A dona do espa�o
Obra de Lina Bo Bardi � celebrada mundo afora em seu centen�rio
RESUMO Mostras, livros sobre Lina Bo Bardi (1914-92) e reedi��es de objetos assinados pela arquiteta italiana radicada no Brasil celebram a data em diversos pa�ses. Enquanto sua figura � incensada como exemplo de criadora voltada � coletividade, pr�dios seus s�o desvirtuados e, em alguns casos, encontram-se � beira da ru�na.
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Lina Bo Bardi gostava de cultivar mitos sobre si mesma. Certa vez, a arquiteta ofereceu uma bebida a um jornalista que visitava sua casa. Ele, ingenuamente, disse que aceitava um u�sque: "Isso � coisa de burgu�s!", respondeu ela, e passou-lhe uma longa li��o de moral. Na mesma noite, logo ap�s se despedir do entrevistador, a arquiteta -sem vacilar e zombando de sua pr�pria personagem- pediu a amigos que l� estavam e haviam presenciado toda a cena: "Tragam um u�sque, vamos tomar".
Agora que se celebra o centen�rio de Lina -22 anos ap�s sua morte-, seu legado e sua hist�ria come�am a ser reescritos explorando a dualidade entre lenda e realidade. V�rios pa�ses veem eclodir uma febre de Lina, com exposi��es e publica��es, construindo novas vers�es da arquiteta, mais jovem e viva do que nunca.
"Muito do que se fala sobre Lina � uma reprodu��o da mitologia sobre ela; exposi��es e publica��es investem na ideia de que ela era m�gica. Tenho certa d�vida a esse respeito", ironiza Zeuler Lima.
Professor da Universidade Washington em St. Louis (EUA), Lima empreendeu uma vasta pesquisa sobre Lina em acervos diversos; em mais de dez anos, havia produzido 1.200 p�ginas sobre a arquiteta.
Desse trabalho, saiu uma importante monografia, intitulada simplesmente Lina Bo Bardi [Yale University Press, US$ 65, aprox. R$ 145, 256 p�gs.]. "Penso meu livro na contram�o dessa 'Linamania'; n�o � um estudo de santo. Minha tarefa foi coloc�-la dentro de um contexto hist�rico."
O livro foi publicado no fim do ano passado, somente em ingl�s -o autor espera que seu trabalho frutifique, em breve, em uma publica��o brasileira mais ampla.
Zeuler Lima reconstr�i, em 20 breves cap�tulos permeados por fotos e desenhos, epis�dios que v�o da vinda do casal Lina Bo e Pietro Maria Bardi da It�lia para o Brasil at� as �ltimas obras da arquiteta na Bahia.
Recuando � forma��o de Lina como arquiteta, na era Mussolini, Zeuler Lima desmistifica alguns pontos, como seu projeto de gradua��o na faculdade.
"Descri��es de Lina sobre o projeto como um 'hospital para mulheres solteiras' poderiam sugerir um esp�rito provocativo, mas era de fato uma institui��o fascista dominante, que refor�ava a identidade da mulher como m�e. Lina era muito jovem nessa �poca para ter qualquer convic��o pol�tica", explica o autor.
Zeuler Lima tamb�m esclarece outros pontos acerca de Lina -como o seu gosto pelo famoso u�sque. "Todo mundo voltava das suas festas com muita dor de cabe�a; descobriram que ela comprava uma garrafa de 'single malt' e enchia com u�sque falsificado: o bom ficava escondido para ela", diverte-se, recordando o lado caricato, contradit�rio e provocativo da �talo-brasileira.
VISIBILIDADE
Se, at� o final da �ltima d�cada, a arquitetura brasileira era identificada no exterior quase exclusivamente pelas curvas dos edif�cios de Oscar Niemeyer, a obra de Lina -com apenas 15 projetos executados durante a carreira- ganha hoje grande visibilidade mundo afora.
Longos artigos sobre sua arquitetura foram publicados em jornais como o brit�nico "The Guardian", o franc�s "Le Monde" e o italiano "Corriere della Sera". E duas obras p�em nas livrarias tradu��es para o ingl�s de textos da arquiteta sobre seu of�cio: "Stones Against Diamonds" [intr. Silvana Rubino, Architectural Association Publications, �15, aprox. R$ 58, 132 p�gs.] e "Lina Bo Bardi - The Theory of Architecture Practice" [intr. e trad. Cathrine Veikos, Routledge, US$ 49,95, aprox. R$ 112, 280 p�gs.].
Acervo UH/Folhapress | ||
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A arquiteta Lina Bo Bardi no MASP |
O deslumbramento atual � tanto que o curador de arquitetura do MoMA, de Nova York, Barry Bergdoll, chegou a dizer que "Lina se tornou uma 'starchitect' p�stuma", usando um neologismo em ingl�s para arquitetos-celebridades. Mas afinal, por que o atual crescente interesse por ela? Por que tamanha sedu��o por seus projetos, transformados em pontos de peregrina��o?
Um impulso fundamental foi dado pela Bienal de Arquitetura de Veneza de 2010, para a qual a japonesa Kazuyo Sejima -que naquele ano havia ganho o Pr�mio Pritzker ao lado de seu parceiro no escrit�rio Sanaa, Ryue Nishizawa- concebeu uma sala com maquetes de obras de Lina.
"Muita gente, incluindo Rem Koolhaas e Norman Foster, a descobriu l�", conta Renato Anelli, um dos diretores do Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, que funciona na Casa de Vidro (1951), nome dado � resid�ncia que ela projetou para o casal, no Morumbi, em S�o Paulo.
A mesma Casa de Vidro foi palco do lance que inscreveria definitivamente o nome de Lina no circuito das mostras de arte no mundo, ao abrigar, no ano passado, a exposi��o "O Interior Est� no Exterior", concebida pelo todo-poderoso curador su��o Hans Ulrich Obrist.
"Ela re�ne todas as palavras-chave para que algo seja considerado excepcional hoje: Brasil, Nordeste, artesanato, mulher, moderno, espa�o p�blico...", resume o curador do Instituto Tomie Ohtake, Paulo Miyada, ao opinar sobre a "canoniza��o" da arquiteta.
COLETIVIDADE
Em entrevista para o document�rio "Arquitetura, A Transforma��o do Espa�o" (1972), de Walter Lima Jr., Lina falou sobre a rela��o entre projetos e seus usos: "Quando fiz o projeto do Museu de Arte de S�o Paulo, minha preocupa��o era uma arquitetura com espa�os livres que pudessem ser criados pela coletividade; assim nasceu o grande belvedere. Eu quis fazer um projeto feio, formalmente, mas que fosse aproveit�vel pelos homens".
Os espa�os abertos, previstos por Lina quase de forma a que a ocupa��o humana os transforme numa cria��o coletiva, estimulam a imagina��o de estrangeiros.
Para a brit�nica Jane Hall, contemplada em 2013 com a Lina Bo Bardi Fellowship (bolsa oferecida pelo British Council para estudos sobre a obra da arquiteta), "o Masp e o Sesc Pompeia lidam com a dimens�o p�blica de uma forma humanista que est� lentamente desaparecendo da arquitetura brit�nica". "N�o temos nada similar por l� e j� perdemos o contato com metodologias mais simples e primitivas", afirma Hall.
Ela � fundadora do coletivo Assemble, que promove pequenas ocupa��es de espa�os p�blicos usando estruturas simples, feitas de materiais descartados. S�o trabalhos que revelam grande influ�ncia do pensamento de Lina.
"Ela nos recorda valores fundamentais em que a arquitetura deveria se concentrar, no nosso contexto econ�mico e global", diz. "O nosso maior desafio � fazer uma sociedade mais justa por meio das estruturas que constru�mos."
O document�rio "Precise Poetry", lan�ado em mar�o num festival de cinema dedicado a filmes sobre arquitetura em Budapeste, tamb�m circunscreve o assunto. Dirigido pela arquiteta austr�aca Belinda Rukschcio, professora da Universidade T�cnica de Brandemburgo, na Alemanha, o filme explora obras como o Sesc Pompeia (1977), cujo projeto, ao aliar interven��es sutis na estrutura existente e a constru��o de um novo complexo esportivo, converteu uma antiga f�brica em um centro cultural muito utilizado.
EXPOSI��ES
O centen�rio da arquiteta ser� marcado por exposi��es (veja abaixo) no Brasil e no exterior, em centros como o Museu de Arquitetura de Munique e a Galeria Nacional de Roma, cidade onde nasceu, em 5 de dezembro de 1914.
Com frequ�ncia, a imagem de Lina que chega ao exterior tem passado pela arquiteta argentina Noemi Blager. Ela � a organizadora da mostra "Together", que j� levou uma vis�o da obra da �talo-brasileira a Londres, Viena, Basileia, Paris e Estocolmo e ir� para Amsterd�, Berlim e Mil�o.
Para Blager, a atitude de Lina Bo Bardi era o oposto de uma mentalidade colonialista. "Lina foi para o Brasil, aprendeu e desenvolveu uma identidade pr�pria, sempre respeitosa culturalmente. Pensei que era importante mostrar isso na Europa", afirma.
Acervo UH/Folhapress | ||
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Lina Bo Bardi |
A incomum aproxima��o entre a cultura moderna e popular foi destacada pelo cr�tico Josep Maria Montaner em seu livro "A Modernidade Superada" [Gustavo Gili Brasil, R$ 65, 184 p�gs.], com um texto sobre Lina. "Ela conseguiu realizar obras em que a modernidade e a tradi��o n�o eram antag�nicas", escreveu. Em parceria com o documentarista Jacobo Sucari, Montaner lan�ar� "Entre la Tierra y el Cielo", um filme sobre a arquiteta. A dupla catal� ainda busca patrocinadores para concluir a empreitada.
Em lugares onde a constru��o civil � muito cara, as solu��es simples e baratas de Lina soam surpreendentes. "Ela podia construir com nada, inclusive com um or�amento muito baixo. Nos pa�ses ricos n�o h� essa habilidade de se virar em situa��es desafiadoras", opina Noemi Blager.
O teatro Oficina (1984) � um exemplo; as tradicionais plateias de um teatro de �pera s�o evocadas por andaimes verticais de madeira -como os utilizados em obras-, organizados em torno de uma rua-palco central.
Durante a constru��o do Sesc Pompeia, Lina mudou seu escrit�rio para o canteiro, onde criava as solu��es com os pr�prios oper�rios e incorporava objetos inspirados no artesanato popular, como pequenas esculturas de flores de mandacaru no fechamento de frestas das passarelas.
INSPIRA��O
A obra de Lina serve hoje como inspira��o para posi��es pol�ticas em tempos de v�cuo de pensamentos humanistas e radicais. "Bo Bardi estava interessada num tipo de multiculturalismo vanguardista que ressoa na atual preocupa��o sobre achatamento promovido pelo capital global", afirma Barry Bergdoll, do MoMa.
Ele � cocurador da mostra "Modern Architecture in Latin America 1955-1980", a ser inaugurada em mar�o de 2015, tendo Lina como uma das protagonistas. O americano confirma a possibilidade de que a obra da �talo-brasileira ganhe mostra individual em Nova York nos pr�ximos anos.
"Desde a crise de 2008, com a diminui��o de investimentos, a arquitetura passou a ser vista com austeridade. H� uma crise ideol�gica do neoliberalismo. Isso provoca uma invers�o em como se pensava a arquitetura, antes com certo cinismo sobre a cidade, vindo � tona arquitetos ent�o marginais", diz Zeuler Lima, referindo-se tanto ao pensamento urban�stico de Lina quanto � sua economia construtiva.
EFEITOS
Tanta visibilidade pode, por�m, ter efeitos colaterais, gerando entendimentos superficiais de uma obra t�o complexa.
A exposi��o de Obrist em 2013 na Casa de Vidro, ao mesmo tempo que catapultou Lina, foi considerada tamb�m um momento-chave para a explora��o do fetichismo em torno da arquiteta. Paulo Miyada observa, na concep��o da mostra, estere�tipos fomentados sobre Lina.
"Todos os ambientes e nichos da casa traziam sutis interfer�ncias art�sticas, menos o volume fechado dos quartos de empregados -um documento dos limites da integra��o social e espacial- tratado l� como se n�o existisse. A imagem de Lina foi editada para oferec�-la como hero�na", diz.
O mercado da arte, por�m, agarrou a oportunidade: o dinamarqu�s Olafur Eliasson produziu, especialmente para a exposi��o, uma obra que usava os famosos cavaletes de vidro da museografia original do Masp. Foi feita uma tiragem de apenas tr�s pe�as, cada uma com pre�o de venda de R$ 280 mil.
Da mesma forma, a ind�stria do design capitalizou a nova fama de Lina Bo Bardi, e o po�tico discurso da arquiteta sobre desenho industrial influenciado pela arte popular virou arma comercial de empresas em busca de visibilidade internacional.
A italiana Arper reeditou 500 unidades da cadeira Bowl (1951) e vender� cada unidade por US$ 4.200 (aprox. R$ 9.340) -uma verdadeira barganha, se comparada aos mais de R$ 50 mil pagos por colecionadores em disputados leil�es pelas pe�as originais.
A brit�nica Iz�, que desenvolve ma�anetas, colocou em linha a pe�a em formato de chifre que Lina criou para a Casa de Vidro.
RESTRI��ES
J� o celebrado discurso sobre o uso livre dos espa�os encontra, na pr�tica, restri��es em nossos tempos. No v�o do Masp, a "escadinha-tribuna a ser transformada em um palanque", como previa a arquiteta, foi gradeada, quando a institui��o passou a utilizar parte da pra�a p�blica para fazer sua entrada.
Ao contr�rio do que sugeriam os desenhos de circos e de atividades l�dicas que ela imaginou no belvedere, hoje poucas interven��es culturais e art�sticas acontecem no local.
Em vez disso, discuss�es envolvendo o pr�prio curador do museu, Teixeira Coelho, chegaram a sugerir algo incompat�vel com aquilo que j� foi chamado pelo m�sico John Cage de "a arquitetura da liberdade": murar o v�o e fechar a pra�a para proteger a �rea de usu�rios de drogas, criando mais um lugar de exclus�o.
H� um descolamento entre a enorme aten��o recebida pela arquiteta e a situa��o em que se encontram seus pr�dios hoje -n�o s� o Masp, que teve o espa�o expositivo alterado, ap�s uma criticada reforma, h� 15 anos.
O teatro Oficina vive uma longa batalha contra a especula��o imobili�ria que o encurrala no seu terreno no bairro do Bexiga, em S�o Paulo. Mesmo o Sesc Pompeia reformou de forma descuidada o interior de alguns andares da torre de concreto, inaugurando uma academia sem unidade est�tica com o conjunto.
Nas obras da Bahia, a situa��o � mais s�ria: alguns de seus projetos est�o praticamente em ru�nas, como as casas na Ladeira da Miseric�rdia (1987), redesenhadas para abrigar habita��es e restaurantes.
At� mesmo seu instituto, na Casa de Vidro, onde fica o acervo de desenhos e objetos da arquiteta, encontra-se em grave situa��o financeira e enfrenta dificuldades para manter sua opera��o.
Em um assunto frequente e paradigm�tico do seu pensamento, Lina pensava museus como espa�os vivos, lugares de aprendizado permanente, onde as obras pudessem ser exploradas pelo grande p�blico, levado a fazer suas pr�prias descobertas, conclus�es e percursos.
Para ela, os museus n�o deveriam ser dep�sitos escuros de coisas valiosas, a serem apenas admiradas, conforme valores prontos. N�o poderia Lina, � sua revelia, ser envolta pelo deslumbramento atual, engolida por esse conceito passivo sobre o passado ou mesmo pelo pr�prio fetichismo sobre sua obra?
Marcelo Rezende, diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia -projetado por Lina no Solar do Unh�o, em 1959- resume a atual contradi��o: "O pior que poderia acontecer a ela neste ano de centen�rio seria o aprisionamento na l�gica da homenagem, da museifica��o -no pior sentido do termo- de seu pensamento".
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LINA BO BARDI, 100
O Instituto Lina Bo e P. M. Bardi criou um comit� curador para articular os eventos em torno do centen�rio da arquiteta. Al�m das exposi��es listadas abaixo*, haver� outras iniciativas, como uma campanha pela recupera��o das principais obras da arquiteta. Mais informa��es em www.institutobardi.com.br
Brasil
"Lina Bo Bardi em Seu Tempo"
Casa de Vidro, S�o Paulo
Curadoria Anna Carboncini e Renato Anelli
Abertura agosto 2014
"Maneiras de Expor: Arquitetura Expositiva de Lina Bo Bardi"
Museu da Casa Brasileira,
S�o Paulo
Curadoria Giancarlo Latorraca
Abertura agosto 2014
"A Arquitetura Pol�tica de Lina Bo Bardi"
Sesc Pompeia, S�o Paulo
Curadoria Marcelo Ferraz e Andr� Vainer
Abertura setembro 2014
"Lina Gr�fica"
Sesc Pompeia, S�o Paulo
Curadoria Jo�o Bandeira e Ana Avelar
Abertura setembro 2014
Exterior
"Lina Bo Bardi 100"
Museu de Arquitetura da Universidade T�cnica de Munique, Alemanha
Curadoria Andres Lepik e Simone Bader
Abertura dezembro de 2014
"La Architettura Politica de Lina Bo Bardi"
Galeria Nacional de Arte Moderna, Roma, It�lia
Curadoria Marcelo Ferraz, Andr� Vainer e Alessandra Criconia
Abertura mar�o de 2015
"Modern Architecture in Latin America 1955-1980"
Cinco projetos de Lina integram a mostra coletiva
Museu de Arte Moderna de Nova York, EUA
Curadoria Barry Bergdoll, Carlos Eduardo Comas e Jorge Francisco Liernur
Abertura mar�o de 2015
* Programa��o sujeita a altera��es
GABRIEL KOGAN, 29, � arquiteto e jornalista.
Livraria da Folha
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