A bruxaria liter�ria de Clarice Lispector
RESUMO O americano bi�grafo de Clarice Lispector (1920-77) reuniu, pela primeira vez, todos os contos da escritora no livro "The Complete Stories" (New Directions). Abaixo, um trecho do ensaio de introdu��o ao volume, recentemente lan�ado nos Estados Unidos e ainda sem previs�o de ser publicado no Brasil.
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"Renuncias ao glamour do mal", pergunta-se durante a missa de P�scoa nos pa�ses angl�fonos, "e recusas ser dominado pelo pecado?". A quest�o preserva uma liga��o, hoje rara, entre glamour e feiti�aria; o glamour era uma qualidade que confundia, alterava formas, investia a coisa de uma aura misteriosa; nas palavras de sir Walter Scott, tratava-se do "poder m�gico de afetar a vis�o dos espectadores, de modo que a apar�ncia de um objeto se torne totalmente diferente da realidade".
A lendariamente bela Clarice Lispector, alta e loira, adere�ada com os vistosos �culos escuros e as joias volumosas que caracterizavam uma "grande dame" do Rio de Janeiro na metade do s�culo 20, correspondia � defini��o atual de glamour. Ela foi jornalista de moda por anos, e sabia como se vestir para o papel, mas � no sentido mais antigo da palavra que Clarice Lispector � glamorosa: como lan�adora de feiti�os, literalmente encantadora, seu nervoso fantasma assombrando todos os ramos da arte brasileira.
Seu feiti�o s� fez crescer desde sua morte. Ent�o, em 1977, teria parecido exagero afirmar que ela era a escritora moderna proeminente de seu pa�s. Hoje, quando a afirma��o j� n�o seria exagerada, quest�es de import�ncia art�stica s�o, em alguma medida, irrelevantes. O que importa � o amor magn�tico que ela inspira naqueles que s�o suscet�veis a sentir o seu apelo. Para eles, Clarice � uma das grandes experi�ncias emocionais de suas vidas. Mas seu glamour � perigoso. "Cuidado com a Clarice", disse um amigo a um leitor d�cadas atr�s. "N�o � literatura, � bruxaria."
Reprodu��o | ||
Retrato da escritora Clarice Lispector |
A conex�o entre literatura e bruxaria tem sido h� muito tempo parte importante da mitologia de Clarice Lispector. Essa mitologia, com um poderoso empurr�o da internet, desenvolveu ramifica��es t�o barrocas que hoje poderia ser definida como um ramo menor da literatura brasileira. Circula incansavelmente on-line toda uma obra fantasma, em geral "profunda" e respirando paix�o. On-line, igualmente, Clarice adquiriu um corpo paralelo p�stumo, j� que fotos de atrizes que a retrataram s�o constantemente reproduzidas no lugar da original.
Mesmo que a tecnologia tenha mudado suas formas, a mitifica��o em si nada tem de novo. Clarice Lispector se tornou famosa ao publicar "Perto do Cora��o Selvagem", no final de 1943. Ela havia acabado de completar 23 anos, uma estudante obscura de origem imigrante pobre; seu primeiro romance teve t�o grande impacto que um jornalista escreveu: "N�o temos registro de uma estreia mais sensacional, que tenha elevado a t�o grande destaque um nome que, at� pouco antes, era completamente desconhecido". Mas apenas algumas semanas depois desse nome come�ar a ser conhecido, sua portadora partiu do Rio de Janeiro.
LENDAS
Por quase duas d�cadas, ela e o marido, diplomata, viveram no exterior. Ainda que visitasse seu pa�s regularmente, n�o voltou em definitivo at� 1959. Nesse meio tempo, as lendas floresceram. Seu estranho nome estrangeiro se tornou tema de especula��o –um cr�tico imaginou que pudesse ser pseud�nimo– e outros imaginavam se ela n�o seria, na verdade, um homem.
Somadas, essas lendas refletem uma inquieta��o, um sentimento de que ela era algo diferente do que parecia: "que a apar�ncia de um objeto seja totalmente diferente da realidade".
A palavra "apar�ncia" precisa ser enfatizada. Uma bela esposa de diplomata, aparentemente um pilar nada amea�ador da burguesia brasileira, produziu uma s�rie de escritos em linguagem t�o ex�tica que, nas palavras de um poeta, "a estranheza de sua prosa" se tornou "um dos fatos mais esmagadores... na hist�ria de nossa l�ngua". Havia algo nela que n�o era o que parecia, uma estranheza muitas vezes registrada por aqueles que encontram sua escrita pela primeira vez. Mas isso raramente foi articulado t�o bem quanto no final de sua vida, no meio da ditadura militar, quando ela se viu sujeita a uma rigorosa verifica��o, e revista f�sica, no aeroporto de Bras�lia.
"Tenho cara de subversiva?", ela perguntou � seguran�a. A mulher riu, e depois deu a �nica resposta poss�vel: "At� que tem".
Um velho dicion�rio escoc�s aponta que "glamour" � uma refer�ncia metaf�rica � "fascina��o feminina". E � uma curiosidade etimol�gica que a palavra derive de "grammar" (gram�tica). Na Idade M�dia, esta �ltima palavra descrevia qualquer erudi��o, mas particularmente o saber oculto: a capacidade de encantar, de revelar objetos e vidas como "totalmente diferente da realidade" da apar�ncia externa. Para uma escritora, especialmente uma escritora renomada por revelar as realidades ocultas das vidas vis�veis por meio de uma sintaxe deslizante, mut�vel, a associa��o � irresist�vel, e ajuda a explicar a "fascina��o feminina" que Clarice Lispector exerceu por tanto tempo.
Nos 85 contos deste livro, Clarice Lispector conjura, acima de tudo, a escritora. Da promessa adolescente � maturidade confiante, e � implos�o de uma artista quando se aproxima da morte –e a invoca–, descobrimos a figura, maior que a soma de suas obras individuais, amada no Brasil. Falar de Jo�o Guimar�es Rosa � falar de "Grande Sert�o: Veredas". Falar de Machado de Assis �, da mesma forma, falar de seus livros, e, s� depois,do homem not�vel por tr�s deles. Mas falar de Clarice Lispector � falar de Clarice, o prenome pelo qual ela � universalmente conhecida: da mulher em si. De seu primeiro conto, publicado aos 19 anos, ao �ltimo, encontrado em fragmentos dispersos depois de sua morte, acompanhamos uma vida de experimenta��o art�stica por uma vasta gama de estilos e experi�ncias.
Essa literatura n�o � para todo mundo: at� mesmo alguns brasileiros altamente letrados se sentem perplexos diante do fervor intenso que ela desperta. Mas para aqueles que a compreendem instintivamente, o amor pela pessoa de Clarice Lispector � imediato e inexplic�vel. Sua arte nos faz desejar conhecer a mulher; e ela � uma mulher que nos faz desejar conhecer sua arte. Este livro oferece uma vis�o de ambas as coisas: um retrato inesquec�vel, na e por meio da arte daquela grande figura, em sua grande e tr�gica majestade.
TODOS JUNTOS
Boa parte deste livro n�o tem precedentes. Pela primeira vez em qualquer idioma –incluindo o portugu�s– todos os contos de Clarice est�o reunidos em um s� volume, entre os quais o primeiro "Cartas a Hermengardo", que descobri em um arquivo. Essa obra incomum oferece novas provas da import�ncia do Spinoza que ela leu quando estudante, uma influ�ncia que ecoaria por toda a sua vida.
Por mais empolgantes que esses marcos bibliogr�ficos sejam para o pesquisador ou bi�grafo, algo de muito mais surpreendente aparece quando essas hist�rias s�o por fim vistas por inteiro. Trata-se de um feito de cuja import�ncia hist�rica a autora n�o podia estar consciente, pois s� retrospectivamente ele seria capaz de surgir. E sua for�a seria consideravelmente diminu�da se fosse uma express�o ideol�gica em lugar de uma deriva��o natural das experi�ncias da autora.
Esse feito jaz na segunda mulher que ela conjura. Se Clarice Lispector era uma grande artista, era tamb�m uma mulher casada e m�e de classe m�dia. Se o retrato da artista extraordin�ria � fascinante, o mesmo vale para o retrato da dona de casa comum cuja vida � o tema deste livro. � medida que a artista amadurece, a dona de casa, igualmente, envelhece.
Quando Clarice � uma adolescente desafiadora, tomada pelo senso de seu pr�prio potencial –art�stico, intelectual, sexual–, o mesmo vale para as meninas de suas hist�rias. Quando, em sua pr�pria vida, o casamento e a maternidade tomam o lugar da inf�ncia precoce, seus personagens tamb�m amadurecem. Quando seu casamento fracassa, quando seus filhos partem, essas partidas aparecem em seus contos. Quando Clarice, no passado t�o gloriosamente bela, v� seu corpo "sujo de gordura e rugas", suas protagonistas veem o mesmo decl�nio; e quando ela confronta a decad�ncia final da idade, doen�a e morte, elas est�o ao seu lado.
Temos aqui um registro de toda a vida da mulher, escrito ao longo de toda a vida da mulher. E, nesse aspecto, ele parece ser o primeiro registro t�o completo escrito em qualquer pa�s. Essa afirma��o abrangente requer ressalvas. A vida de uma mulher casada e m�e; a vida de uma mulher ocidental, burguesa e heterossexual. Uma mulher n�o interrompida: uma mulher que n�o come�ou a escrever tarde, ou parou ao se casar e ter filhos, ou sucumbiu �s drogas e ao suic�dio. Uma mulher que, como muitos escritores homens, come�ou na adolesc�ncia e continuou a escrever at� o fim. Uma mulher que, em termos demogr�ficos, era exatamente como a maioria de seus leitores.
A hist�ria deles foi escrita apenas em parte. Antes de Clarice, uma mulher que escrevesse ao longo de sua vida –e sobre sua vida– era rara a ponto de ser in�dita. A afirma��o parece extravagante, mas n�o identifiquei quaisquer predecessoras.
BENJAMIN MOSER, 38, escritor e tradutor americano, � autor de "Clarice," (Cosac Naify).
PAULO MIGLIACCI, 47, � tradutor.
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