Um poeta no a�ougue rom�ntico do mundo contempor�neo
Goethe, que � da terra de Till Lindemann, disse certa vez que uma poesia que n�o nasceu para virar m�sica errou de profiss�o. Mesmo depois das grandes composi��es de Schubert, Schumann e Beethoven sobre poemas de Heine, Schiller e do pr�prio Goethe, a literatura continuou virando m�sica, tanto no Brasil de Chico e Caetano, quanto na Alemanha do vocalista da banda Rammstein, conforme se pode ver na poesia das colet�neas "Messer" (faca) e "In stillen N�chten" (em noites de calmaria).
Till Lindemann � filho da Alemanha Oriental e foi criado no campo. Seu pai era um conhecido autor de livros infantis, sua m�e, jornalista. Gitta, a m�e, chegou a declarar que Till lhe pedia para n�o frequentar o a�ougue de seus shows. Ela ia escondida. Numa carta a um jornal em que explica como � ser m�e de um roqueiro, Gitta diz que se n�o fosse m�e, com certeza gostaria de ser amiga do homem.
Nadador, Lindemann chegou a se classificar para a Olimp�ada de Moscou, mas foi impedido de competir por sair do hotel no Campeonato Mundial Juvenil em Floren�a, dois anos antes, para providenciar adesivos "hostis ao proletariado" com colegas ocidentais. Tanto em sua m�sica quanto em sua poesia � poss�vel perceber que ele foi nadador, caso de "Seemann" (marujo) ou de "Feuer und Wasser" (fogo e �gua), na qual seu personagem, depois de tentar capturar uma "sereia" que nada melhor do que ele, acaba queimando na �gua porque fogo e �gua n�o se misturam. A can��o tem elementos do poema cl�ssico "O Mergulhador" de Schiller. E as refer�ncias eruditas n�o param por a�. "Rosenrot" � uma adapta��o de "Rosa na Charneca", do Goethe que abre o presente ensaio e "Mein Herz brennt" (meu cora��o em chamas) lembra o "Homem de Areia" de E.T.A. Hoffmann.
As leituras de Lindemann continuam no s�culo 20e "Haifisch" (tubar�o) cita o "Mackie Messer" de Brecht. Mais contemporaneamente "Du riechst so gut" (tu cheiras t�o bem) homenageia o romance "O Perfume", de Patrick S�sskind. "Ich tu dir weh" (eu te machuco) insinua "American Psycho" e foi considerada perigosa para os jovens pelas institui��es respons�veis na Alemanha.
Uma les�o fez Lindemann abandonar a carreira de nadador e estudar artesanato. O m�sico nasceu ainda na Alemanha Oriental, como baterista da banda punk First Arsch. Quando encontrou Richard Kruspe, este o considerou o parceiro ideal para fundar a banda Rammstein, junto com Oliver Riedel e Christoph Schneider. Pouco mais tarde se juntaram ao grupo o guitarrista Paul Landers e o tecladista Christian Lorenz.
Aurelien Glabas - 7.jul.13/Flickr | ||
Till Lindemann, vocalista do Rammstein, em show em Nancy em 2013 |
Aos 22 anos, Lindemann teve sua primeira filha e a criou sozinho por sete anos; a mo�a � homenageada em v�rios de seus poemas, sobretudo na colet�nea "Messer". J� perguntaram ao pai o que suas filhas pensavam de uma can��o sua que louva o aborto. Ele respondeu que as meninas o conhecem, n�o se chocam e se vingam dele o bastante ouvindo Coldplay. Em 2015, Till se juntou ao m�sico sueco Peter T�gtren e formou a banda Lindemann. Ele j� cantou David Bowie em vers�es peculiares e a gravadora Roadrunner Records o elegeu entre os 50 melhores l�deres de banda de metal de todos os tempos.
GRANDES TEMAS
Atento � barb�rie do mundo contempor�neo, Till Lindemann cantou o canibal alem�o que devorou sua v�tima partir do p�nis em "Mein Teil" (meu membro) e o austr�aco que sequestrou a pr�pria filha durante 24 anos no por�o de casa, engravidando-a sete vezes, em "Wiener Blut" (sangue vienense). Mas se canta o incesto em "Spiel mit mir" (brinca comigo) e a necrofilia em "Heirate mich" (casa comigo), comp�s um disco inteiro para mostrar que o afeto � a �nica coisa que vale a pena nesta vida: "Herzeleid" (mal do cora��o).
Lindemann d� voz aos marginais e criminosos em sua poesia e sabe que eles burlam mais a ordem do que os sistemas constitu�dos da pol�tica. At� as can��es mais panflet�rias como "Amerika", que insinua uma farsa na visita � Lua e povoa os versos de refer�ncias a Mickey e Coca-Cola, s�o consistentes. Lindemann conquistou o mundo com seu metal industrial e chegou inclusive ao Brasil, onde � divulgado e idolatrado em p�ginas como Poeta campon�s dos olhos tristes, ep�teto pelo qual o roqueiro passou a ser conhecido entre seus f�s tupiniquins.
No videoclipe de "Sonne" (sol), can��o composta para os irm�os Klitschko, boxeadores, os integrantes da banda viram mineiros animados por uma Branca de Neve gigantesca, exigente e que cheira coca�na de glitter; cheia de manias, ela mostra aos mo�os que d� trabalho, apesar das recompensas sexuais concedidas. � maneira de "A Intrusa" de Borges, os roqueiros tentam dar cabo dela, mas percebem que ela � o sol kitsch de suas vidas.
Till Lindemann brincou com os signos do nazismo –Anselm Kiefer tamb�m o fez– e aborda constantemente a rela��o com o maligno. O fil�sofo Zizek chegou a dizer que, assim como Charlie Chaplin faz Hitler dizer apenas Apfelstrudel e Wiener Schnitzel em seus resmungos de "O Grande Ditador", Rammstein sabota a utopia fascista de modo obsceno. O Lindemann que se fere nos palcos pode muito bem se vestir de mulher e se chicotear nas costas como se fosse Van Gogh cortando a orelha, sangrando aos montes, mais dilacerado que Marina Abramovic, e depois brincar com fogo para cauterizar suas feridas. Ou revelar debaixo do sobretudo um cintur�o de explosivos na m�sica "Zerst�ren" (destruir), especulando com o medo de seus f�s e perguntando � religi�o e ao mundo se eles s�o capazes mesmo de aguentar tanto caos e tanta viol�ncia sem sentir nem sofrer; e o homem-bomba aciona os explosivos.
Lindemann exp�e as v�sceras da sociedade como uma esp�cie de Adriana Varej�o do palco, � o artista numa grande conversa rom�ntica com o barroco em meio � balb�rdia do a�ougue contempor�neo. � o que ali�s me fez citar Rammstein em "A Casa Cai". "Stein um Stein" (pedra a pedra) poderia servir de trilha sonora para o romance; al�m da constru��o, � mais uma mulher amada aprisionada em seu lar enquanto o amor acaba. A can��o "F�hre mich" (conduza-me), ali�s, abre a primeira parte do filme "Ninfoman�aca", de Lars von Trier.
Numa profiss�o de f� a Santo Agostinho, que invocou a Deus que o tornasse casto, mas por favor que n�o tivesse pressa, Lindemann pede que Deus n�o o transforme em anjo na can��o "Engel", lembrando tamb�m "Asas do Desejo", de Wim Wenders. O flerte com a arte continua nas capas dos discos da banda: a de "Liebe ist f�r alle da" (o amor � para todos, 2009) � um projeto fotogr�fico inspirado numa pintura de Rembrandt que termina parecendo uma santa ceia soturna.
O pr�prio Till Lindemann j� foi ator e artista pl�stico. O m�sico, o poeta, o artista parecem buscar a obra de arte total, transformando seu pr�prio corpo em mat�ria, e levando Wagner, com quem Lindemann tem tanto a ver, �s �ltimas consequ�ncias.
O POETA CAMPON�S
A carreira de poeta de Till Lindemann come�ou em 1991. "Messer" seria publicado em 2002 e a colet�nea "In stillen N�chten", em 2013.
"Messer" ainda est� mais pr�ximo das letras do Rammstein, "In stillen N�chten" j� se afasta um pouco das linhas da banda. Os versos mostram uma �ndole mais epigram�tica, mas a linguagem continua carregada de met�foras, romantismo sanguin�rio e realismo l�gubre. Os olhos permanecem fixos nos meandros arcaicos do ser humano, cortejam o decadentismo e o sexo.
O poeta aparece sempre processando seu sofrimento, escreve seus versos para sobreviver e se desloca romanticamente � descri��o da natureza, passeando no cemit�rio quando fala de amor. �s vezes ele assume o exerc�cio da viol�ncia em insinua��es de sadismo e at� de incesto, mas um fot�grafo que documenta a fome na �frica n�o � necessariamente um adepto do colonialismo. E o pr�prio Lindemann caracteriza seus textos como "can��es de amor", talvez porque saiba que a flor do amor, como quer Guimar�es Rosa, tem muitos nomes. O eu l�rico, ademais, � quase sempre a v�tima, fatal ou carente, nas poesias de Lindemann, e o cora��o um dos s�mbolos mais importantes, tanto em sua m�sica quanto nos poemas. Mas Lindemann tamb�m gosta de "dor", que ali�s rima banalmente com cora��o em alem�o (Schmerz/Herz), do mesmo jeito que rima com amor em portugu�s –e com a mesma precariedade.
As palavras sangue e l�grimas tamb�m aparecem muito, assim como alma. Nos momentos menos auspiciosos da poesia os sutis punhais de Borges viram fac�es de a�ougueiro bem literais.
O fogo diminui e deixa de ser onipresente em "In stillen N�chten", mas ainda aparece em poemas como "O experimento". O sexo continua dominante, literal ou metaforicamente. Ele desencadeia tudo, mas desemboca sempre no nada da desilus�o. A viol�ncia n�o � triunfal, se envergonha, surge da precariedade, do desespero e muitas vezes acaba em autoflagela��o.
Os versos s�o sint�ticos, as baladas breves e boas e rima � buscada com denodo. A com�dia de um gesto vira trag�dia na linha seguinte. O vocabul�rio e a tem�tica vai dos irm�os Grimm e do naturalismo de corpos autopsiados � la Gottfried Benn ao jarg�o do vendedor ambulante de Berlim. O eu l�rico abissal e sens�vel de Till Lindemann, esse Dion�sio das sombras, � capaz de mergulhar na melancolia como poucos.
ALGUNS POEMAS DE TILL LINDEMANN
(traduzidos pelo autor)
Amor
Em noites de calmaria um homem chora
por que pode se lembrar a toda hora
Carne
Encontrei carne no jardim
Mas era s� uma pedra
N�o se podia comer
Quebrei vidra�as com ela
Encontrei carne no p�tio
Ela rolava pelo ch�o
Quis bater nela
Correu de supet�o
Encontrei carne na cama
Ela tinha um rosto
Pensei que fosse amor
Foi s� desgosto
O experimento
Todo mundo parado
Todo mundo vidrado
Vejam, venham ver
A universidade
Em chamas arder
Deu errado
O experimento
E tudo arde
O estudante parado
Por protesto
Se segura no fogo sem alarde
S� fica o cimento
Quando cai o telhado
Se v� a tenda das estrelas
E � bonito v�-las
Tu n�o precisas brincar com o fogo
Se precisas de um pouco de calor
E o estudante
Em chamas num instante
Sim
Uma palavra r�pida o sim
fidelidade a ela eu fui jurar
e quando viajamos ao mar
ela se perdeu na areia e fim
Jamais
A� n�o h� lugar
a� n�o h� espa�o
tamb�m n�o h� quarto
pra ti pra mim pra sempre
Um olhar
Vis�o
vi s�o
a manh�
e n�o foi bonita
Spring - Saltita primavera
N�s nos esgueiramos na relva seca do ch�o
e um inseto a picou ent�o
entre borboletas coloridas
ela come�ou a saltitar � toda brida
sem vestido nem corpete por baixo
seus seios se embalavam acima e abaixo
Ent�o lhe perguntei no sussurro de um clamor
se ela podia por favor
fazer isso de novo
e entre borboletas coloridas
ela voltou a saltitar � toda brida
Rammstein faz show em S�o Paulo na quarta (7) no Maximus Festival.
MARCELO BACKES � escritor, tradutor e professor da Casa do Saber, doutor em german�stica e roman�stica pela Universidade de Freiburg, na Alemanha. Autor dos romances "A Casa Cai" e "O �ltimo Minuto" (Companhia das Letras).
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