ou "opera mundi", encena��o de nosso inconsciente arcaico e patriarcal marcado pelo protagonismo da terra –nossas lavouras concretas e simb�licas–, estamos tamb�m diante da tem�tica do desengano. Mas n�o se trata aqui do desengano como desencanto ou desilus�o, nem de sua acep��o crist� como desesperan�a na salva��o.
Antes, em "Lavoura", trata-se de uma met�fora da completa dissolu��o do mundo, onde n�o h� nem mesmo espa�o para o luto. Pois se a maior dor � a dor do tempo, irrecuper�vel e finito, Andr�, ao final, assume a posi��o de um narrador como que morto, enterrado debaixo das folhas e sob as �rvores, como uma planta, no regozijo de um prazer tel�rico. Seus olhos, longe de serem "janelas da alma", s�o "caro�os repulsivos", no dizer de Raduan, ou a "porta do abismo".
Depois de "Lavoura", Luiz Fernando Carvalho deu continuidade a seu di�logo intenso e prof�cuo com a literatura brasileira, agora na televis�o, fazendo releituras, traduzindo, recriando e traindo obras de dimens�es m�ticas, tais quais "O romance d'A Pedra do Reino", de Ariano Suassuna (veiculada como "A Pedra do Reino", em 2007), "Dom Casmurro", de Machado de Assis (exibida como "Capitu", em 2008), e em breve "Dois Irm�os", de Milton Hatoum (prevista para o pr�ximo ano).
Os quatro romances, segundo o cr�tico Benedito Nunes, s�o obras-primas narradas na primeira pessoa do singular, cuja fun��o modelar e ordenadora emprestada do repert�rio b�blico e popular as vincularia ao terreno do mito.
Do popular ao erudito, da artesania � tecnologia, Luiz Fernando Carvalho tem transitado entre g�neros e tempos, misturando cinema, literatura, televis�o, f�bulas populares, poesia, circo, teatro, �pera e novelas de cavalaria. Nessa obra, em que n�o h� fronteiras demarcat�rias nem territ�rios inexplorados, as quest�es da origem, da fam�lia e de nossas tradi��es liter�rias e narrativas, arcaicas e modernas, t�m sido permanentemente reelaboradas.
Em "Lavoura", a terra, como a m�e, � o grande s�mbolo m�tico, na contram�o do naturalismo-realista que pautou com tanta �nfase o cinema brasileiro do in�cio dos anos 2000. "Lavoura" � em si mesmo um ritual, um orat�rio, uma liturgia. Passados 15 anos de sua estreia, o filme continua sendo um caso singular na hist�ria de nossa cinematografia, p�s retomada da produ��o (interrompida durante o governo Collor), dialogando com marcos modernos como "Terra em Transe" (1967), de Glauber Rocha, e "S�o Bernardo" (1972), de Leon Hirszman.
Tal como em "Lavoura", essas obras, de distintas formas, apresentam narradores agonizantes diante de um mundo e de uma ordem vigente na imin�ncia do colapso e da ru�na. Ao contr�rio do cinema brasileiro recente –como se v� em "Casa Grande" (2014), de Fellipe Barbosa, "O Som ao Redor" (2012), de Kleber Mendon�a Filho, ou "Que Horas Ela Volta?" (2014), de Anna Muylaert–, no filme de Carvalho estamos em outra chave que n�o o padr�o colonial da estrutura patriarcal brasileira, ancorada na clivagem entre as casas grandes e as senzalas.
Em "Lavoura", nosso problema � arcaico, da ordem do mito e das forma��es familiares afeitas a migra��es mais recentes. Trata-se assim de uma encena��o l�gubre e agon�stica da pr�pria ideia de cultura, com sua contraparte de destrui��o, implicada no embate entre tradi��o e transgress�o.
No �ltimo torneio, Andr� joga com a palavra do pai, como se o movimento do r�quiem familiar implicasse esse auscultar de novo a ordem do tempo que cabe ao ator Raul Cortez, pela �ltima vez, enunciar sobre a tela escura: "O tempo � o maior tesouro de que um homem pode dispor. Embora inconsum�vel, o tempo � o nosso melhor alimento [...] Pois s� a justa medida do tempo d� a justa natureza das coisas".
No estratagema do filme, tal repeti��o crepuscular, embora traga a aura de um saber contemplativo, universal e pleno de certezas, � barroca em sua natureza. Exibe a ambival�ncia sentenciosa do pai que, ao opor a regularidade natural das coisas ao desequil�brio tr�gico, deixa entrever, no terno conselho da experi�ncia, a palavra empenhada do poder e da ordem –que sucumbiram, junto com o pai, diante da desordem da vida.
ILANA FELDMAN, 37, doutora em cinema pela USP, � pesquisadora e cr�tica.
ISMAIL XAVIER, 69, te�rico, pesquisador de cinema e professor da USP, � autor de "O Olhar e a Cena" (Cosac Naify).
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