De volta ao novo Masp: curador visita passado para pensar o futuro
RESUMO Diretor art�stico do Masp, Adriano Pedrosa reconstitui caracter�sticas arquitet�nicas do pr�dio de Lina Bo Bardi e explora o acervo do museu como passos iniciais para revigor�-lo. Em entrevista, o curador fala sobre seus planos, que incluem uma ambiciosa redefini��o do lugar da arte popular na hist�ria da arte brasileira.
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Em outubro do ano passado, quando assumiu a dire��o art�stica do Masp, Adriano Pedrosa tinha diante de si um mundo a ser decifrado e reconhecido.
Embora trate-se do museu mais famoso do Brasil, com a sempre festejada "maior cole��o de arte ocidental do hemisf�rio Sul", a hist�ria do Masp, ao longo dos anos, foi-se tornando um tanto mais complexa e –� semelhan�a do edif�cio de Lina Bo Bardi– opaca.
Nas duas frentes, Pedrosa optou por uma esp�cie de volta �s origens como m�todo para conferir sentido ao futuro. Ao mesmo tempo que remove paredes para restituir a transpar�ncia do pr�dio da avenida Paulista, empenha-se em desbastar e iluminar a hist�ria da institui��o para discernir suas principais linhas de atua��o.
O Masp, como se sabe, foi fundado em 1947, numa iniciativa do empres�rio Assis Chateaubriand (1892-1968) e do jornalista e cr�tico italiano Pietro Maria Bardi (1900-99). Instalado inicialmente na rua 7 de Abril, no pr�dio dos Di�rios Associados (o imp�rio de comunica��es de Chat�), funcionou depois na Funda��o Armando �lvares Penteado, antes de chegar � avenida Paulista, em 1968.
"O que me parece cada vez mais claro", diz o diretor, "� que havia um museu do Pietro Maria Bardi, que � afinal um homem do s�culo 19, e um museu da Lina Bo Bardi [1914-92], uma mulher moderna, do s�culo 20, quase que como tese e ant�tese". Enquanto traz parte do acervo � luz, em sucessivas exposi��es que ir�o culminar na reinstala��o dos pol�micos cavaletes de vidro de Lina, Pedrosa parece j� ter chegado a uma conclus�o sobre o perfil das futuras mostras e o papel que o Masp poder� desempenhar.
O curador pretende organizar exposi��es associadas a situa��es hist�ricas –ou que contem "hist�rias"– e quer enfrentar o preconceito euroc�ntrico e intelectual, ainda vigente, que relega a segundo plano a chamada arte "popular" e seus artistas, costumeiramente isolados sob o r�tulo de primitivos ou "na�fs".
A nova dire��o pretende tamb�m suprir uma lacuna do vasto acervo do museu: a aus�ncia de uma cole��o de arte ind�gena. Pedrosa diz estar negociando a transfer�ncia de acervos para a institui��o, mas prefere manter sigilo.
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Folha - Neste primeiro ano, voc� est� levando � frente um processo de restitui��o da arquitetura original do Masp e redefini��o dos espa�os expositivos. Voc� poderia descrever brevemente essa etapa?
Adriano Pedrosa - Este � um ano para n�s da dire��o art�stica compreendermos as origens e as hist�rias do museu, que, fundado em 1947, � algo muito profundo, denso, dif�cil de acessar.
� um ano dedicado apenas a mostras dos acervos do museu. N�o � poss�vel tra�ar planos, projetos e programas sem essa compreens�o, que por sinal ser� inescapavelmente parcial, pois h� muitas vers�es, opini�es, sobre essas hist�rias e essas origens.
O que me parece cada vez mais claro � que havia um museu do Pietro Maria Bardi, que � afinal um homem do s�culo 19, e um museu da Lina Bo Bardi, uma mulher moderna, do s�culo 20, quase que como tese e ant�tese, e que o Masp resultante era uma esp�cie de s�ntese, mas n�o uma s�ntese apaziguada, tranquila, finalizada, inconteste, mas uma s�ntese em fric��o, em contraste.
Isso fica muito claro em 1968, no Masp da Paulista, quando encontramos, por um lado, essa arquitetura crua, brutalista, �spera, sem acabamentos luxuosos, de vidro e concreto, o ar -condicionado aparente, o piso de borracha e, por outro lado, as belas ou finas artes, a melhor cole��o de arte europeia do hemisf�rio Sul –de Rafael e Ticiano a Van Gogh, Gaugin, Renoir e tantos outros– instaladas cruamente nos cavaletes de vidro.
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Cavaletes de vidro desenhados por Lina Bo Bardi para expor obras da cole��o permanente do Masp |
Os cavaletes de vidro de Lina, que voltar�o � cena, s�o pol�micos e nos fazem refletir sobre a "ideologia" arquitet�nica do Masp e sua rela��o com a arte europeia.
Os cavaletes de vidro s�o parte integral desse programa. Lina disse que eliminou "o esnobismo cultural t�o querido pelos intelectuais e os arquitetos de hoje" e optou por solu��es diretas, sem "os requintes evocativos e os contornos", de modo que "as obras de arte antiga n�o se acham expostas sobre veludo, como aconselham ainda hoje muitos especialistas em museologia, ou sobre tecidos da �poca, mas colocadas corajosamente sobre fundo neutro".
� importante pensar os cavaletes dentro do programa arquitet�nico do museu, um programa que � descolonizador e, por isso, pioneiro. A pergunta que o programa parece responder � como � poss�vel encontrar uma maneira de apresentar ou contar uma hist�ria, ou v�rias hist�rias, em torno da arte, com um rico acervo europeu, sem replicar uma hist�ria europeia, um modelo europeu, tanto de hist�ria quanto de museu.
� nesse sentido que o programa do Masp � descolonizador. O museu e a hist�ria da arte afinal constroem o mais profundo, devastador e sutil sistema de domina��o dos �ltimos s�culos, hierarquizando culturas, civiliza��es, territ�rios, classes sociais, a partir de um ponto de vista europeu.
A hist�ria da arte ortodoxa � at� hoje profundamente euroc�ntrica; � uma hist�ria do gosto e predile��o das elites, das classes dominantes, que por sua vez tem na Europa ou na "Euro-Am�rica" sua refer�ncia primordial.
N�s vemos isso ainda hoje no Brasil, onde h� um interesse muito maior pelas matrizes europeias do modernismo e do construtivismo, por exemplo, do que pelos temas e narrativas brasileiros. A concep��o e a constru��o do Masp na avenida Paulista vai de 1957 a 1967, sendo que Lina vive na Bahia entre 1958 e 1964, per�odo em que ela p�de aprofundar seu conhecimento e viv�ncia com a arte "popular" brasileira. H� uma passagem dela muito reveladora no livro "Tempos de Grossura: o Design no Impasse", de 1994: "O reexame da hist�ria recente do pa�s se imp�e. O balan�o da civiliza��o brasileira 'popular' � necess�rio, mesmo se pobre � luz da alta cultura".
"Este balan�o n�o � o balan�o do 'folklore', sempre paternalisticamente amparado pela cultura elevada, � o balan�o 'visto do outro lado', o balan�o participante. � o Aleijadinho e a cultura brasileira antes da Miss�o Francesa. � o nordestino do couro e das latas vazias, � o habitante das vilas, � o negro e �ndio. Uma massa que inventa, que traz uma contribui��o indigesta, seca, dura de digerir."
N�o � � toa que a primeira exposi��o tempor�ria inaugurada no museu da avenida Paulista em 1969, � justamente "A M�o do Povo Brasileiro", em torno de arte "popular". A montagem foi realizada no primeiro andar do museu, o que constituia uma fric��o com a pinacoteca do segundo andar. N�s queremos revisitar essa exposi��o, refaz�-la, sem obviamente construir uma r�plica perfeita, o que seria imposs�vel.
Arquivo Masp | ||
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No Porto de Santos, Pietro Maria Bardi (� dir.) observa o desembarque de "Madame C�zanne em Vermelho", tela adquirida para o acervo do Masp |
Voc� est� recuperando tamb�m a expografia criada por Lina para as outras sedes do museu, na rua 7 de Abril e na Faap?
Quando compreendemos que o programa da arquitetura do Masp na Paulista � t�o importante para o conceito e a voca��o do museu, n�s entendemos que seria preciso resgat�-lo, revisit�-lo, numa esp�cie de pesquisa arqueol�gica.
Foi nesse sentido que recuperamos a transpar�ncia do subsolo, as vitrines do restaurante e da biblioteca. No primeiro andar, recuperamos a sala ampla, a planta livre, sem colunas ou pain�is, pois quando eu cheguei havia ali uma expografia que compartimentava o espa�o em v�rias salas menores.
N�o se trata de fazer um ju�zo sobre as escolhas antecedentes, pois cada gest�o, cada curador, deve encontrar seu programa. N�s entendemos que, nesse processo, era importante revistar algumas expografias de Lina Bo Bardi que antecederam o Masp na Paulista –a da Faap, que reconstru�mos no segundo subsolo do museu, e a da rua 7 de Abril, que reconstru�mos no primeiro andar, ambas da d�cada de de 1950.
Manter os espa�os amplos, a planta livre, a transpar�ncia, algo que tem tamb�m um princ�pio democr�tico, n�o � f�cil, pois a primeira solu��o que se pensa � justamente a de construir paredes e fazer salas, o que de certa maneira facilita a vida do curador. Nesse processo, devo dizer que a exposi��o de Giancarlo Latorraca, "Maneiras de Expor: Arquitetura Expositiva de Lina Bo Bardi", no Museu da Casa Brasileira, em 2014, foi muito importante.
Voc� teve alguma surpresa com o acervo do museu?
Muitas surpresas, afinal s�o cerca de 10 mil objetos no acervo e mais de 200 mil documentos nos arquivos. Ainda n�o vi tudo. Em dezembro, 40 dias ap�s chegar ao museu, n�s come�amos o projeto "Masp em Processo", que tinha tanto o lado do redescobrimento e arqueologia da arquitetura quanto a de explora��o do acervo.
Tratava-se de uma exposi��o em processo, uma esp�cie de ensaio de transi��o, sem lista de obras fechada, definitiva, e com a montagem aberta ao p�blico, que poderia participar, sugerir obras para a exposi��o. Quase todos os dias Tom�s Toledo, o curador assistente, e eu desc�amos � reserva t�cnica para puxar os traineis onde se encontram as pinturas, para ver obras, e sub�amos com algumas delas para o espa�o.
Assim fomos aos poucos nos aproximando delas, convivendo com elas, aprendendo com elas, um processo que continua agora com as exposi��es mais tradicionais, com listas de obras consolidadas. Eu, afinal, venho de um trabalho sobretudo com o contempor�neo, o final do s�culo 20, e todas essas longas e profundas hist�rias do museu e de seu acervo s�o novas para mim.
Agora, com as exposi��es de "Arte do Brasil at� 1900" (curada com o Tom�s) e "Arte do Brasil no S�culo 20" (curada com o Fernando Oliva e a Luiza Proen�a, que chegaram depois ao museu), e mais tarde com "Arte da Fran�a" e "Arte da It�lia", temos a oportunidade de trabalhar com essas obras de maneira planejada, com uma lista de obras definida, e com as expografias da Lina.
Nossa pesquisa tamb�m pode chegar a um outro patamar, trazendo documentos e fotografias dos arquivos relacionados aos artistas e �s obras que s�o expostas ao lado delas, na mesma parede. Uma grande surpresa foi encontrar na biblioteca e no acervo esses arquivos t�o extensos e ricos.
Outra grande surpresa foi a cole��o de 101 desenhos doada pelo m�dico psiquiatra Os�rio Cesar, que foi casado com Tarsila do Amaral, e trabalhou no Hospital do Juqueri. S�o desenhos extraordin�rios, feitos na Escola Livre de Artes Pl�sticas dirigida por Cesar no Juqueri, e nunca mostrados no Masp. Vamos fazer uma exposi��o deles em breve.
Outras surpresas foram um conjunto de mais de cem obras doadas por Le�n Ferrari ao museu e um um grupo de mais de cem vestidos, feitos entre 1968 e 1972, por artistas como Volpi, Barsotti, Lula Cardoso Ayres, Antonio Bandeira, Antonio Maluf, Nelson Leirner, Aldemir Martins, entre outros, da cole��o Rhodia. H� tamb�m uma surpreendente cole��o kitsch, com mais de 2.000 pe�as, doadas por Olney Kr�se.
Depois dessa fase, que tipo de mostra est� nos planos da equipe, a partir do ano que vem?
A partir do ano que vem, vir�o as exposi��es com empr�stimos. Teremos mostras hist�ricas, contempor�neas, coletivas, individuais. Eu tenho um interesse nesse sentido de "hist�rias", que em portugu�s pode apontar tanto para a hist�ria dos acontecimentos, das ideias, da arte, quanto para a fic��o e a narrativa pessoal, da� a import�ncia de seu car�ter plural, aberto, em processo.
Minha grande contribui��o para o n�cleo hist�rico da 24� Bienal de S�o Paulo, em 1998, da qual fui curador-adjunto com o Paulo Herkenhoff, curador-chefe, foi inserir o "s" em seu t�tulo: "Antropofagia e Hist�rias de Canibalismo". Em 1996 eu fiz um cat�logo com Valeska Soares cujo t�tulo era tamb�m "Hist�rias"; em 1999, no Reina Sof�a, em Madri, eu curei "F[r]icciones", com Ivo Mesquita, que tamb�m falava dessa mescla entre o cr�tico, o ficcional e o hist�rico, a partir de Borges; novamente em 2012, curei uma exposi��o de Adriana Varej�o que se chamava "Hist�rias �s Margens"; e, no ano passado, "Hist�rias Mesti�as", com Lilia Schwarcz.
Pretendo agora continuar com essas hist�rias, n�o tanto contando-as, mas construindo-as em formato de exposi��o e livro-cat�logo. Algumas hist�rias que precisam ser exploradas s�o as da escravid�o, as hist�rias amer�ndias, as hist�rias da coloniza��o (� espantoso que a historiografia da arte brasileira tenha passado d�cadas falando de arte colonial e da Miss�o Francesa sem falar da viol�ncia da coloniza��o), as hist�rias da sexualidade, as hist�rias do carnaval, as hist�rias da inf�ncia, as hist�rias da loucura.
Voc�s pretendem iniciar algum outro acervo nesse campo hist�rico?
Temos interesse especial na arte ind�gena, e � de fato o �nico acervo que me pareceu essencial o Masp ter e que vamos iniciar. Neste momento, estamos negociando comodatos e doa��es com dois acervos. Apesar de inexistente no museu, esse acervo faz muito sentido, tendo em vista um hist�rico de exposi��es desde 1949, interrompido apenas em 1990. Ao longo desse per�odo houve mostras como "Arte Ind�gena" (1949), "Amaz�nia" (1972), "Arte Kayap�" (1983), "A Vis�o Estereotipada do �ndio do Brasil" (1983), "Alguns �ndios" (de Eduardo Viveiros de Castro e Vanessa Lea, em 1983), "Arte Caraj�" (1984), "�ndios Yanomami" (1985), "Arte Ind�gena Kaxinaw�" (1987), "A Maloca Mar�bo" (1988), "Arte Plum�ria Ind�gena do Paraguai" (1989), "Armadilhas Ind�genas" (1990) e "Projeto Xingu" (1990). Vamos retomar esse interesse, agora com um acervo, o que nos permitir� um engajamento mais continuado e profundo, inclusive com um curador-adjunto para trabalhar conosco.
H� tamb�m um interesse particular no que antes se chamava arte popular, uma denomina��o perversa, que precisa ser revista e que mais uma vez est� no hist�rico e na voca��o do museu. N�o apenas vamos fazer "A M�o do Povo Brasileiro" como temos interesse no que eu chamo de artistas vision�rios, aqueles autodidatas, muitas vezes reclusos e de origem humilde, que operam foram do circuito ortodoxo de arte moderna e contempor�nea e da academia.
Trata-se de uma denomina��o extensa, e descritiva, e me parece que simplesmente "artistas" seria o suficiente, mas o que queremos de fato � riscar de nosso vocabul�rio palavras como "primitivo", "na�f", "ing�nuo", pois s�o denomina��es violentamente paternalistas, elitistas, preconceituosas, hierarquizantes, e que colocam o legado europeu das classes dominantes acima de todo o resto.
Nesse sentido, temos interesse em alguns artistas que encontramos no acervo e que foram importantes para o museu: Agostinho Batista de Freitas (que n�o t�nhamos na cole��o apesar da grande liga��o com Bardi, mas que recentemente conseguimos, por meio de uma doa��o do casal Lais e Telmo Porto), Jos� Antonio da Silva, Maria Auxiliadora, Rafael Borjes e C�ssio M'Boy.
Pensamos tamb�m em reposicionar certos brasileiros, como Djanira da Motta e Silva, figura central na arte brasileira do s�culo 20, mas que permanece absolutamente mal compreendida, esnobada pelo circuito. Recentemente recebemos uma doa��o extraordin�ria, de Orandi Momesso, de uma obra-prima da artista, "Vendedora de Flores", de 1947.
Precisamos encontrar outras narrativas e leituras para o s�culo 20, que n�o passem necessariamente pela abstra��o geom�trica e pela cr�tica formalista e acad�mica e possam incluir figuras como Caryb�, Aldemir Martins, Rubem Valentim, Mestre Didi, assim como arte ind�gena e arte "popular".
� preciso, ainda, reposicionar a obra de artistas como Portinari, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro e mesmo Tarsila do Amaral, sem o tradicional foco excessivamente formalista e euroc�ntrico. Com Tarsila, por exemplo, estamos negociando com o Art Instituto of Chicago uma parceria para uma exposi��o, em torno da Tarsila "popular". Isso tudo j� � trabalho para muitos anos.
MARCOS AUGUSTO GON�ALVES, 59, � editor da "Ilustr�ssima".
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