Jacques Ranci�re fala � Folha sobre democracia
RESUMO Conhecido por seus textos que relacionam est�tica e pol�tica, Jacques Ranci�re tem livro sobre democracia lan�ado no pa�s. Nesta entrevista, explica sua vis�o de que h� um saber n�o especializado, partilhado por todos, que deve se opor � pretens�o dos que julgam ter direito a exercer o poder por saberem mais.
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Jacques Ranci�re, 74, � um dos disc�pulos mais conhecidos do fil�sofo marxista Louis Althusser (1918-90), embora tenha se distanciado do professor, e do pr�prio marxismo, ao questionar suas interpreta��es do movimento do Maio de 68 na Fran�a.
Desde ent�o, Ranci�re tem se dedicado ao estudo das classes oper�rias -"A Noite dos Prolet�rios" (Companhia das Letras, 1988, esgotado)- e das rela��es entre pol�tica e est�tica, em que ele defende que todos temos uma capacidade de sentir e aprender.
Essa capacidade n�o especializada, apresentada em "O Mestre Ignorante" (Aut�ntica, 2002), e presente em diversas de suas obras, aparece, no cinema, em sua defesa de uma pol�tica do amador, segundo a qual todo e qualquer espectador det�m a capacidade de tra�ar novas vias de pensamento a partir das hist�rias de sua pr�pria vida e daquelas dos filmes.
Em "O �dio � Democracia" [trad. Mariana Echalar, Boitempo, 125 p�gs., R$29], de 2005, lan�ado agora no Brasil, o fil�sofo franc�s enumera e explica as origens de diversos argumentos segundo os quais a democracia � "uma crise da civiliza��o que afeta a sociedade e o Estado atrav�s dela". No discurso dos que odeiam a democracia, escreve ele, o governo democr�tico "� mau quando se deixa corromper pela sociedade democr�tica que quer que todos sejam iguais e que todas as diferen�as sejam respeitadas".
� em defesa da democracia como "poder daqueles que n�o t�m t�tulos ao poder" e contra o "confisco olig�rquico do poder" que o fil�sofo busca retomar, nesse ensaio, princ�pios democr�ticos fundamentais, como a escolha do governo por meio de sorteio.
Ele fala sobre essas e outras quest�es em entrevista � Folha por telefone de sua casa em Paris.
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Folha - O que � democracia?
Jacques Ranci�re - A democracia, no senso estrito, � o poder do povo. Por�m, se voltarmos um pouco � origem, ela � um poder em oposi��o aos que pretendem ter o poder: os ricos, os nobres, os s�bios etc. Ela �, para mim, um princ�pio, um poder um tanto excepcional porque, em ess�ncia, � o poder daqueles que n�o t�m t�tulos ao poder, daqueles que n�o t�m nenhuma compet�ncia particular para governar, oposto a todas as outras formas que tradicionalmente legitimam o poder, seja pelo nascimento, pela riqueza ou pela ci�ncia. Ela excede toda forma de governo particular.
O ensaio � de 2005. Hoje, ap�s a crise de 2008, o debate sobre o v�u, a rea��o contra a lei que viria a permitir o casamento gay na Fran�a, o que o sr. acrescentaria �s ideias do ensaio?
Eu creio que esse ensaio foi preciso em seu diagn�stico. De uma certa forma, ele anunciava aquilo que vimos depois, por exemplo, no caso do v�u: uma tend�ncia a estigmatizar as classes menos ricas, menos bem integradas.
N�s pudemos confirmar essa tend�ncia de legitima��o do car�ter olig�rquico do poder, de todas as novas formas de racismo em nome de uma certa ideia de rep�blica, de universalismo, de laicidade. Vimos se confirmar, por um lado, a tend�ncia de confisco olig�rquico do poder cada vez mais forte, e vimos tamb�m se manter essa esp�cie de campanha ideol�gica em nome dos grandes princ�pios da rep�blica, da vida em sociedade, estigmatizando cada vez mais os que est�o sem trabalho, os que n�o t�m a mesma cor de pele, os que n�o t�m a mesma religi�o.
Podemos dizer, infelizmente, que, de alguma forma, a ofensiva antidemocr�tica se acelerou muito nesse meio tempo. Uma s�rie de argumentos emprestados da esquerda, da psican�lise, se tornaram argumentos de persuas�o reacion�rios para estigmatizar o m�ximo poss�vel de pessoas.
O ensaio trata da acusa��o de populismo que recai sobre aqueles que atacam o discurso dos especialistas. Como responder a esse tipo espec�fico de discurso de �dio � democracia?
Na Am�rica Latina, especificamente, h� uma tradi��o na qual o populismo foi identificado como uma forma de governo. Na Fran�a, e na Europa, � diferente. O populismo � uma no��o nova, lan�ada para estigmatizar toda tentativa de reivindica��o de um poder real do povo contra o confisco do poder por aqueles que se consideram a elite. Acho necess�rio resistir ao uso desse conceito e dizer que ele, hoje, � um meio c�modo de legitimar o poder das elites, de seus experts, das finan�as internacionais, em nome da capacidade, da compet�ncia. Na Fran�a, ser populista quer dizer ser de extrema direita.
� absolutamente necess�rio resistir a essa argumenta��o e colocar em evid�ncia uma ideia efetiva de democracia. Por isso que, em "O �dio � Democracia", eu relembrei alguns princ�pios democr�ticos origin�rios, como o fato, por exemplo, de que o verdadeiro governo democr�tico passa pelo sorteio e por mandatos extremamente curtos. � preciso recolocar em primeiro plano todas as formas em que h� um controle verdadeiro que o povo pode exercer sobre aqueles que falam em seu nome e que governam em seu nome.
O sr. fala de um governo que busca ter o controle sobre a esfera p�blica. Como o povo pode garantir que o espa�o p�blico continue sendo um espa�o de conflito e de encontro?
Podemos imaginar formas de constitui��o que infelizmente n�o existem em lugar nenhum e que sejam fundadas sobre mandatos curtos, a revogabilidade dos eleitos, assembleias populares, controle dos eleitos na forma de sorteio. H� uma s�rie de medidas constitucionais que permitem o exerc�cio do poder efetivo do povo.
Como isso n�o existe hoje, devemos ir por outras vias, que passam pela exist�ncia de formas de discuss�o e de informa��o que estejam separadas da esfera midi�tica oficial. Foi o que vimos nas diferentes manifesta��es pelo mundo, desde a Primavera �rabe at� o movimento do 15 de Maio na Espanha, ou os movimentos que aconteceram na Gr�cia, na Turquia, no Brasil, nos quais, �s vezes, partindo de demandas espec�ficas, ou mais ou menos menores, como o caso do jardim em Istambul ou a quest�o do pre�o do transporte no Brasil, vimos acordar uma atividade popular aut�noma.
Hoje h� uma esperan�a para a democracia contanto que possam existir formas de organiza��o que sejam a continua��o desses movimentos, organiza��es que sejam aut�nomas em rela��o � vida pol�tica tal como o Estado a organiza.
Uma melhora na distribui��o de renda pode influenciar os argumentos de �dio?
O poder de todos n�o � simplesmente o alargamento, o desenvolvimento de uma classe m�dia. Isso pode, por um tempo, favorecer as formas democr�ticas, mas n�o necessariamente, como costumam dizer: se h� desenvolvimento econ�mico, h� desenvolvimento de uma classe m�dia e ent�o h� o desenvolvimento da democracia. N�o h� evid�ncias disso.
A democracia � o desenvolvimento de toda uma s�rie de interven��es pol�ticas aut�nomas e isso n�o � produzido automaticamente por determinadas formas do desenvolvimento econ�mico nem de transforma��es de classes sociais. � muito bom que haja um alargamento da esfera daqueles que possuem a riqueza, mas esses alargamentos s�o, muito comumente, provis�rios. O movimento � um pouco ao inverso, � � medida que h� inst�ncias populares de controle que se pode esperar ter uma melhor distribui��o de renda.
Em "O Mestre Ignorante", o sr. j� falava da igualdade que n�o deve ser um objetivo da democracia, mas um ponto de partida. Como as no��es que estavam ali influenciaram as ideias de "O �dio � Democracia"?
O que est� no centro de "O Mestre Ignorante", e que tomei de Joseph Jacotot (1770-1840), � a ideia fundamental de que a igualdade n�o � um objetivo, mas um ponto de partida a verificar, o que quer dizer que se deve agir na pressuposi��o de que falamos a iguais, de que agimos com iguais. Tentei desenvolver isso � esfera pol�tica p�blica, dizendo que existe democracia contanto que haja o reconhecimento de uma capacidade de pensar que pertence a todos, e que se op�e a toda capacidade de pensamento que seja especializada.
O que vemos hoje � o poder dos experts. A ideia da democracia atualiza essa capacidade de todos. Isso n�o quer dizer que todos participem do governo, isso jamais aconteceu, mas sim que se busca organizar formas de vida coletiva fundadas sobre essa ideia de uma capacidade partilhada, diferente das l�gicas tradicionais de partidos revolucion�rios, de vanguarda, ou fundados na ci�ncia. A pol�tica foi pensada como uma forma de governar os ignorantes, e na democracia os que governam n�o s�o nem mais ignorantes nem mais s�bios que os outros.
Existe uma rela��o entre a democracia como regime pol�tico e a literatura como regime da palavra, tal como aparece em alguns de seus ensaios sobre literatura em "La Parole Muette" (a palavra muda, Hachette, 1998)?
N�o h� uma rela��o completamente direta. O que eu tentei mostrar � que, na literatura, como na democracia, h� o poder de uma palavra que n�o � controlada, que n�o � a que vem de cima.
A democracia se funda num tipo de circula��o da palavra, na possibilidade de que qualquer um possa se apropriar das palavras que circulam, que possa fazer palavras de ordem para sua pr�pria vida. A literatura no sentido moderno, e principalmente por meio do romance do s�culo 19, se constitui pela supress�o de toda hierarquia, do sistema tradicional de "belles lettres" que era fundado na ideia de uma hierarquia de temas, de estilos. H� literatura moderna a partir do momento em que n�o h� mais temas que sejam interessantes e temas que n�o sejam interessantes, personagens que valem a pena e personagens que n�o valem a pena; a revolu��o liter�ria � isso.
Quando se tenta elaborar um verdadeiro poder do povo na pol�tica h� a ideia de uma capacidade de qualquer um de sentir, de viver, que � o centro da literatura moderna e que est� na origem dessa renova��o das formas de literatura.
Quando trata de cinema, como em "O Destino das Imagens" e "As Dist�ncias do Cinema" (Contraponto, 2012), o sr. fala de uma pol�tica do amador. Essa pol�tica pode ser empregada em outras artes?
Acho que h� uma especificidade do cinema porque � uma arte que nasceu tardiamente e que n�o conheceu as formas de organiza��o hier�rquicas. N�o havia academia de "belo cinema" como as academias de "belles lettres" e a academia de belas artes. Al�m disso, � uma arte que nasceu como uma curiosidade, uma atra��o de feiras, ent�o foi desde o come�o um objeto n�o identificado. O que aconteceu � que o cinema foi tragado para a esfera da legitimidade art�stica, e existe agora uma integra��o do cinema � cultura elitista e tamb�m � cultura universit�ria.
Quando falo de uma pol�tica de amador, falo de uma pol�tica que busca preservar essa esp�cie de indecis�o do cinema, uma abertura a todo p�blico poss�vel. � claro que isso pode existir em todo tipo de arte, se pensarmos no que se passa na m�sica, por exemplo, h� cada vez mais indecis�o, n�o se sabe bem o que � vanguarda, o que � popular. Nas artes da performance, do corpo, existe tamb�m um tipo de grande partilha entre arte leg�tima, arte de elite e arte popular.
Sim, � poss�vel ter uma pol�tica de amador, por�m ela n�o d� conta de artes ditas leg�timas, as belas artes tradicionais. Mas sempre existiram tipos de apropria��o selvagem, de pol�ticas de amador. H� muitas exig�ncias que pesam, mas creio que se pode manter em todos os dom�nios da arte uma pol�tica de amador no sentido de uma pol�tica de pessoas que n�o t�m o conhecimento sobre as boas formas art�sticas, que n�o t�m o bom crit�rio para julgar e assim por diante.
Apesar de tudo, a pol�tica do amador est� em regress�o, h� uma esp�cie de tend�ncia � legitima��o em todas as artes, de apropria��o universit�ria. Mas � preciso tamb�m lutar contra isso.
�RSULA PASSOS, 27, � redatora da "Ilustr�ssima".
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