A morada dos afetos: Casa de M�rio de Andrade � reaberta
RESUMO A resid�ncia de M�rio de Andrade na r. Lopes Chaves, 546, aparece em v�rios textos do poeta (1893-1945). O sobrado ser� reaberto ao p�blico como Casa M�rio de Andrade no dia 23 com a mostra permanente "A Morada do Cora��o Perdido", em celebra��o do 70� anivers�rio da morte do autor, homenageado da pr�xima Flip.
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"Sa� desta morada que se chama O Cora��o Perdido e de repente n�o existi mais", escrevia M�rio de Andrade em uma cr�nica de 1931.
Dez anos antes, M�rio havia se mudado para a casa da rua Lopes Chaves , na Barra Funda. Sua m�e, j� vi�va, comprou o sobrado constru�do por Oscar Americano ap�s vender a casa da fam�lia no largo do Paissandu. A constru��o abrigava tr�s resid�ncias familiares, com uma �nica infraestrutura.
M�rio era muito ligado na fam�lia -m�e, tia e irm�-, com quem vivia na casa da Lopes Chaves. A forte personalidade dele imp�s ao ambiente uma conviv�ncia harmoniosa, n�o isenta de contradi��es, entre um lar de modesta classe m�dia e a resid�ncia de um intelectual ambicioso. M�rio de Andrade, como n�o poderia deixar de ser, tinha gostos muito bem definidos e necessidades de sua voca��o, que se refletiam na casa onde viveu.
Inspirado nos m�veis de Bruno Paul, que viu numa revista alem� de arte e decora��o, desenhou, ele mesmo, e mandou executar no Liceu de Artes e Of�cios, em madeira de lei, os m�veis de seu escrit�rio.
Agiu igualmente com rela��o �s estantes necess�rias para abrigar a sua enorme "livraria". Estantes s�lidas, de imbuia, com prote��o de vidro nas prateleiras, para evitar a exposi��o dos livros.
Germano Graeser/Iphan-SP/MinC | ||
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Est�dio de M�rio em 1945: ao fundo, "A Fam�lia do Fuzileiro Naval", de Guignard (junto � escrivaninha), e "Colona", de Portinari (� dir.) |
� medida que a biblioteca se expandia naturalmente, as paredes iam sendo tomadas pelas estantes, que acabaram por se impor na casa toda. Como os livros se distribu�ssem em seis salas, designadas pelas letras do alfabeto, M�rio criou um sistema de cataloga��o que possibilitava a sua incorpora��o permanente.
Outra vertente incontorn�vel da personalidade de M�rio de Andrade foi a de colecionador de obras de arte -desenho, gravura, pintura-, de partituras, de discos, de imagens sacras, de arte popular. Apesar dos meios modestos de que dispunha, provenientes de seu trabalho de professor de m�sica, jornalista e escritor, M�rio acumulou acervo consider�vel e valioso.
Para a ensa�sta Gilda de Mello e Souza, prima de M�rio que viveu na casa dele enquanto estudante, o "colecionador" era o tra�o marcante do escritor m�ltiplo.
Ele tinha compuls�o em vestir o ambiente neutro da casa de elementos est�ticos, antropol�gicos, hist�ricos, liter�rios com os quais se identificava e que de certo modo constitu�am o seu car�ter. "S�o 'testemunhos-lembran�as' de um passado remoto ou recente, que agora repousam na 'calma sapient�ssima' do est�dio. Est� ali, bem protegido, o mundo de que necessita: d�cil, ordenado, ao alcance da m�o e do olhar", escreveu ela.
O efeito que a Casa de M�rio de Andrade provocava nas visitas, fossem elas escritores, jornalistas, amigos ou gente que queria se aproximar do homem consagrado, era impactante.
Dele deram testemunho eloquente Antonio Candido, D�cio de Almeida Prado, Francisco de Assis Barbosa, Justino Martins, M�rio da Silva Brito, Rubens Borba de Moraes, Oneyda Alvarenga, em vida do escritor.
Segundo depoimento de D�cio de Almeida Prado, "a casa do M�rio era uma casa relativamente modesta, mas que, ao mesmo tempo, dava a impress�o de muito requintada, artisticamente. Ele tinha um n�mero enorme de quadros, colocados por toda a parte."
Depois de ele j� desaparecido, o cr�tico Alexandre Eulalio, ao penetrar "a resid�ncia do insofrido", constatava que "a paisagem cotidiana que M�rio construiu pouco a pouco ao redor de si, com os objetos e as pe�as que lhe eram mais caros, restitui, com inesperada for�a, a personalidade do autor de 'Belazarte'.Toda sua complexa humanidade como que � comunicada de modo transposto por esses pertences, os quais, a seu jeito, reconstituem a for�a moral do poeta de 'Remate de Males'".
EX�LIO
A rela��o de M�rio com sua casa era umbilical. Ele sempre a celebrou em seus escritos, sem discrimina��o de g�nero, em poemas, cr�nicas, cartas ou contos. Quando retornou do Rio, depois de dois anos de um ex�lio autoimposto, reencontrava uma "inef�vel felicidade lopesch�vica".
Esse retorno refor�a o sentimento de depend�ncia, de necessidade, de disciplina: "A minha casa me defende, que sou, por mim, muito desprovido de defesas. E sobretudo a minha casa me moraliza, no mais vasto sentido desta palavra", confessou em carta a Henriqueta Lisboa, de 1941.
M�rio era sua casa, e ela, extens�o de seu corpo e temperamento. H� poemas not�veis, em que o poeta fixa bem o lugar de onde emana o seu lirismo:
Descobrimento
Abancado � escrivaninha em S�o Paulo/ Na minha casa da rua Lopes Chaves/ De supet�o senti um fri�me por dentro/ Fiquei tr�mulo, muito comovido/ Com o livro palerma olhando pra mim.// N�o v� que me lembrei que l� no norte, meu Deus! muito longe de mim/ Na escurid�o ativa da noite que caiu/ Um homem p�lido magro de cabelo escorrendo nos olhos,/ Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,/ Faz pouco se deitou, est� dormindo./ Esse homem � brasileiro que nem eu...
Reconhecimento de N�mesis (final)
� tarde. Vamos dormir./ Amanh� escrevo o artigo,/ Respondo cartas, almo�o/ Depois tomo o bonde e sigo/ Para o trabalho... Depois.../ Depois o mesmo... Depois,/ Enquanto fora os mal�volos/ Se preocupam com ele,/ Vorazes feito caprinos,/ Nesta rua Lopes Chaves/ Ter� um homem concertando/ As cruzes do seu destino.
De "Lira Paulistana"
Na rua Aurora eu nasci/ Na aurora de minha vida/ E numa aurora cresci./ No largo do Pai�andu/ Sonhei, foi luta renhida,/ Fiquei pobre e me vi nu.// Nesta rua Lopes Chaves/ Envelhe�o, e envergonhado/ Nem sei quem foi Lopes Chaves.// Mam�e! me d� essa lua,/ Ser esquecido e ignorado/ Como esses nomes da rua./ [...]Quando eu morrer quero ficar,/ N�o contem aos meus inimigos,/ Sepultado em minha cidade,/ Saudade.// Meus p�s enterrem na rua Aurora,/ No Paissandu deixem meu sexo,/ Na Lopes Chaves, a cabe�a/ Esque�am./ [...]As m�os atirem por a�/ Que desvivam como viveram,/ As tripas atirem pro Diabo,/ Que o esp�rito ser� de Deus,/ Adeus.
M�rio de Andrade era grande poeta da sua cidade de S�o Paulo, da sua rua Lopes Chaves, de onde lan�ava uma mirada generosa em dire��o ao Brasil.
No conto "Peru de Natal", M�rio elabora em registro de fic��o a pr�pria realidade familiar, e, em "Id�lio Novo", uma cr�nica, desenha o perfil da sua m�e nos afazeres modestos: "Naquele recanto de bairro a casa n�o era rica, mas tinha seu parecer. A� moravam uma senhora e seus filhos. Era paulista e j� idosa, com bastante ra�a e tradi��o. Cultivava com pausa, cheia de manes que a estilizavam inconscientemente, o jardinzinho de entrada e o sil�ncio de todo o ser. Suas m�os serenas davam rosas, manac�s, consolos e, abril chegando, floresciam numa espl�ndida trepadeira de alamandas, que fora compor seu buqu� violento num balc�o".
Na prosa ou na poesia dele, encontram-se elementos que permitem reconstituir, alusiva ou concretamente, a atmosfera e o ambiente f�sico dessa realidade poderosa que foi a casa da rua Lopes Chaves.
Em "Losango C�qui", livro de poemas escrito logo ap�s a mudan�a da fam�lia para a Barra Funda, h� um retrato sentimental da casa nova, que n�o descarta o valor iconogr�fico: "Minha casa.../ Tudo caiado de novo!/ � t�o grande a manh�!/ � t�o bom respirar!/ � t�o gostoso gostar da vida!.../ A pr�pria dor � uma felicidade!".
Em refer�ncias, mais ou menos cifradas, em sua extensa obra, M�rio vai deixando pistas sobre sua casa e o ambiente que criou para prote��o de sua intimidade.
S�ries fotogr�ficas, produzidas por profissionais (como Germano Graeser para o Iphan/SP e BJ Duarte para a Se��o de Iconografia da Prefeitura) ou amadores (como o professor Victor Knoll) comp�em um registro exaustivo da ambienta��o da casa no tempo em que vivia seu morador.
No entanto o mais poderoso documento em termos de evoca��o da atmosfera da casa foi produzido por Ruy Santos, que rodou um filme no anivers�rio de dez anos da morte do escritor.
Guiada pelo texto de Gilda de Mello e Souza, elaborado a partir de escritos do pr�prio autor, a c�mera percorre sala por sala, vasculha cantos, penetra na geografia particular em busca dos tra�os da presen�a imanente de seu morador ausente.
M�rio voltou para casa.
A exposi��o "A Morada do Cora��o Perdido", montada no ano em que se recorda o 70� anivers�rio da morte do poeta de "Pauliceia Desvairada", marca um encontro com M�rio na casa dele. Homem extraordin�rio, o mais completo intelectual da �poca, seu testemunho � indispens�vel para conhecermos o Brasil do s�culo 20.
Nota: Este texto � uma vers�o, reduzida pelo pr�prio autor para a "Ilustr�ssima", de ensaio escrito para o folder da exposi��o "A Morada do Cora��o Perdido", sob sua curadoria.
CARLOS AUGUSTO CALIL, 64, professor da ECA-USP, � curador da exposi��o "A Morada do Cora��o Perdido", na Casa de M�rio de Andrade.
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