A educa��o n�o cognitiva ganha espa�o
RESUMO Ap�s pesquisas nos Estados Unidos pelo menos desde os anos 60, o ensino pautado mais por tra�os da personalidade e menos pela intelig�ncia come�a a ganhar espa�o em escolas p�blicas do Brasil. A educa��o n�o cognitiva estimula capacidades como autodisciplina, curiosidade, persist�ncia e resili�ncia.
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A estudante carioca La�s Ferreira, 16, discorre com firmeza diante de uma pequena plateia sobre seus planos para o futuro: "Quero ser cientista e descobrir como controlar a fus�o nuclear".
Mas n�o foi sempre assim. H� um ano, quando ingressou no Col�gio Estadual Chico Anysio, La�s tremia cada vez que lhe passavam a palavra. Em uma apresenta��o, chegou a "congelar" e ficar olhando para o teto sem conseguir falar.
Localizado no bairro de Andara�, no Rio de Janeiro, e inaugurado em 2013, o Chico Anysio tem apar�ncia de escola convencional, mas o cotidiano dos alunos de classe m�dia baixa que o frequentam difere bastante da realidade das salas de ensino m�dio p�blico tradicionais.
Maria Eug�nia | ||
No curr�culo de hor�rio integral, aulas de matem�tica, portugu�s e hist�ria se misturam com a elabora��o de projetos em que determina��o, autonomia, desenvoltura e curiosidade s�o os protagonistas.
Segundo os professores, esses trabalhos estimulam os alunos -que prestam prova para ingressar na escola- a se preparar, pesquisar, interagir e cooperar.
La�s concorda. Integrante de um grupo que pesquisava a exist�ncia de vida fora da Terra no ano passado, ela se apaixonou por ci�ncias e, � medida em que come�ou a dominar o assunto, foi perdendo a timidez. "Na minha escola anterior, s� o professor era dono da palavra. Eu achava que tudo o que eu falasse seria inferior. Ent�o, me acostumei a ficar quieta."
A baixa autoestima de La�s � um aspecto comum dos alunos de sua faixa et�ria no ensino p�blico do Rio de Janeiro. A constata��o surgiu de uma avalia��o feita com os estudantes pela Secretaria Estadual de Educa��o h� cerca de tr�s anos. Em busca de uma sa�da para reverter esse quadro e melhorar a aprendizagem, o governo fez uma parceria com o Instituto Ayrton Senna (IAS) para transformar a maneira de ensinar.
A f�rmula adotada se baseia nos resultados de uma nova corrente de pesquisa que indicam grande import�ncia de alguns tra�os da personalidade, como disciplina e autocontrole, para o desempenho escolar.
TALENTOS
A curiosidade sobre como caracter�sticas pessoais influenciam o sucesso individual � antiga. Em "A Rep�blica", Plat�o se referia, de forma metaf�rica, �s almas de ouro, prata e bronze como atributos que talhavam os homens, respectivamente, para o exerc�cio do governo, da guerra e das atividades manuais.
A busca incessante da humanidade pelo aumento do bem-estar social � o elemento que permeia o interesse pelas chaves do desenvolvimento dos talentos de cada indiv�duo.
Mas, com o passar do tempo, consolidou-se a cren�a de que um �nico fator -a intelig�ncia- fazia, de fato, a diferen�a. � o que o jornalista americano Paul Tough chama de "a hip�tese cognitiva" em seu best-seller "Uma Quest�o de Car�ter" (Intr�nseca, 2014).
Talvez tenha contribu�do para essa primazia a maior facilidade em se mensurar as habilidades cognitivas, que incluem a capacidade de leitura, de fazer contas e de identificar padr�es.
O primeiro teste de intelig�ncia moderno foi desenvolvido no in�cio do s�culo passado por Alfred Binet e Th�odore Simon. Um pouco depois, a chamada escala Binet-Simon seria aprimorada por Lewis Terman e se consolidaria, com alguns ajustes, como o teste de QI que conhecemos hoje.
A motiva��o de Binet era justamente identificar casos de atraso cognitivo nas escolas p�blicas de Paris para que fossem desenvolvidos programas educacionais destinados a ajudar as crian�as com dificuldades.
Pelo mundo afora, surgiram pol�ticas p�blicas com objetivo parecido. Uma das interven��es mais badaladas ocorreu na cidade de Ypsilanti, em Michigan, nos Estados Unidos, no in�cio da d�cada de 60, com o nome de Perry Preschool. Com foco na primeira inf�ncia, o programa recrutou crian�as vulner�veis socialmente e com baixo QI e as dividiu em dois grupos.
Um deles foi matriculado em uma escola na qual bons professores os estimulavam a fazer escolhas e desenvolver suas pr�prias ideias. O outro -chamado nesse tipo de estudo de grupo de controle- seguiu o curso normal de sua vida na pobreza.
Ambos foram acompanhados por pesquisadores at� a idade adulta. Os primeiros resultados da interven��o foram animadores. As pr�ticas pedag�gicas implementadas fizeram com que o grupo de tratamento tivesse desempenho muito melhor que o de controle em testes de intelig�ncia feitos ainda na idade pr�-escolar.
Maria Eug�nia | ||
Esses ganhos cognitivos, por�m, se dissiparam com o tempo. Aos dez anos, a capacidade intelectual dos alunos que passaram pelo Perry, ent�o matriculados em escolas p�blicas normais, tinha se igualado novamente � das crian�as deixadas � pr�pria sorte desde o in�cio. Foi um balde de �gua fria nos idealizadores do projeto.
No entanto, com o passar das d�cadas, apesar dos n�veis de intelig�ncia pr�ximos, as crian�as submetidas � experi�ncia do Perry foram mais bem-sucedidas na vida do que as do grupo de controle.
E isso se verificava num amplo leque de mensura��es: mais escolaridade, maior chance de estar empregado aos 27 anos, sal�rios cerca de 40% mais altos que a m�dia aos 40, menor incid�ncia de envolvimento com atividades il�citas e por a� vai.
Esses resultados interessaram James Heckman, professor da Universidade de Chicago. Ganhador do pr�mio Nobel de Economia em 2000 pela elabora��o, na d�cada de 70, de um modelo estat�stico sofisticado, Heckman tem colocado seu prest�gio e sua extraordin�ria habilidade com c�lculos complexos a servi�o de �reas como desenvolvimento na primeira inf�ncia.
Intrigado pelos efeitos do Perry, ele se debru�ou sobre relat�rios que compilavam observa��es dos professores acerca do comportamento das crian�as.
Depois de tr�s anos de an�lise, Heckman e sua equipe conclu�ram que caracter�sticas como curiosidade, autocontrole e facilidade de relacionamento com os demais -batizadas de habilidades n�o cognitivas ou compet�ncias socioemocionais- explicavam nada menos do que dois ter�os dos ganhos advindos da participa��o no Perry.
Os resultados dessas pesquisas, que come�aram a ser publicadas em 2010, confirmavam ind�cios captados por experimentos anteriores, como o teste do marshmallow feito no fim da d�cada de 60 pelo psic�logo Walter Mischel.
Buscando analisar t�cnicas usadas para controlar o impulso infantil, Mischel submeteu crian�as de quatro anos a uma escolha dif�cil. Sentadas sozinhas, uma de cada vez, em uma sala, elas precisavam decidir entre tocar um sino e comer o marshmallow imediatamente ou esperar um pesquisador voltar e faturar dois doces em vez de um.
Mais de uma d�cada depois de realizar o teste, Mischel voltou a procurar os participantes do experimento, j� adolescentes, e descobriu que as crian�as que conseguiram esperar mais tempo antes de devorar a guloseima tiveram desempenho acad�mico muito superior �s outras.
Os achados de Mischel ofereciam pistas sobre a import�ncia das compet�ncias socioemocionais. Al�m de avan�ar nessas conclus�es, os estudos de Heckman pareciam indicar poss�veis caminhos para o desenvolvimento dessas habilidades.
"As crian�as do Perry n�o recebiam instru��es diretas. Os professores as estimulavam a fazer suas escolhas, iam fazendo perguntas, dando sugest�es. Isso ajudou a desenvolver autoconfian�a e curiosidade", diz o economista brasileiro Fl�vio Cunha.
Hoje professor da Universidade Rice, Cunha trabalhou com Heckman em pesquisas sobre habilidades n�o cognitivas durante seu doutorado em Chicago. Segundo ele, quando come�aram, h� pouco mais de dez anos, era dif�cil encontrar pesquisadores interessados pelo tema: "Nos intrigava o fato de que as grandes empresas davam valor a essas caracter�sticas e a academia n�o".
CONSCIENCIOSIDADE
Mesmo na psicologia, essa linha de estudo interessava poucos especialistas, normalmente ligados a departamentos de recursos humanos. Mas havia exce��es. Uma delas era a pesquisadora Angela Duckworth, da Universidade da Pensilv�nia. Orientada pelo renomado psic�logo Martin Seligman no doutorado, Duckworth focou sua pesquisa na import�ncia da autodisciplina para o desempenho escolar.
Em um teste conduzido pelos dois entre 2002 e 2003, foram medidos tanto a autodisciplina quanto o QI de alunos que iniciavam o �ltimo ano do ensino fundamental. A conclus�o surpreendente dos pesquisadores foi que esse tra�o da personalidade era um indicador muito mais forte do desempenho escolar futuro dos adolescentes do que sua intelig�ncia.
A autodisciplina � considerada uma faceta da "conscienciosidade", que abrange outras caracter�sticas como organiza��o, persist�ncia e resili�ncia. A conscienciosidade, por sua vez, � um dos cinco atributos que formam os chamados "big five" (os grande cinco) da psicologia. Os outros quatro s�o: abertura a experi�ncias (que inclui curiosidade e criatividade), extrovers�o, amabilidade e instabilidade emocional (ou neuroticismo).
Ao mensurar o impacto dessas caracter�sticas sobre resultados concretos na vida de crian�as e adolescentes -descontando dos mesmos os efeitos causados apenas pela intelig�ncia- as pesquisas t�m forte apelo por dois motivos principais.
O primeiro � a indica��o de que tra�os de personalidade podem ter um impacto pr�ximo, igual ou at� maior do que a intelig�ncia na determina��o do sucesso escolar. Crian�as curiosas e com maior propens�o a cooperar com os demais tendem a atingir maior escolaridade do que outras que n�o tenham essas caracter�sticas bem desenvolvidas. Tra�os como perseveran�a, disciplina e responsabilidade (reunidos sob o guarda-chuva da conscienciosidade) levam n�o s� a mais anos de estudo, como tamb�m a melhor desempenho no trabalho, maior longevidade e menor propens�o a envolvimento com crime e viol�ncia.
O outro aspecto das habilidades n�o cognitivas que tem animado estudiosos e educadores � sua maleabilidade. Estudos indicam que, ao contr�rio da intelig�ncia -que se torna relativamente est�vel e dif�cil de ser alterada a partir de aproximadamente 11 anos-, as compet�ncias socioemocionais continuam flex�veis, em alguns casos at� a vida adulta.
"Isso � importante do ponto de vista de pol�tica p�blica", afirma o economista Daniel Santos, da USP.
Santos participa de um pequeno grupo de pesquisadores que, junto com o IAS, tem estudado as habilidades n�o cognitivas no contexto brasileiro. Seu principal trabalho at� agora foi uma avalia��o do impacto das compet�ncias socioemocionais sobre a aprendizagem de mais de 20 mil alunos da rede p�blica estadual do Rio.
Os resultados indicaram, por exemplo, que estudantes conscienciosos conseguem notas mais altas em matem�tica. Os mais curiosos tendem a se destacar em portugu�s.
A OCDE (Organiza��o de Coopera��o e de Desenvolvimento Econ�micos), que re�ne pa�ses ricos e alguns emergentes importantes, tamb�m voltou seu olhar -h� tr�s anos- para as habilidades n�o cognitivas. E, na �ltima semana, lan�ou o livro "Skills for Social Progress" (habilidades para progresso social), parte de um novo projeto da institui��o, no qual afirma que as compet�ncias socioemocionais n�o funcionam de forma isolada, mas que sua intera��o com a capacidade cognitiva aumenta as chances de sucesso das crian�as.
"As habilidades n�o cognitivas podem ser t�o importantes quanto as cognitivas para resultados educacionais, do mercado de trabalho e sociais", diz Koji Miyamoto, do Centro para Pesquisa Educacional e Inova��o da OCDE.
Al�m do livro, o novo projeto da organiza��o, coordenado por Miyamoto, incluir� uma pesquisa pr�pria com coleta de dados a partir de 2015. O objetivo � chegar a um diagn�stico pr�prio mais preciso para orientar a formula��o de pol�ticas p�blicas, jogando luz em �reas ainda obscuras, como as habilidades que seriam mais relevantes e como elas poderiam ser desenvolvidas.
AVALIA��ES
A mensura��o das compet�ncias socioemocionais � outro ponto a avan�ar. As avalia��es que indicam quem � mais ou menos consciencioso ou curioso se baseiam na opini�o de pais, professores e dos pr�prios estudantes.
O problema � que ser dedicado pode significar estudar tr�s horas por dia em casa para um aluno e seis horas para seu vizinho. Os pesquisadores se dedicam atualmente a elaborar mecanismos de ajuste que fa�am com que as respostas de diferentes indiv�duos sejam compar�veis.
Apesar dessas lacunas que precisam ser fechadas, iniciativas que buscam integrar o est�mulo ao desenvolvimento de habilidades n�o cognitivas ao curr�culo escolar come�am a se expandir.
"Toda crian�a do meu distrito escolar precisa saber o que significa ser resiliente", diz Jennifer Adams, secret�ria de Educa��o da rede p�blica de Ottawa-Carleton. O distrito escolar canadense � um dos pioneiros dessa nova linha educacional que procura ir al�m do conte�do das disciplinas. Para aprender resili�ncia, os alunos pesquisam como os l�deres do pa�s desenvolveram e demonstraram a habilidade.
No Brasil, al�m do Rio de Janeiro, experi�ncias com foco nas habilidades n�o cognitivas t�m surgido em outros lugares, como a cidade de S�o Paulo, onde alunos dos �ltimos anos do ensino fundamental desenvolvem os chamados trabalhos colaborativos de autoria.
Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Vargem Grande, por exemplo, um grupo de alunos elaborou a proposta de cria��o de uma pra�a depois de pesquisar e identificar a car�ncia de �reas de lazer. "Como as propostas partem deles, eles ficam mais motivados e, � medida que v�o pesquisando, se sentem mais donos daquele conhecimento", diz Gilvana Oliveira Prado, coordenadora pedag�gica da escola. A r�pida evolu��o tecnol�gica faz com que essa capacidade de aprender a aprender se torne mais valorizada.
"Essas habilidades ser�o, cada vez mais, habilidades de sobreviv�ncia", diz a jornalista Amanda Ripley, autora do livro "As Crian�as Mais Inteligentes do Mundo" (Tr�s Estrelas, 2014).
Conforme computadores assumem as atividades repetitivas, aumenta a import�ncia de profissionais que consigam pesquisar, inovar e encontrar solu��es para problemas.
Pesquisadores do tema, como Richard Murnane, de Harvard, ressaltam a import�ncia de ativos como um amplo vocabul�rio para lidar com esses desafios. O problema � que crian�as de classes sociais menos favorecidas j� largam em flagrante desvantagem em quesitos como a linguagem.
Os estudiosos Betty Hart e Todd Risley mostraram que crian�as pequenas nascidas em fam�lias de profissionais qualificados dominam um vocabul�rio de aproximadamente 1.100 palavras, mais do que o dobro das 500 usadas por aquelas cujos pais vivem de transfer�ncia de renda.
O modelo de ensino tradicional em que o mestre fala e o aluno escuta e anota se encarrega de ampliar esse hiato at� a adolesc�ncia. N�o por acaso muitos alunos do Chico Anysio relatam ter enfrentado grande dificuldade inicial em interagir com os demais. "Passei seis meses sem falar com ningu�m", conta Marcos Vinicius Bento, 16. O est�mulo da nova escola � curiosidade tem contribu�do para que ele descubra o prazer e a utilidade da
linguagem. Menos t�mido, passou a participar das discuss�es das aulas e sess�es de projetos e at� a vender aos amigos bottons feitos pelo primo, a fim de ajudar no or�amento familiar.
A conquista da comunica��o descrita por Marcos � o que pesquisadores esperam que possa acontecer em maior escala se mais escolas se abrirem ao est�mulo do desenvolvimento das compet�ncias socioemocionais. Por enquanto, tanto os que se dedicam � pesquisa do assunto quanto os que implementam pol�ticas com base nos estudos existentes comemoram os ind�cios alentadores.
No Rio, um deles � o fato de que os alunos da Chico Anysio t�m obtido resultado 60% acima da m�dia da rede em avalia��es bimestrais feitas pelo governo.
"O que estamos tentando mostrar � que n�o � verdade que se voc� � pobre e se seus pais n�o t�m escolaridade elevada voc� n�o vai conseguir", diz Ant�nio Neto, secret�rio de Educa��o do Rio.
�RICA FRAGA, 39, � rep�rter especial da Folha.
MARIA EUG�NIA, 51, � ilustradora.
Livraria da Folha
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