O cora��o do M�xico est� na mesa, em sua heran�a gastron�mica
RESUMO Sede de eventos importantes da gastronomia internacional e com chefs cotados entre os melhores do mundo, o M�xico se orgulha de suas tradi��es culin�rias. Em busca de preserv�-las, entram na pauta as discuss�es sobre o necess�rio avan�o da industrializa��o dos alimentos e a globaliza��o dos h�bitos alimentares.
"Os l�bios de Olivia, bem no meio da mastiga��o, moviam-se devagar quase at� fechar, mas sem interromper totalmente a continuidade do movimento, que espregui�ava como n�o querendo deixar fugir um eco interior." Assim Italo Calvino (1923-85) descreve sua mulher em uma viagem ao M�xico.
O italiano, que dizia ser necess�rio engolir os pa�ses visitados, empregou palavras como "excessiva", "transbordante", "ousada" e "dissonante" para escrever sobre a culin�ria mexicana, centro das rela��es sociais naquele pa�s.
Ao mesmo tempo que atrai os olhares do mundo atento ao calend�rio gastron�mico –no m�s que vem a premia��o 50 Best America Latina volta � capital mexicana–, o M�xico � ainda um pa�s em que a comida de rua � integrada ao dia a dia de diversas classes sociais, e n�o uma moda passageira.
Enquanto essa gastronomia t�o particular e m�ltipla j� ultrapassou as fronteiras locais, ganha caldo, no M�xico contempor�neo, uma discuss�o sobre os embates entre tradi��o e modernidade.
Particular, por exemplo, � o "mole madre", um molho espesso e escuro, feito � base de ingredientes cuja combina��o soa improv�vel: chocolate, pimentas, especiarias, frutas, verduras. O chef Enrique Olvera, o mais celebrado de seu pa�s, serve o prato, pe�a de resist�ncia da cozinha mexicana, diariamente em seu restaurante, o Pujol, na Cidade do M�xico.
Por m�ltipla, entenda-se uma cozinha que s�o v�rias, como cabe a um pa�s geogr�fica e culturalmente variado –ainda que se apoie num trip� comum: o feij�o, a pimenta e o milho.
BIODIVERSIDADE
Dos tr�s, o milho � o produto que amarra a culin�ria mexicana. "H� tipos, sabores e cores diferentes de milho. Ele representa a biodiversidade do pa�s, � usado de formas distintas em diferentes regi�es, mas � o �nico elemento que une a cozinha mexicana", diz Alicia Gironella –octogen�ria pesquisadora, a grande dama do legado gastron�mico nacional, reconhecido pela Unesco como Patrim�nio Cultural Imaterial da Humanidade em 2010.
Num contexto mundial em que o cultivo de transg�nicos avan�a e as variedades aut�ctones recuam, o milho resiste no M�xico –assim como resiste a "milpa", sistema de cultivo pr�-colombiano em que milho, ab�bora e feij�es dividem o mesmo terreno, numa intera��o complementar e sustent�vel.
Nas palavras do bi�logo mexicano Jorge Larson, especializado em biodiversidade, "um dos exemplos mais ricos da rela��o do homem com a natureza � a domestica��o do milho para mant�-lo vivo". Ele v� no pa�s um movimento de conserva��o da natureza, no qual est�o envolvidos acad�micos, cientistas, cozinheiros e produtores.
Uma das consequ�ncias dessa articula��o foi o veto, por lei, do cultivo de transg�nicos no pa�s. Mas restou um paradoxo: "Conseguimos impedir a entrada de milho transg�nico para cultivo; mas para consumir e fazer 'tortillas', importamos milho transg�nico", explica a cozinheira mexicana Lourdes Hern�ndez Fuentes, que viveu em S�o Paulo nos anos 2000 e, em 2014, retornou a sua terra.
"Algo aconteceu com a comida. Fiquei muito surpresa na volta para o M�xico ao encontrar menos ingredientes. Antes havia muita variedade e produtos de temporada. A gente esperava a temporada do 'huitlacoche' [um fungo que nasce no milho, tratado como iguaria], agora voc� o encontra no supermercado o ano inteiro. Evidentemente deve ser de cultivo, menos saboroso", diz ela com nostalgia.
Para Laura Elena Corona, doutora em antropologia e coordenadora do livro "Comida, Cultura y Modernidad en M�xico" (Instituto Nacional de Antropologia e Hist�ria, sem tradu��o para o portugu�s), a cultura � din�mica, atualizando-se continuamente.
"N�o podemos falar de culturas, ingredientes, usos fixos. Mas h� elementos de resist�ncia, como essa conserva��o da rela��o com a terra e com a natureza –e o respeito ao milho � central nisso. O v�nculo com a comida se choca com a mentalidade industrial, que busca o m�ximo no tempo m�nimo."
GLOBALIZA��O
O empobrecimento das comunidades campesinas e o avan�o da vida urbana e a diminui��o do isolamento dos grupos ind�genas exp�s a tradi��o culin�ria mexicana � moderniza��o –da mesma forma que em outros pa�ses, via produtos industrializados, como o feij�o enlatado, e a comida r�pida, que prospera enquanto as mulheres entram no mercado de trabalho.
Ainda � poss�vel identificar, numa cozinha mexicana, instrumentos que remontam ao per�odo pr�-hisp�nico, caso do "molcajete", esp�cie de pil�o de pedra para fazer as densas "salsas", ou das panelas de pedra nas quais se preparam as "tortillas", sem as quais n�o se come.
"A comida industrializada n�o substitui por completo a de origem mesoamericana em nenhum �mbito: as elites podem apreciar as 'tortillas' feitas � m�o, as salsas de 'molcajete' e os pratos elaborados com ingredientes muito locais", escreveu Catharine Good Eshelman, da Escola Nacional de Antropologia e Hist�ria (Enah), em artigo publicado em "Comida, Cultura y Modernidad en M�xico".
Embora tratada como vil�, a industrializa��o parece inevit�vel num contexto de crescimento demogr�fico e urbaniza��o. "Apenas por meio de processos de transforma��o industrial � poss�vel preservar o alimento 'in natura' por um maior per�odo de tempo e garantir alimenta��o em quantidades suficientes para a popula��o mundial. Isso independentemente da sazonalidade, para localidades onde n�o h� agricultura, por exemplo", diz o presidente da Associa��o Brasileira das Ind�strias da Alimenta��o, Edmundo Klotz.
Lourdes Hern�ndez, contudo, percebe uma diferencia��o social nesse acesso. Para ela, a comida industrializada avan�a mais entre as camadas mais baixas. "A mis�ria � capaz de acabar com qualquer cultura", diz. "No M�xico, tudo se polarizou na cozinha: os restaurante famosos est�o muito caros para o que vendem, e a comida de rua, que fazia parte da sociabilidade de uma cidade que mantinha o orgulho dos bairros, hoje � improvisada, os locais n�o t�m �gua nem higiene e fazem cada vez menos pr�-preparo."
Ela cita com desgosto o crescente uso em seu pa�s de caldo industrializado ("que d� sensa��o de saciedade e um saborzinho meio defumado que polui o paladar"), a presen�a da gordura ("o grande simulador de sabor") e o consumo de refrigerante ("tudo � empurrado com Coca-Cola" –o M�xico se aproxima do l�der mundial de consumo de refrigerantes, os EUA).
FERRAMENTA
Para Enrique Olvera, o passado deve persistir como ferramenta criativa, e a tradi��o, como refer�ncia de sabor. "Para fazer algo pr�prio n�o � necess�rio fazer uma incurs�o em territ�rios nunca vistos, trabalhar com sabores completamente estranhos ou t�cnicas futuristas. Pode-se criar a partir do j� existente, que, filtrado pelo seu crivo, por seus fundamentos e sua sensibilidade, pode se converter em algo aut�ntico e at� inovador."
Como exemplo, vale citar os "escamoles" preparados por ele. No Pujol, as delicadas larvas de formiga consideradas o "caviar mexicano" s�o servidas sem interfer�ncia de outros sabores. Extra�das do solo, elas s�o brancas e de textura cremosa, sua apar�ncia lembra a de um gr�o de arroz.
Nas palavras do chef Alejandro Ruiz, da Casa Oaxaca, na cidade hom�nima, e um dos representantes da chamada "nova cozinha mexicana", tradi��o � a base da renova��o e ajuda a dizer ao mundo "quem somos e de onde viemos". "Em vez de perder as t�cnicas, por que n�o incorporar as novas?"
Enquanto na linha de frente da inova��o e da relev�ncia internacional est�o sobretudo chefs homens mexicanos, a cozinha mais familiar, do dia a dia, se concentra nas m�os de mulheres. Segundo Laura Elena Corona, elas continuam l�, nos bastidores.
"Os primeiros representantes da tradi��o das distintas cozinhas mexicanas s�o as cozinheiras. Elas n�o tiveram muita difus�o, como os chefs, mas muitas foram incorporadas por eles em suas cozinhas e t�m sido convidadas para eventos nos restaurantes", diz. "Para a maior parte do povo mexicano, n�o existe identidade com o nome desses chefs. As cozinheiras � que s�o as grandes donas da tradi��o."
A comida, diz a antrop�loga, "� a esfera mais ligada ao cora��o". "� o que nos forma." Se bem ressalte o contraste que existe entre as pr�ticas locais do comer e os novos padr�es de alimenta��o, Corona diz que, de tudo o que muda na cultura "o que demora mais tempo � a comida". Ao menos, ou sobretudo, a das festas, "que muda mais lentamente que a do dia a dia.
Na opini�o de Eshelman, � nos usos e significados da comida ritual que se revela a oposi��o arraigada, na hist�ria mexicana, a certos valores capitalistas. Para ela, a vida cerimonial constitui, "um campo de resist�ncia em rela��o �s imposi��es hist�ricas e ao exerc�cio do poder da modernidade".
"A comida � eficaz para gerar rela��es sociais, resguardar a autoridade pol�tica, criar grupos sociais, promover a prosperidade e o bem-estar, relacionar-se com entes sobrenaturais ou prevenir e at� curar alguma doen�a. S�o usos muito originais no M�xico moderno, antag�nicos ao modelo neoliberal e � cultura do consumismo", conclui.
FRONTEIRAS
Essa cozinha tradicional se restringe �s fronteiras do pa�s; mas h� um M�xico que viaja. N�o falamos do recorte "tex-mex", mais popularizado, da cozinha que se desenvolveu na fronteira com o Texas, combinou influ�ncias latino-americanas com ingredientes e costumes do sul dos EUA e se traduziu, em receitas mais americanizadas, de fast-food (os nachos fritos com cheddar, os burritos, "tortillas" crocantes de farinha de trigo, dobradas como canoa, com recheios diversos).
Consideremos os imigrantes mexicanos que cruzam essas fronteiras. Como quaisquer estrangeiros, procuram no novo destino a identidade que a comida proporciona e, portanto, criam mecanismos para obter produtos t�picos.
Ingredientes frescos, claro, nem sempre viajam bem, ou dependem de uma estrutura cara para seu transporte. A despeito das dificuldades, por�m, na opini�o de Olvera � poss�vel alcan�ar uma cozinha "� mexicana" fora do pa�s.
Em Nova York, exemplifica ele, a flor de ab�bora, um ingrediente favorito das mesas mexicanas, � proibitiva. "Ela sai a US$ 1 a unidade. Se eu uso 20 flores em uma receita, tenho de vender por US$ 40 [R$ 129] –no M�xico, custa 40 pesos [R$ 7]. Nesse sentido, n�o posso usar flores de ab�bora l�. Mas posso usar aspargos roxos e fazer uma 'salsa' verde com eles."
S�o varia��es em torno da debatida tradi��o –termo que �, paradoxalmente, atual, como nos recordam os espanh�is Andoni Luis Aduriz, um dos chefs-s�mbolo da vanguarda de seu pa�s, e Daniel Innerarity, fil�sofo. Assim escrevem em"Cocinar, Comer, Convivir":
"Antigamente, n�o tinha sentido definir a cozinha como 'tradicional', pois n�o era preciso distingui-la da 'nova cozinha'; o termo oposto nem existia, porque os costumes culin�rios estabelecidos n�o precisavam se afirmar diante de uma poss�vel amea�a. O conhecimento era transmitido de forma autom�tica, e as novas gera��es assumiam –e ao faz�-lo o reconheciam– aquilo que recebiam dos mais experientes. Naqueles tempos se falava simplesmente de cozinha, e o �nico termo no extremo oposto era 'mis�ria'."
LUIZA FECAROTTA, 35, � cr�tica de gastronomia da Folha; para seu texto foi ao M�xico a convite do Conselho de Promo��o Tur�stica do pa�s.
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