Karl Ove Knausgard, que vai � Flip, fala de sua obra autobiogr�fica
RESUMO Estrela da 14� Flip (de 29/6 a 3/7), Karl Ove Knausgard j� foi traduzido para mais de 20 idiomas. Aqui, ele fala da concep��o de "Minha Luta", de como a mem�ria se narra, de masculinidade e de outros temas que povoam os seis livros da s�rie, que s� na Noruega, pa�s de 5 milh�es de habitantes, vendeu 500 mil exemplares.
Foto Diego Padgurschi /Folhapress | ||
De tanto em tanto, com sorte, surge um autor que amplia as fronteiras do que chamamos romance. As �ltimas tr�s d�cadas foram ricas em escritores assim. Nos anos 1980, foi Haruki Murakami, com suas fantasias calejadas acerca de um Jap�o traumatizado. No in�cio da d�cada seguinte, o chileno Roberto Bola�o levou um vern�culo eletrizante � narrativa. No final dessa mesma d�cada, W. G. Sebald injetou intelig�ncia melanc�lica na recria��o ficcional da culpa alem� do p�s-Guerra e, no in�cio dos anos 2000, uma escritora italiana reclusa e dotada de humor feroz, Elena Ferrante, criou um mundo fict�cio t�o f�rtil quanto o de Jane Austen, mas dez vezes mais raivoso. E eis que estamos aqui, na segunda d�cada do s�culo 21, e ela � –e sem d�vida ser�– a d�cada de Karl Ove Knausgard.
Aos 39 anos, sentindo o pren�ncio da mortalidade e um desejo esmagador de "escrever algo excepcional", o escritor noruegu�s iniciou o que se tornaria um colosso. Em seis livros, "Minha Luta" � um megarromance proustiano sobre a mem�ria e a vida familiar; uma anamnese po�tica das texturas e dos terrores da inf�ncia e adolesc�ncia; um olhar inclemente para os meandros da mente de um homem agora distante daquele per�odo m�gico da vida, criando seus pr�prios filhos; o exorcismo de um pai apavorante e controlador.
N�o h� outro escritor como Knausgard e desde a primeira frase do livro –"Para o cora��o, a vida � simples: ele bate enquanto puder. E ent�o para."–, sabemos que estamos nas m�os de um mestre.
A fama conquistada com a s�rie autobiogr�fica tem levado o escritor, hoje com 47 anos, a lugares distantes do vilarejo sueco onde ele vive com sua mulher, a tamb�m escritora Lisa Bostrom Knausgard, e seus quatro filhos. Entre Vancouver e T�quio, conversamos sobre "Minha Luta", que no Brasil chega ao quarto tomo, "Uma Temporada no Escuro" [trad. Guilherme da Silva Braga, Companhia das Letras, 504 p�gs., R$ 59,90, em pr�-venda nas principais livrarias, previsto para 27/6].
O volume, em que narra suas primeiras tentativas de se tornar escritor, o trar� � Festa Liter�ria Internacional de Paraty, onde ele far� uma das tr�s mesas solo da programa��o, na sexta, 1�/7.
Foto Diego Padgurschi /Folhapress | ||
Folha - Em "A Ilha da Inf�ncia", terceiro livro de "Minha Luta", voc� escreve: "[...] em nossas cabe�as n�o apenas �ramos pessoas modernas da d�cada de 1970, mas nosso ambiente tamb�m era um ambiente moderno da d�cada de 1970. E nossos sentimentos, os sentimentos que corriam e permaneciam dentro de cada um de n�s nesses fins de tarde, eram sentimentos modernos, sem nenhuma outra hist�ria a n�o ser a nossa pr�pria. E para n�s, que �ramos crian�as, isso era o mesmo que n�o ter hist�ria. Tudo acontecia pela primeira vez." Dag Solstad escreveu sobre como � ser um noruegu�s moderno, uma vida que, com toda sua riqueza, parece desvinculada da hist�ria anterior –mas voc� descreve esse sentimento com clareza singular aqui. At� que ponto o desejo de registrar isso levou voc� a escrever essa s�rie?
Karl Ove Knausgard - Nunca me vi como um escritor moderno, nunca. Essa � uma hist�ria muito pessoal sobre minha vida pessoal. N�o sou um pensador. N�o sou fil�sofo. Esses livros s�o o oposto do pensamento. Quando escrevo, quero me mostrar inteligente e quero usar meu conhecimento para construir algo, mas isso � meio comum. Minha an�lise social pode se sustentar por uns minutos, mas, de fato, n�o tem o menor valor.
Aos 20 e poucos anos, eu era um estudante tentando escrever. Ent�o, l� pelos 26, 27, de repente vi que algo estava acontecendo com minha escrita –n�o sei por qu�. Foi como uma esp�cie de percep��o clara e repentina de algo que eu n�o tinha visto antes. Voc� se joga na escrita e de repente v� algo que n�o tinha enxergado. N�o � voc� mesmo; � outra coisa, uma combina��o do que voc� � e de algo anterior, da literatura. N�o � algo que se possa calcular ou criar. Tem que acontecer. Ent�o, para voltar � sua quest�o, se voc� escreve cegamente, se o faz por 3.600 p�ginas, aparecem muitos pontos cegos, sabe? E muitos padr�es. Acho que estou interessado na identidade, pessoal e nacional. Mas, se tento analisar isso, n�o acontece nada.
Por acaso, o protagonista de "Minha Luta" tem seu nome, escreveu os mesmos livros que voc�, cresceu na mesma cidade, nasceu no mesmo ano, � casado com a mesma mulher. Ele � filho do seu pai, uma das figuras mais importantes nessa obra. Como era seu pai?
Meu pai muda de livro para livro. Ele � um no primeiro livro, quando estava morrendo, e outro totalmente diferente no terceiro, aos olhos do meu eu de dez anos. Ele foi mudando ao longo de minha vida. Quando eu era crian�a, ele era muito intransigente, muito autorit�rio, agressivo e imprevis�vel. Ele ter sido imprevis�vel � a chave desse livro. Eu vivia tentando decifrar o estado de �nimo dele para poder agrad�-lo. Era como os filhos de viciados, tentando fazer as coisas ficarem ok para eles, eu fazia isso quando era crian�a. Eu o odiava e tinha muito medo dele. Essa foi minha inf�ncia.
Ent�o, quando eu tinha 16 anos e ele 40, ele se separou de minha m�e, come�ou a beber e mudou de personalidade. Acho que foi uma esp�cie de projeto de liberdade para ele. Quando eu era garoto, ele n�o tinha amigos, era muito solit�rio. Ent�o ele come�ou a beber e a ser soci�vel. E come�ou a beber muito. Li os di�rios dele, s�o de partir o cora��o. Ele tentou parar de beber e n�o conseguiu. Perdeu o emprego, perdeu tudo. Mudou para a casa da m�e, e foi a�, acho, que desistiu. Acho que foi um tipo de suic�dio lento. Ele passou dois anos com ela, bebendo sem parar, e morreu. Esse � o primeiro livro: a morte de meu pai. Eu o odiava e queria v�-lo morto, me lembro. Esse pensamento voltou para minha vida. Eu fui at� l� com meu irm�o. Era uma casa linda, muito burguesa. Quando chegamos l�, o lugar onde ele cresceu n�o existia mais. Parecia um antro de drogados, sujo de sangue, excrementos e urina.
Ele tinha quebrado a perna, mas n�o tinha ido ao hospital.
Sim. Quando fomos l�, eu chorei o tempo todo, chorei desde que entramos na casa. Esse � o primeiro livro, eu chorando e limpando. Eu percebi que era muito estranho para mim, porque eu pensava que o odiava, mas n�o. Era outra coisa que estava acontecendo, e esse foi o ponto de partida do livro.
Ele era um enigma para mim. Por que ele fez isso? Como ele acabou assim? Quando eu era garoto, ele era um homem respeitado, um professor muito bom. Depois de eu ter publicado esses livros, recebi cartas de colegas e amigos que diziam: "Voc� precisa saber: ele era brilhante. Era um homem bom". As pessoas o admiravam. Ele era um dem�nio em casa, mas tentei deslindar quem ele era para mim. Os livros s�o isso. Ele � a figura com quem me relaciono o tempo todo. A� eu mesmo me tornei pai e me vi gritando com meus filhos, ficando bravo com eles. Vi que ele deve ter sido como eu, um ser humano. Deve ter tido os mesmos sentimentos. Eu quis deixar minha fam�lia, eu era t�o frustrado. Pude me identificar com ele e escrever sobre ele.
Em "A Ilha da Inf�ncia", voc� descreve tiques que voc� e seu irm�o desenvolveram para indicar um ao outro o humor de seu pai. Voc� percebia que estava entrando nesse tipo de detalhe ao escrever o livro ou foi um daqueles padr�es que surgem quando escreve sem pensar?
Muitas coisas ali foram inconscientes. Ao escrever sobre meu pai, tive uma revela��o. Eu percebi que eu fui um garoto irritante. Eu era irritante. Eu n�o notava a din�mica, pensava que fosse algo est�tico: ele era bravo, eu era sua v�tima. Mas eu n�o era como ele queria que eu fosse. Isso s� vi depois. Algumas cenas s�o como um bal�: eu fa�o tal coisa, ele reage, eu reajo, ele reage. De repente estamos � beira da viol�ncia, e posso entender como chegamos �quele ponto.
De modo geral, o que a inf�ncia tem de fascinante para voc�?
Quando eu estava em casa, era quase como estar numa pris�o. Era um ambiente cheio de regras muito r�gidas, de proibi��es. Eu n�o podia preparar nenhum alimento. N�o podia cortar p�o. N�o podia fazer nada, usar nenhuma ferramenta, correr fora de casa. E fora, fora era a liberdade completa. Eram os anos 1970. Nos bosques havia turmas de crian�as correndo e nadando sem adultos por perto.
Esses dois aspectos est�o no livro e s�o da minha inf�ncia. E me fascinam. Mas acho que, de modo geral, na inf�ncia n�o se reflete sobre essas coisas, n�o se pensa tanto. � como se a vida fosse pura exist�ncia. Eu n�o tinha essa apreens�o direta do mundo, e vejo o mesmo nos meus filhos. Num dia longo de ver�o, s� eu estou ansioso para que o dia acabe e eu possa dormir. E que depois venha outra dia, para administrar as coisas. Eles est�o ali, e s�. Quase como os animais est�o no mundo. �s vezes, quando escrevo, penso que esse seja o sentido da vida. Existir.
Escrever o remete a essa exist�ncia n�o mediada?
Sim, ao escrever, de certo modo voc� anula o ego.
Mesmo que esteja escrevendo 3.600 p�ginas sobre voc� mesmo.
Seu ego n�o est� ali, mas voc� est� muito presente. � ir�nico. Ao escrever n�o estou na vida. Estou na escrita. � meu modo de vida.
Voc� menciona Proust no primeiro volume e volta a ele ao longo dos outros. Proust era obcecado pela mem�ria, como voc�. Mas me parece que voc� lida com a mem�ria de uma forma diferente de como ele faz. O que voc� diz sobre isso?
Acho que Proust foi o que me permitiu escrever meu primeiro livro. Eu o li aos 25, quando ele foi traduzido ao noruegu�s pela primeira vez. Nunca tinha lido nada assim. Aquele ver�o foi s� aquilo, ler Proust, a �nsia de estar naquele mundo. S� dois anos mais tarde comecei a escrever meu pr�prio romance e n�o pensei nem um pouco em Proust. Escrevi cerca de 700 p�ginas. Se olho para isso agora, n�o � Proust. � como um pl�gio dele.
A ideia da mem�ria, do que � construir um romance, o que � uma met�fora, tudo veio dele. Ent�o tentei fazer algo muito diferente. "Minha Luta" � mais como um livro anti-Proust. A obra dele � t�o elegante e sofisticada, ele compunha tudo t�o bem. � muito controlado. "Minha Luta" � corrido, uma correria para p�r tudo no papel. �s vezes penso que n�o devia ter feito assim. � minha vida, � o livro. Passei dois anos nele, talvez devesse ter passado outros tr�s, ou mais.
O quinto livro voc� escreveu muito r�pido. O sexto, voc� jogou boa parte fora e recome�ou. Como voc� se sentiu quando estava chegando ao fim, f�sica e mentalmente?
Eu escrevi o livro cinco em oito semanas. S�o mais de 500 p�ginas. Eu s� pensava naquilo. Em alguns dias, escrevia 15, 20 p�ginas. Era quase um exerc�cio f�sico. Mandei minha fam�lia viajar por uma semana e s� escrevi. Na base de cigarro e caf�. Mas era o final de um processo longo. N�o o reli, ent�o n�o sei bem o que est� nele. Mas acho que escrevi o livro que queria escrever aos 20 anos.
� meio inacredit�vel que aos 20 anos voc� fosse um mau escritor, como voc� diz no quinto livro, e como seus professores diziam quando voc� estudava literatura. A escrita � algo que se ensina?
Jon Fosse foi meu �nico professor de verdade. Ele n�o se deixa corromper e isso foi o que ele me ensinou, apenas sendo como �. Escrever � algo que se aprende sozinho. � preciso achar seu pr�prio caminho, isso n�o se ensina. Mas h� outras coisas que se pode ensinar, como Fosse fez comigo.
Qual � a vantagem de escrever sobre a juventude quando se est� deixando de ser jovem?
Eu queria que o quinto livro fosse sombrio, porque foi uma �poca terr�vel. Eu n�o tinha esperan�a alguma. Mas � de certa forma rom�ntico, uma celebra��o do que � ser livre sem saber. Mas � disso que n�o gosto no livro, ele n�o � verdadeiro. Havia algo que eu ambicionava naquele momento, e essa ambi��o � o motor do livro, acho. O motivo de ele ter sido escrito. Escrever esse livro –esses livros, o tr�s, o quatro e o cinco– foi como se eu fosse um ator. Eu tentei ser aquela pessoa, de verdade, e fingir que n�o sabia o que ia acontecer.
� um livro engra�ado porque a gente percebe que as coisas tenebrosas pelas quais passamos se tornam, passados 20 anos, c�micas. O livro quatro e o cinco, de certa forma, s�o sobre o fracasso e t�m uma estrutura similar, s�o bem diretos. N�o parece que haja neles a media��o daquela consci�ncia mais madura.
Por isso pude escrev�-los t�o r�pido. Depois do quinto, eu escrevi um livro horr�vel, que tive de jogar fora, e um ano depois veio o sexto. O quinto foi o �ltimo livro inocente. Eu escrevi o livro um e o dois, e quando o primeiro foi publicado, eu estava escrevendo o terceiro. Quando o terceiro saiu, eu escrevi o quarto. E o quarto estava em produ��o quando eu escrevi o quinto. O sexto... Eu conhecia a recep��o dos livros anteriores, e queria repetir aquilo, e foi terr�vel, foi falso.
Voc� deve ter tido que se isolar bastante da recep��o e de outras coisas que o pudessem distrair.
Eu fiz isso mesmo. Em parte a ideia era mesmo escrever muito r�pido, em um ano. Isso ajudou muito, ter esse prazo, eu tinha de cumprir. Eu determinava um n�mero de p�ginas por dia e ia. No livro cinco, como disse, chegaram a ser 20. Acho que foi o m�ximo que fiz. � quase fisicamente imposs�vel fazer mais, ao menos para mim. Foi dif�cil, mas ainda era divertido.
Deve dar uma esp�cie de barato tentar recuperar as emo��es do fracasso, do desejo –sentir alegria se torna mais dif�cil na meia-idade. Escrever sobre essas emo��es � o mesmo que sentir essas emo��es?
Escrever esses livros foi como fechar um ciclo. Quando eu recebi a tradu��o para o ingl�s, dei uma olhada e tinha tantas coisas de que eu j� n�o me lembrava, eu j� n�o sabia sobre que mem�rias eu havia escrito. Foi t�o esquisito.
Voc� n�o acha que a mem�ria imp�e sua narrativa? � medida que envelhecemos, o que contamos sobre n�s mesmos muda, h� novas mem�rias a incorporar, contamos uma nova hist�ria que encaixe com o que somos ou queremos ser.
� inevit�vel. Voc� muda, sua inf�ncia muda ao longo de sua vida. Acho muito interessante que o passado esteja em muta��o. N�o s� o pessoal, mas a hist�ria tamb�m. A guerra hoje nos parece diferente do que era h� 20 anos. O mesmo se d� com a inf�ncia, n�o existe um "assim foi". Se olho para meus filhos, penso que talvez aqueles cinco momentos ic�nicos para eles venham a ser aqueles em que eu os sacudi, ou gritei com eles. Talvez esses momentos definam sua vis�o da inf�ncia. E sei que houve mil dias, um milh�o deles, em que nada aconteceu.
Foto Diego Padgurschi /Folhapress |
Certamente ao escrever voc� tamb�m faz aflorar coisas que sabia sobre sua fam�lia sem perceber.
Sobre algumas coisas eu sei que j� havia pensado. Mas uma foi estranha. Eu comecei a beber aos 16 anos. Eu estava vivendo s� com meu pai. Ele estava come�ando a beber tamb�m. Nossas vidas eram bem separadas –eu bebia, ele bebia. �s vezes eu o flagrava –sabe quando voc� chega de fininho e invade o espa�o de outra pessoa sem que ela note? Ali estava meu pai, sentado, ouvindo m�sica e chorando. Eu nunca o tinha visto chorar. Naquele momento eu n�o entendi, agora que tenho a idade que ele tinha, sim. Ele se apaixonou, come�ou a beber, a vida dele estava mudando. Deve ter sido muito bom e muito duro. Naquele momento, eu n�o me identifiquei. Eu tamb�m estava come�ando a beber e a me apaixonar. Mas n�o nos identificamos por isso. Quando eu escrevi sobre isso, reconheci.
A masculinidade � um motivo recorrente na s�rie. Ela � uma m�scara social ou � parte de sua ess�ncia?
� uma quest�o important�ssima da minha vida que est� nos livros. Fui muito criticado por isso, especialmente na Su�cia, onde se acha que valores masculinos n�o valem nada, que n�o deve haver sexismo algum. Para eles, escrever sobre masculinidade � provoca��o, e o homem do livro acha que � muito feminino sair com um carrinho de beb� e cuidar de um beb�, � como se perdesse sua masculinidade. Eu me senti feminizado quando minha filha nasceu e tive de cuidar dela.
No terceiro livro, eu sou um garotinho e sou muito feminino. Um garotinho que chora o tempo todo, que se interessa por roupas e por muitas coisas pelas quais n�o deveria se interessar. Nos anos 1970, havia regras muito claras sobre como deveria ser um garoto. Voc� n�o podia infringir aqueles c�digos, n�o podia chorar, ser covarde. Tinha de brigar. Como as sagas islandesas dos vikings, com todas aquelas regras. Quando eu tinha 13 anos, come�aram a me chamar de... em noruegu�s � "kvinnelig", que quer dizer feminino. Era a pior coisa que se podia dizer a um garoto naquela idade. Era terr�vel, mas era verdade. Eu era feminino. A chegada da puberdade, me tornar homem, foi uma crise t�o grande para mim. Foi essa a luta que travei na adolesc�ncia. Procurei ser masculino. Procurei ser um homem. E venho fazendo isso desde ent�o.
Ok, ent�o vamos falar de algo bem de menino. No volume tr�s voc� fala muito sobre ir ao banheiro. Voc� descreve como curtia, quando garoto, a sensa��o de fazer coc�, ver o tamanho que as fezes podiam chegar a ter. Voc� tamb�m tem um ensaio de 20 p�ginas sobre isso. Essa coisa do coc� � uma esp�cie de met�fora da cria��o art�stica?
N�o, eu n�o penso em met�foras. O que eu queria era captar a inf�ncia. Sob qualquer ponto de vista, uma crian�a � um idiota. N�o sabe nada sobre a vida, sobre os fatos. Ent�o como descrever essa vida? Que cara tem a vida de um menino de oito, dez anos? � um problema escrever sobre isso.
Percebi que h� muitos t�picos, todos irrelevantes. Muitas reflex�es, mas sobre coisas desimportantes. E muito conhecimento sobre certas coisas, em geral, coisas sem valor. Uma delas � fazer coc�. Mas � tamb�m um momento de muita curiosidade, e de curiosidade quanto ao corpo. Por isso � uma porta de acesso perfeita para a inf�ncia. A partir da�, comecei a me lembrar de como era. Isso mais ou menos me abriu a inf�ncia inteira.
Voc� se pergunta por que n�o falamos sobre isso, por que � um tabu ou nos soa estranho?
O ensaio que voc� mencionou � sobre isso. Trata-se realmente do �ltimo reduto de privacidade. E foi t�o divertido escrever sobre isso. Escrever sobre cagar. Eu recorro a Hannah Arendt e a fil�sofos e meio que converto o tema em uma outra coisa. Faz sentido, tem interesse e ainda assim � algo que n�o devemos mencionar. � interessante porque � indigno. � claro que ainda � um tabu. Eu, pessoalmente, sou muito t�mido, n�o quero me expor. Tenho medo da intimidade em quase todos os sentidos.
Por isso esse projeto foi t�o libertador. Coisas proibidas se tornam poss�veis quando se est� s�, na literatura, quando se est� totalmente livre. Se voc� parar para pensar que algu�m vai ler, que isso vai ser publicado, voc� n�o consegue. Quando escrevi isso, passava a maior parte do dia sozinho. Fazia todas as coisas das quais n�o podia falar. Estava totalmente livre, e era terr�vel, mas tamb�m era uma alegria. A� o livro foi publicado, e eu passei a estar muito exposto diante de muitas pessoas, mas ainda tenho a sensa��o de que, antes de tudo, trata-se de literatura. Mesmo assim, sou t�mido. Mesmo assim, n�o falo desses assuntos. Exceto em ocasi�es como esta.
Uma coisa que normalmente n�o se diz sobre esses livros � que eles s�o muito engra�ados. Para voc�, seja em termos liter�rios ou pessoais, o humor ajuda a achar um sentido?
Meu livro favorito em absoluto � "Morte a Cr�dito", de C�line. Eu ri de rolar no ch�o com esse livro, eu o adoro. � engra�ad�ssimo, mas com um humor absolutamente negro. Sou conhecido por ser muito s�rio, nem um pouco ir�nico. Sabe, j� chorei na TV norueguesa. Existe essa imagem de mim. Quando escrevo, posso escrever coisas que acho divertid�ssimas, mas algumas pessoas n�o entendem que estou tentando ser engra�ado. Elas n�o acreditam que eu seja capaz de contar uma piada. Acho que os livros s�o lidos nessa chave.
Sua mulher recentemente publicou dois romances muito bem recebidos, escritos ap�s os fatos que voc� descreve no volume seis de "Minha Luta". A pr�pria exposi��o da vida de voc�s se tornou tema do livro. Voc� acha que voc� ter exposto as vidas de voc�s contribuiu para que ela pudesse escrever esses livros?
Ela era poeta quando a conheci. Eu tinha escrito um romance, e ela, uma colet�nea de poemas. Ela escreve muito pouco, muito enxuto e muito, muito bem. Ao longo de todos esses anos ela vem escrevendo. Eu n�o falo do que estou fazendo, porque isso j� est� t�o presente em toda parte –precisamos nos proteger, de certo modo. Ela escreve. Eu leio o que ela escreve.
Imagino que seria dif�cil se relacionar com ela se n�o a admirasse.
A escrita � totalmente integrada � vida dela. O que me surpreende � que o que ela escreve n�o se parece em nada com a pessoa dela. � como se viesse de outra pessoa. E me espanta porque � quando percebo que h� coisas fora da vida cotidiana, �s vezes t�o entediante. � assim num relacionamento, nos tornamos uma coisa n�o muito viva para o outro. Mas a� voc� se depara com esse material t�o rico. Parece vir de fora de tudo aquilo.
No final do volume seis, voc� jurou que deixaria de escrever. Estando h� tanto tempo no circuito de festivais, era bem plaus�vel que voc� cumprisse a promessa.
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Essa foi a �ltima frase do livro e era a �nica que eu sabia que estaria nele com certeza. A frase �: "Estou feliz por n�o ser mais um escritor". Deveria terminar ali. O projeto deveria se encerrar com a morte do escritor. � um livro sobre como a ambi��o de ser escritor pode estragar todo o resto. � um romance sobre o relacionamento entre literatura e vida. Sempre usei a literatura como uma maneira de escapar da vida. De fugir da vida, de tudo o que � complicado. E eu queria me voltar para a outra dire��o, da literatura � vida. E foi essa a finalidade, como um mergulho na vida. Quando escrevi isso, meu editor me disse: "Voc� sempre pode mudar de ideia". E eu mudei.
Nota:
Algumas quest�es desta entrevista haviam sido publicadas por separado, em ingl�s, no site Literary Hub, que tem John Freeman entre seus editores.
JOHN FREEMAN, 41, escritor e editor, organizou o livro "Hist�rias de Duas Cidades" (Bertrand Brasil).
CLARA ALLAIN � tradutora.
DAVID MAGILA, 37, artista pl�stico, vencedor do pr�mio de aquisi��o do Sal�o de Arte de Ribeir�o Preto, exp�e no museu da cidade paulista at� 9/7.
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