A canoniza��o do "bom rea�a"
RESUMO Avesso � politicagem acad�mica, Merquior buscou a vida diplom�tica como caminho para pensar livremente. Dono de saber enciclop�dico e leitor on�voro, deixou obra clara, que facilitou a atividade de outros cr�ticos. Apontado ap�s sua morte como uma esp�cie de "bom rea�a", nunca foi particularmente direitista.
Arquivo Jos� Guilherme Merquior/� Realiza��es Editora | ||
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Merquior (� esq.) e sua filha Julia com Alexandre Eulalio em Veneza |
Algumas d�cadas atr�s, um brasileiro que quisesse se manter em dia com a cultura internacional tinha de ser milion�rio, diplomata ou exilado pol�tico. A carreira diplom�tica permitiu a Jos� Guilherme Merquior beneficiar-se do que as universidades ofereciam de melhor –grandes professores (L�vi-Strauss, Ernest Gellner), centros de pesquisa e bibliotecas– sem ter de se submeter � sua ideologia ou politicagem interna.
N�o se tratava de desprezo – como atestam suas teses, doutoramentos e o ingresso na Academia Brasileira de Letras– pelas formalidades e institui��es, mas, sim, da constata��o de que, nas disciplinas human�sticas, universidade e universalismo haviam se tornado ant�nimos, enquanto a liberdade de pensamento dera lugar ao dogmatismo e � prega��o.
O que o havia preparado para reconhecer precocemente tais reveses fora formar-se no Brasil que existiu entre o fim da ditadura Vargas e o golpe de 1964, uma �poca em que a maioria dos pensadores e produtores culturais ainda acreditava que sua esfera fosse a da liberdade ou, pelo menos, se comportava como se assim fosse.
Quando, em 1964, a direita tomou as r�deas do poder pol�tico, as fac��es mais determinadas da esquerda valeram-se do ensejo para perseguir e isolar diverg�ncias e/ou discord�ncias no �mbito da cultura, usando cinicamente a ditadura como a�oite para castigar desafetos, que chamavam (mentirosamente quase sempre) de delatores, colaboracionistas etc.
Desde ent�o, as opini�es pol�tico-ideol�gicas (mas n�o s�) da classe ou categoria art�stica e intelectual tornaram-se t�o homog�neas quanto refrat�rias ao menor desvio. Se outrora a intelectualidade tinha um leque de opini�es bem mais amplo e variado que o da classe m�dia, o que se v� agora � o oposto. Ao optar, pois, por uma carreira que o manteria longamente fora do pa�s, Merquior pode muito bem t�-lo feito n�o s� para seguir atualizado como tamb�m porque, com o clima intelectual brasileiro dia a dia mais avesso ao pluralismo, ele trabalharia melhor num ambiente similar �quele no qual se formara.
BICHO-PAP�O
Em todo caso, suas principais posi��es, pontos de vista e princ�pios tampouco se alteraram significativamente at� sua morte, em 1991. E, se no come�o dos anos 60, estes n�o o levavam a ser considerado particularmente direitista (nem era mesmo; nunca foi), 30 anos depois opini�es iguais ou parecidas o converteriam, aos olhos da intelectualidade nacional, no bicho-pap�o fascista ou pior.
Sucede que era o pano de fundo –o cen�rio ou o pr�prio ambiente– que havia se movido para a esquerda. Morto, ele foi logo canonizado como o "bom rea�a" e usado, por seu turno, para fustigar os "maus reacion�rios" ainda vivos. Hoje corre o risco de ser endeusado porque a esquerda o combateu injusta e equivocadamente.
Sua obra –que � o que conta– subdivide-se em dois grandes blocos: o da pol�tica investigada no sentido amplo e o da literatura em geral, pois ela � que ocupa o centro de suas preocupa��es est�ticas.
Estudioso inteligente e erudito, tinha entre suas virtudes duradouras a capacidade incomum de realizar um tipo particular de "tradu��o". Primeiro, examinava impiedosamente alguns autores ou pensadores em voga e tidos como dif�ceis e mostrava que isso se devia menos � complexidade que � complica��o intencional. Decifrava, ent�o, seu jarg�o acad�mico, desenovelava-lhes o empolamento lingu�stico e reordenava cada texto de acordo com o bom senso, traduzindo, assim, a produ��o do "mandarinato" para a l�ngua dos mortais, algo que (como fez exemplarmente com Foucault) bastava em geral para revelar a nudez dos monarcas de ocasi�o.
J� o que ele tinha de leitor on�voro, infinitamente paciente, seu est�mago de avestruz e dedica��o mon�stica �s letras e � cultura eram caracter�sticas mais �teis a algumas tarefas que a outras.
Merquior n�o era impaciente ou pregui�oso, nem injusto, passional ou vol�vel o bastante para ocupar nichos importantes na cr�tica –e conv�m salientar que h� circunst�ncias nas quais cada qual desses supostos v�cios se converte numa virtude indispens�vel.
Nem sua trajet�ria dava a entender que almejasse se tornar um descobridor de novos valores, redescobridor de antigos injustamente esquecidos, revolucionador de paradigmas e c�nones, �rbitro do gosto ou censor ideol�gico. Sua inclina��o era mais a de aperfei�oar a ordem existente que a de alter�-la radicalmente e, na hora de optar entre dois escritores, era prov�vel que ficasse com ambos, uma atitude mais conciliat�ria do que discriminat�ria.
Felizmente, tinha talento inato para p�r ordem na casa, organizar, sistematizar, abrir as janelas, trazer clareza para a discuss�o toda, inclusive no campo da poesia, que intimida ou exp�e ao rid�culo quem se meta a discuti-la sem preparo. Bem mais que a maioria dos cr�ticos e at� dos poetas brasileiros atuais, conhecia seus recursos t�cnicos, era capaz de descrever seu funcionamento formal detalhado e assim por diante.
Mas � verdade, tamb�m, que sua abordagem nem sempre ia al�m e quando, ap�s a constru��o de t�o elaborado trampolim, esperava-se o grande salto ornamental... Nada. Ou muito pouco. Menos, em todo caso, que as "sacadas" ou "insights" a que chegam �s vezes cr�ticos que, equipados n�o com sua erudi��o enciclop�dica, mas apenas com intui��o e empatia, t�m a qualifica��o rara e inef�vel de ser do ramo.
APOGEU
Enquanto cr�tico liter�rio, ele pode ser visto no apogeu de suas energias em dois livros: "De Anchieta a Euclides "" Breve Hist�ria da Literatura Brasileira" e "Verso Universo em Drummond".
N�o � trivial dizer que ambos figuram entre o que de melhor se produziu em suas respectivas categorias e que ambos, al�m de prazerosamente leg�veis, s�o –ou deveriam ser– leitura obrigat�ria.
O primeiro resume com extrema compet�ncia e eleg�ncia o que gente menos h�bil faria de maneira ma�ante num espa�o v�rias vezes maior. � importante observar que o autor n�o altera em quase nada a vis�o mais ou menos consensual da hist�ria liter�ria nacional, isto �, ele reconhece os valores reconhecidos, acata a periodiza��o previamente demarcada, endossa em linhas gerais rela��es de causa e efeito antes estabelecidas.
Nada � muito questionado e muito menos revolucionado, mas tudo acaba (re)ordenado da melhor, mais n�tida e econ�mica maneira poss�vel. Um volume assim permite, ademais, entrever que, nesse caso, os momentos mais felizes do autor foram aqueles durante os quais se preparou para escrev�-lo, pois parece que sua m�xima paix�o existencial sempre consistiu em ler de cabo a rabo todos os livros, visitar todos os museus, contemplar demoradamente todas as telas e esculturas, ouvir todas as sinfonias e concertos.
� tentador imaginar que tenha aceito tal tarefa antevendo com prazer a enxurrada de leituras que o aguardava, leituras que a maioria dos demais tomaria como desafio ou tortura. Impunha-se tamb�m a necessidade de organizar racionalmente o material inteiro –e, tendo em vista seus talentos, isso n�o era mais que continua��o do deleite anterior por outros meios.
Sua voracidade de leitor insaci�vel –bem como de colecionador e/ou historiador– transparece claramente no resultado final e � mesmo capaz de contaminar o leitor, despertando nele a vontade de comprar e ler as obras mais improv�veis, como, por exemplo, os "Di�logos das Grandezas do Brasil" –e isso n�o � pouco.
Por vezes, o cr�tico parece prestes a romper com o consenso para se lan�ar rumo ao novo, ao desconhecido –por exemplo, quando, ao contr�rio dos antecessores imediatos, chama aten��o para a import�ncia do barroco na literatura brasileira. Logo em seguida, por�m, come�a outro cap�tulo e n�o se toca mais no assunto.
Quanto a seu livro sobre Drummond (escrito d�cada e meia antes da morte do poeta), esse tampouco � em ess�ncia diferente. A obra do poeta e seus poemas espec�ficos s�o muito bem esmiu�ados, mas as an�lises elaboradamente descritivas pouco t�m de realmente iluminador ou instigante, menos ainda de nuan�adamente valorativo e nada de muito surpreendente. Quase nenhum grande paralelo � tra�ado, por exemplo, entre o mineiro e outros poetas mundo afora, e h� diversas perguntas interessantes que nem sequer s�o feitas.
De certo modo, "Verso Universo" serviria antes para dispensar outros cr�ticos de uma trabalheira preparat�ria com a obra do poeta, permitindo-lhes passar logo para as fases seguintes de seus estudos.
Vale dizer: boa parte da cr�tica e da historiografia liter�ria de Merquior � um trabalho minucioso, dedicado e eminentemente �til.
Do que contam seus amigos e conhecidos, ele era extremamente generoso e se desdobrava para ajudar colegas intelectuais em dificuldades, especialmente os esquerdistas que estavam sendo ou corriam o risco de ser perseguidos pelo regime militar.
Talvez fosse similar a tarefa que reservava para sua obra: a de ajudar e facilitar o trabalho de outros cr�ticos e historiadores da literatura. Isso, ela pode sem d�vida fazer. E muito bem.
NELSON ASCHER, 57, � poeta e tradutor, autor de "Parte Alguma" (Companhia das Letras).
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