O amor � linguagem de Roland Barthes, 100
RESUMO Pela multiplicidade de seu pensamento, Roland Barthes, cujo centen�rio se comemorou no dia 12, � �s vezes visto como vulgarizador de conceitos. Especialistas destacam sua vis�o aberta e n�o asseverativa e sua aten��o pioneira ao signo como chaves para entender por que a obra do autor, morto em 1980, permanece atual.
Jerry Bauer | ||
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O escritor Roland Barthes em seu escrit�rio |
No �ltimo dia 12, se estivesse vivo, Roland Barthes teria completado cem anos. Na tarde de 25 de fevereiro de 1980, ap�s um almo�o com o ent�o aspirante a presidente Fran�ois Mitterrand -ele seria eleito no ano seguinte- Barthes foi atropelado por uma caminhonete de lavanderia, pr�ximo ao Coll�ge de France, na rua des �coles, em Paris.
Era um dia "frio, amarelo", anotara em sua agenda pela manh�. Morreu um m�s depois, em 26 de mar�o, num leito do hospital
Piti�-Salp�tri�re, em estado de coma agravado por complica��es pulmonares causadas por uma insufici�ncia respirat�ria cr�nica, fruto de sua tuberculose adolescente.
A efem�ride do centen�rio do nascimento gerou ao longo deste ano uma infinidade de eventos e publica��es sobre a vida e a obra do c�lebre pensador, escritor, cr�tico liter�rio e semi�logo franc�s. E evocou o legado intelectual do autor de ensaios como "O Grau Zero da Escrita" (1953), "Mitologias" (1957), "O Sistema da Moda" (1967), "S/Z" (1970), "O Prazer do Texto" (1973), "Roland Barthes por Roland Barthes" (1975), "Fragmentos de um Discurso Amoroso" (1977) ou "A C�mara Clara" (1980).
El�tron livre na paisagem intelectual francesa de sua �poca, Barthes n�o criou escola ou um sistema de conceitos -� diferen�a de seus contempor�neos Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze ou Jacques Lacan.
Reduzido por seus cr�ticos ao status de "vulgarizador" sem consist�ncia, � apontado por admiradores como um precursor de cont�nua inspira��o al�m de seu tempo. Sua curiosidade intelectual o levou a investigar os signos, a moda, as artes, os carros, a publicidade, as dietas alimentares, a fotografia ou o cinema, mantendo uma constante: uma fidelidade incondicional � linguagem. "N�o h� uma crise da l�ngua, mas uma crise do amor pela l�ngua", escreveu em 1979.
Para o escritor e professor de literatura contempor�nea �ric Marty, amigo pr�ximo do pensador -"indiv�duo m�ltiplo", segundo ele- e editor de suas obras completas, lan�adas em cinco volumes pela editora francesa Seuil, Barthes constituiu um "formid�vel movimento de modernidade".
Segundo Marty, ele inventa uma nova forma de exist�ncia para o intelectual e o escritor ao dissolver a separa��o entre literatura, filosofia e outras �reas das ci�ncias humanas. "Ele teve uma rela��o um pouco diferente na forma de ser um intelectual. Interessa-se pelos objetos do cotidiano, do presente, que n�o eram considerados pelo pensamento -na �poca, por exemplo, um intelectual de esquerda n�o falava de autom�vel", diz.
Para Marty, ele � "precursor" por ter inventado "novos objetos de an�lise". "Mas tamb�m porque � um dos pilares da semiologia, da ideia de que o mundo � feito de um sistema de signos. N�o consumimos coisas, mas significa��es. Essa ideia de que o mundo n�o � t�o real assim, mas sobretudo feito de simulacros, de signos de linguagem, � um pensamento muito moderno que n�o cessou de se radicalizar, alcan�ando uma dimens�o evidente hoje, num universo de media��es cada vez menos real", analisa o professor, que editou neste ano, tamb�m pela Seuil, um volumoso �lbum de textos e correspond�ncias in�ditas de Barthes, com imagens e documentos de arquivo.
DIST�NCIA
Em "Aula" (Cultrix), sua confer�ncia inaugural no Coll�ge de France em 7 de janeiro de 1977, publicada em livro um ano depois, Barthes escreveu: "A ci�ncia � grosseira, a vida � sutil, e � para corrigir essa dist�ncia que a literatura nos importa".
Antes disso, entre 1972 e 1976, a ent�o estudante e hoje fil�sofa Chantal Thomas foi aluna do concorrido semin�rio ministrado por Barthes, que reunia, toda quinta, �s 16h, uma quinzena de devotos em um est�dio de um pr�dio do s�culo 17 no bairro Od�on, no n�mero 6 da rua de Tournon. Para ela, Barthes transmitiu um desejo de explorar novas formas e registros, um "prazer do texto".
Ela relaciona o amor de Barthes pela l�ngua a uma moral: "Sua paix�o maior era a linguagem, e o interesse que teve pela literatura faz parte desse todo. N�o � s� um homem de saber, mas algu�m que afirmou valores. Seus trabalhos e reflex�es cient�ficas refletem certa �tica, uma moral da exist�ncia".
A ex-aluna defende que, diante do fustigamento cotidiano da l�ngua, no celular, na internet, "� vital lembrar seu valor". O amor de Barthes pela linguagem "implica a ideia de que se comportar mal em rela��o a ela, maltratar as frases, seria um desrespeito a si mesmo e ao outro", diz a fil�sofa, que publicou neste ano o ensaio "Pour Roland Barthes" (Seuil) e tamb�m produziu, em parceria com seu irm�o Thierry Thomas, o document�rio "Roland Barthes 1915-1980: Le Th��tre du Langage".
Apesar do amor de Barthes pela linguagem, ele n�o seguiu a carreira de romancista -embora tenha pensado em escrever uma narrativa ficcional, jamais realizada. Uma de suas prioridades, diz �ric Marty, foi denunciar a literatura como institui��o e sistema mitol�gico.
"Sua primeira urg�ncia era a necessidade de destruir isso. Da� o fato de que n�o deveria, sobretudo, escrever romances. Tornar-se um ficcionista n�o era mais do que uma vaidade mitol�gica e sem interesse. Por isso essa sua dimens�o muito te�rica e violenta no uso do estruturalismo, um discurso extraordinariamente cient�fico, s�rio, um pouco como uma arma para desconstruir todos os ornamentos liter�rios. Feito isso, foi poss�vel depois retomar a literatura de uma outra forma."
Para Marty, o livro "Roland Barthes por Roland Barthes" (Esta��o Liberdade) se aproxima com ironia do romance, usando cenas autobiogr�ficas em que o autor narra seu pr�prio presente, o "uso do tempo de seus dias". J� "A C�mara Clara" -uma encomenda da revista "Cahiers do Cin�ma" sobre a fotografia- acaba tendo o luto (pela morte da m�e, a quem era extremamente ligado) como elemento dram�tico principal.
Por sua vez, o sucesso de vendas "Fragmentos de um Discurso Amoroso" (Martins) indica outra perspectiva do romanesco na obra de Barthes, com a rela��o amorosa no centro do livro.
Na sua opini�o, Barthes � "bem lido" atualmente por um p�blico entre 25 e 35 anos: "Os jovens de hoje sentem em Barthes algo de espec�fico, que permanece relacionado ao prazer do leitor. N�o � algu�m que acena com verdades, num autoritarismo de pensamento e de dogmatismo, mas est� sempre numa rela��o de alus�es, de comunica��o com o leitor".
Para Chantal Thomas, tamb�m a rejei��o dos estere�tipos, entre os quais a rela��o autorit�ria e o conflito violento, faz a obra de Barthes permanecer atual. Ele valorizava a diferen�a no lugar do embate, "um valor essencial em um momento em que todos os �dios religiosos e raciais s�o exacerbados", acrescenta a fil�sofa.
Ela define a leitura de Barthes como um constante "exerc�cio de vigil�ncia": "Ele n�o s� aconselha a atentar para a l�ngua mas tamb�m a saber escutar. Essa era uma das li��es do semin�rio. Nesse sentido, � realmente um fator de liberdade. Barthes � autor para o nosso presente. E tamb�m porque est� numa rela��o de amor com a leitura e a literatura".
CHOQUE
O escritor Laurent Binet, 43, tinha apenas sete anos quando Barthes foi sepultado no cemit�rio de Urt, no sudoeste da Fran�a. A descoberta do ensa�sta e escritor ocorreu "tardiamente", por volta dos 25 anos, sob a forma, segundo ele, de um "choque intelectual": "Foi Barthes quem me explicou que havia num texto mais do que estava escrito nele. Ao me tornar professor de franc�s, foi algo muito �til. Ele n�o era apenas um cr�tico liter�rio mas tamb�m um semi�logo, ampliou suas compet�ncias lingu�sticas ao mundo que nos rodeia", diz.
Binet diz que o semi�logo foi o respons�vel por ensin�-lo a decodificar o real. "O que me agrada nele � essa mistura de duas qualidades que n�o est�o frequentes juntas: o rigor e a imagina��o. Ele tem uma grande sensibilidade, com um esp�rito muito met�dico. Por isso eu o acho fascinante."
Laureado em 2010 com o prestigioso Goncourt de primeiro romance por "HHhH", Binet lan�ou neste ano o j� tamb�m premiado "La Septi�me Fonction du Langage"(Grasset), um romance policial que explora a possibilidade de Barthes ter sido assassinado.
No livro, que a Companhia das Letras deve lan�ar no Brasl no pr�ximo ano, Barthes teria sido morto por estar em posse de um manuscrito que se somaria ao conjunto das seis fun��es da linguagem originalmente definidas pelo linguista Roman Jakobson. A s�tima permitiria convencer qualquer pessoa a fazer o que se quisesse.
A narra��o mistura suspense, humor, erudi��o e influ�ncias pop em um romance at�pico que re�ne personagens reais e seus enunciados ver�dicos -como os j� citados Foucault, Deleuze e Derrida, mas tamb�m Bernard-Henry L�vy, Philippe Sollers, Julia Kristeva ou Umberto Eco- em situa��es fict�cias. Tamb�m n�o faltam cenas referentes � homossexualidade de Barthes e de Foucault, o que gerou rea��es acaloradas dos cr�ticos.
Binet diz que os pensadores haviam detalhado quest�es sobre sua sexualidade em seus escritos, de forma objetiva ou subjetiva.
"Eu queria fazer reviver esses personagens por meio de seus pensamentos e tamb�m por elementos romanescos. As cr�ticas s�o de m�-f�", diz o escritor � Folha. "Em nenhum momento de meu livro critico Barthes; tento reconstituir sua melancolia no final da vida em uma hist�ria policial. Eu me apoiei em sua obra e no que aprendi do personagem, que me sensibiliza", declara Binet.
Para o escritor, o meio liter�rio na Fran�a se leva muito a s�rio e n�o gosta de brincar. "Eu tinha vontade de rir. Meu livro � essencialmente uma discuss�o sobre o poder da linguagem", diz.
Binet defende a "perspic�cia" e o legado de Barthes neste in�cio de s�culo: "Mesmo que n�o tenha teorizado um m�todo, seu 'Mitologias' deixou uma marca. Hoje, todos n�s tentamos fazer mitologias, nosso esp�rito cr�tico, nossa forma de decodificar o real � uma heran�a de Barthes. As mitologias hoje se multiplicam: o celular, o Facebook, o reality show. Temos uma rela��o mitol�gica com nossa sociedade de consumo, e penso que nisso foi bastante vision�rio".
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