Um passeio por luxuriantes bosques de melancolia e sandice
RESUMO Um dos grandes cl�ssicos do s�culo 17, "A Anatomia da Melancolia", de Robert Burton, tem sua primeira tradu��o integral no Brasil. "Elogio da Loucura", de Erasmo de Roterd�, obra-prima do s�culo 16, tem nova edi��o. Labirintos de erudi��o, os livros iluminam bem al�m do que os estados mentais que se prop�em a investigar.
*
Dom Quixote, como se sabe, leu tantos livros de cavalaria que terminou enlouquecendo. Mas o texto de Miguel de Cervantes �, na verdade, um pouco mais espec�fico: o excesso de leitura "secou o c�rebro" do fidalgo.
Ainda que a frase soe engra�ada, n�o se trata de uma figura de linguagem. Para a medicina da �poca, um c�rebro "seco" tornava-se exposto aos vapores quentes produzidos pelo f�gado e pelo ba�o. Ou melhor: como o f�gado produz l�quidos quentes (os famosos "humores"), � preciso que uma vida ativa e com exerc�cios moderados se encarregue de expuls�-los.
Caso continuem a circular, o efeito ser� a "melancolia". O termo, no s�culo 17, correspondia a muito mais coisas do que � simples tristeza ou depress�o. Todo tipo de del�rio, imagina��o extrema, furor lascivo -desde que sem febre- era entendido como "melancolia".
Melanc�lico era Dom Quixote, da mesma maneira que Hamlet, ou que o apaixonado Romeu, ou ainda a mulher de Macbeth, tentando inutilmente limpar das pr�prias m�os as imagin�rias manchas de sangue de seus crimes.
A palavra vem do grego "melas", negro, e "chole", bile. A bile negra seria um dos quatro "humores" produzidos pelo corpo, ao lado do sangue, da fleuma e da bile amarela ou "normal". Esses humores podiam ser quentes, como o sangue, ou frios, como a fleuma -cuja fun��o � umedecer as v�rias partes do organismo, como as juntas, a l�ngua e os olhos.
Al�m dos "humores", acreditava-se tamb�m na presen�a dos "esp�ritos", que n�o s�o fantasmas, mas vapores fin�ssimos, exalados pelo sangue. Esses esp�ritos eram o instrumento da alma para realizar as suas a��es.
Conforme o lugar de onde vinham esses vapores, produzem-se diferentes atividades. Os esp�ritos naturais eram gerados pelo calor do f�gado, servindo como uma esp�cie de motor para as fun��es comuns do corpo. Os esp�ritos vitais vinham do cora��o, e os esp�ritos animais, conduzidos ao c�rebro, organizavam os movimentos dos nervos.
Bastante complicada, a medicina daqueles tempos. Mais complicada ainda pelo fato de que a famosa "bile negra", fria, espessa e �cida, nunca foi encontrada em nenhum corpo humano, vivo ou morto. No m�ximo, o que se encontraram foram casos de sangue no v�mito e na urina.
Nada disso impediu que, desde a Antiguidade -a partir de Hip�crates (460-370 a.C.) e Galeno (120-200 d. C.), a teoria dos humores dominasse a medicina ocidental at� que uma nova cultura cient�fica, baseada na dissec��o dos cad�veres e na l�gica da experimenta��o emp�rica, fosse aos poucos sendo imposta a partir do s�culo 17.
Em 1621, o saber especulativo em torno da "bile negra" acumulava-se em in�meros tratados, lendas, anedotas, f�bulas e contradi��es. Sete anos depois, William Harvey publicaria seu tratado sobre "o movimento do cora��o", explicando que este �rg�o tinha a fun��o de bombear o sangue, sem "produzir" nada; assim, a medicina de Galeno come�ou seu caminho para o relativo desuso.
Cito o ano de 1621 porque esta � a data de publica��o de "A Anatomia da Melancolia" [1� volume, R$ 50; 2�, R$ 75; 3�, R$ 65; 4�, R$ 120], obra de Robert Burton (1577-1640) em quatro tomos, cuja not�vel tradu��o por Guilherme Gontijo Flores se v� publicada agora pela editora da Universidade Federal do Paran�.
Burton n�o era m�dico, mas sim um erudito que acumulou seus estudos filol�gicos com o cargo de vig�rio anglicano na igreja de St. Thomas, em Oxford. Em quase duas mil p�ginas, mais as v�rias centenas dedicadas �s notas da edi��o brasileira, a primeira da obra no pa�s, encontramos cita��es e refer�ncias a uma multid�o de autores.
N�o apenas os poetas cl�ssicos mais conhecidos, como Virg�lio e Hor�cio, n�o apenas prosadores como Juvenal, Tuc�dides e Apuleio; n�o apenas a "B�blia" e Santo Agostinho, mas uma quantidade colossal de versejadores, comentadores, tratadistas, m�dicos, santos, viajantes.
Tatiana Blass | ||
S�o Belarmino, Men�filo de Damasco, Jo�o Me�rsio, s�o Cirilo de Alexandria, Areteu da Capad�cia, He�rnio. M�cio, Serapi�o o Velho, Serapi�o o Jovem. O dinamarqu�s Pedro Bartolino, o fil�sofo Sebasti�o Barradas. Capiv�cio, Ranz�vio, Treb�cio, Publ�lio, Xifilino. O viajante portugu�s Pedro Queir�s, o jesu�ta belga Aguil�nio, o matem�tico iraniano Al-Kindi...
Existe at� mesmo um A�cio, m�dico romano que viveu por volta de 500 depois de Cristo, e que n�o deve ser confundido com �cio, L�cio �cio, dramaturgo 600 anos mais velho.
LABIRINTOS
Se o leitor n�o se diverte com enfiadas de nomes, com sequ�ncias vertiginosas de palavras praticamente equivalentes, com labirintos de exemplos e contraexemplos que terminam sem concluir coisa nenhuma, � melhor que deixe de lado a "Anatomia da Melancolia".
Claro que n�o � um livro a ser lido em poucos dias, de modo intensivo, como acaba sendo o fado dos resenhistas de jornal. Mas a exuber�ncia das palavras, das associa��es, dos "causos" e das refer�ncias que preenchem todas essas p�ginas produz um efeito contagiante, embriagador.
Nada menos melanc�lico, no sentido moderno do termo, do que a "A Anatomia da Melancolia". Percebe-se um autor que sorri o tempo todo, que n�o se cansa nunca, que se delicia no seu tesouro de erudi��o como um tio Patinhas ao tomar seu banho di�rio na famosa caixa-forte.
Todo assunto, qualquer tema, pode entrar nas cogita��es do autor. Banhos, por exemplo. Que tal? Podem ser um rem�dio para alguns tipos de melancolia, na medida em que resfriam o corpo. Certo imperador romano tomava sete por dia. A ingest�o de �gua, preferencialmente a da chuva, tamb�m � recomend�vel.
O assunto permite a Burton desencadear um dil�vio de curiosidades e informa��es duvidosas. O abastecimento cotidiano de �gua no Cairo, por exemplo, chegou a ser entregue a 8.000 camelos. Canos de chumbo s�o criticados por Galeno, pois liberam uma "cerusa untuosa" (talvez uma cerussa, carbonato de chumbo do tipo do alvaiade) que causa disenteria. S� que, argumenta Burton, "isso � contr�rio � experi�ncia geral".
Se fosse assim, os habitantes de in�meras cidades italianas, assim como os de Montpellier, na Fran�a, sofreriam de constantes diarreias, e, como diz o genov�s Alsario dalla Croce, tal n�o acontece.
Frutas podem ajudar no combate � melancolia -ou provoc�-la. O caso dos figos � pol�mico. Muitos m�dicos recomendam; Alexandre de Trales n�o � deste conselho. Talvez seja quest�o de quantidade.
Quantas refei��es por dia? Duas, de modo que o est�mago possa digerir bem, sem "provocar cruezas". Guian�rio aceita tr�s, mas Montano � estrito e fica com apenas duas.
A quest�o, mais precisamente, est� em limitar a variedade de pratos por vez. A ceia deve ser mais pesada que o almo�o; outros sustentam o contr�rio. Quanto ao que comer, h� quem prefira lebres, e quem prefira pav�es.
Que cada um siga a pr�pria lei, conclui Burton, dizendo que o imperador Tib�rio ria muito de quem, depois dos 30 anos, ainda aceitasse conselhos sobre como se alimentar.
Nas poucas p�ginas desse cap�tulo, que pertence ao terceiro volume -o dos rem�dios contra a melancolia-, pode-se ver de que modo o ac�mulo de informa��es termina sendo uma escola de ceticismo.
Tem-se �s vezes a impress�o de assistir a um daqueles debates do Supremo, nos quais diversos tratadistas e autoridades jur�dicas s�o invocadas a favor ou contra um caso muito concreto, que a rigor poderia dispens�-los na maior parte das vezes.
N�o seria absurdo especular que a ci�ncia m�dica, na �poca de Burton, estava num est�gio pr�ximo ao que, ainda hoje em dia, encontram-se os estudos jur�dicos. N�o temos -e provavelmente nunca teremos- condi��es de aplicar m�todos experimentais no campo da teoria penal, ou na legisla��o das sociedades an�nimas.
H� saberes, h� pressupostos sobre a natureza humana, h� autores que formulam com maior ou menor clareza o que procurar quando se fala em "atenuantes" ou "agravantes" de um crime.
Ideias sobre o comportamento das pessoas, concep��es de certo e de errado, observa��es concretas e filosofia moral se misturam um bocado entre os te�ricos do direito, e certamente a medicina, ao longo de s�culos, trazia tamb�m seus tra�os de conhecimento sobre o homem e a �tica, tanto quanto sobre o movimento da linfa e os calores do ba�o.
Ainda mais no caso da melancolia, doen�a de m�ltiplas defini��es, inumer�veis efeitos e causas divididas em v�rias camadas.
A tentativa de Burton � organizar toda essa massa de conhecimentos, o que ele faz dividindo sua obra em quatro partes. As causas da melancolia e as curas para a doen�a ganham um volume cada, com muitas subdivis�es -membros, partes, se��es- que justificam o t�tulo de "anatomia".
DIVAGA��ES
Acontece que Burton, assim como seu tema, � avesso a sistematiza��es. N�o resiste ao prazer de divagar, de comentar, de trazer casos confusos e engra�ados ao curso da argumenta��o.
Assim, o quarto e �ltimo volume, cuja tradu��o foi lan�ada neste m�s, surge quase como que um livro � parte, com pref�cio e tudo, no qual se examina a "melancolia amorosa".
Pode ser lido primeiro, com grande prazer. Sem d�vida, � aquele em que o autor se concede maior dose de liberdade e independ�ncia de pensamento. Antes de mais nada, porque o tema do amor lhe serve de pretexto para muitos coment�rios picantes, al�m de lindas lembran�as da hist�ria pag�.
V�nus nasce do mar, diz ele, porque tamb�m o amor � capaz de tempestades, destrui��es e calmarias. O amor pode ser encontrado at� entre minerais e vegetais. Haja vista o caso do �m�; haja vista o caso das palmeiras, que se acariciam uma � outra.
Ou mesmo sofrem de amor, como uma palmeira macho, nascida na cidade italiana de Brindisi, e outra f�mea, natural de Otranto, a l�guas dali. Viveram est�reis por muito tempo, at� que, adquirindo altura suficiente, puderam ver-se, e frutificaram.
A hist�ria deve ser fabulosa, adverte Burton, para dizer logo em seguida que Piero Valeriano, no seu livro sobre hier�glifos, e Melchior Guilandino, no seu tratado sobre os papiros, sustentam-na com convic��o.
A atitude de Burton, ao longo de todo a obra, n�o varia. N�o se trata exatamente de defender a impossibilidade de um conhecimento exato, como fez Montaigne, um pouco de brincadeira, numa parte de seus "Ensaios" (1580). Defesa do ceticismo, o ensaio "Apologia de Raymond Sebond" n�o resume todo o pensamento do autor franc�s -que Burton cita apenas de passagem.
Mas h� muito de Montaigne no primeiro volume da "A Anatomia", um longo arrazoado para justificar o fato de que mesmo quem n�o � m�dico est� autorizado a escrever sobre o assunto.
Afinal, muitos m�dicos terminam falando sobre teologia, uma vez que compram cargos e sinecuras na estrutura da igreja.
Os homens mais s�bios da Antiguidade, prossegue Burton, s�o comprovados malucos. Algu�m poderia atribuir isso ao fato de serem pag�os. Mas quanta insensatez n�o se encontra no mundo crist�o? Monges que se comportam como serpentes, peregrinos correndo atr�s de falsas rel�quias, 120 mil mortos s� no s�tio de uma cidade belga, crimes e mais crimes feitos em nome da religi�o.
O tom se torna ainda mais corrosivo no final do quarto volume. Depois de escrever, com muita desinibi��o, sobre casos de priapismo, sobre paix�es entre mulheres e ursos, sobre jovens que tentam descobrir a data de seu casamento jogando cebolas como se fossem b�zios, sobre os que se suicidam pela namorada, sobre os que se tornam melanc�licos por muita acumula��o de s�men nos test�culos, Burton resolver abordar a melancolia produzida por outro tipo de amor.
A saber, o amor a Deus. Sim, a religi�o � necess�ria, mas cabe apontar, diz o autor, "as diversas f�rias" provocadas por "pitonisas, sibilas, entusiastas, pseudoprofetas, her�ticos e cism�ticos". Nada no mundo causa mais mortes, horrores e mis�rias. "Hei de apresentar", afirma Burton, "um oceano estupendo, vasto, infinito de loucura e sandice inacredit�veis".
No seu estilo t�pico, que Angus Wilson chama de "etceterativo", ele continua: "Um mar cheio de recifes e rochas, areias, golfos, euripos [canais de �guas agitadas] e ondas contr�rias, cheios de monstros tem�veis, formas rudes, vagas estrondosas, tempestades, calmarias de sereias".
O prazer das palavras, a euforia do vocabul�rio, diminui a gravidade do assunto e disfar�a o seu perigo. Verdade que Robert Burton, que publicou o livro sob o pseud�nimo de Democritus Junior, escrevia na posi��o, relativamente confort�vel, de um cl�rigo anglicano.
Podia acusar � vontade as "supersti��es papistas", ironizar feitos fabulosos de santos, apontar canalhices de bispos e pont�fices, duvidar de milagres e rel�quias, assim como desprezar as cren�as de outras correntes protestantes, sem parecer infiel aos preceitos do "verdadeiro" cristianismo.
Pode-se ver, na "Anatomia da Melancolia", o quanto o movimento da Reforma foi libertador em seu tempo, abrindo caminho para a cr�tica racionalista da f� crist�.
PRECURSOR
Um dos maiores precursores desse movimento, mas ainda leal � Igreja Cat�lica, e advers�rio intelectual de Lutero, foi Erasmo de Roterd� (1466-1536). Numa boa coincid�ncia, saiu recentemente em livro de bolso uma nova tradu��o, diretamente do latim, de seu cl�ssico "Elogio da Loucura" [trad. Elaine Sartorelli, Hedra, R$ 19, 180 p�gs.], escrito em 1509.
Se o livro de Burton d� mostras de um talento espantoso, e quase demente em sua alegria de tudo dizer e tudo citar, o livro de Erasmo � obra de g�nio, e est� merecidamente ao lado da "Utopia", de seu amigo Thomas More, e de "O Pr�ncipe", de Maquiavel, na cole��o das obras-primas curtas que toda produtora de livros de bolso, como a excelente editora Hedra, cedo ou tarde se encarrega de publicar.
Assim como a "melancolia" de Burton � muito mais que o �nimo depressivo que associamos ao termo, englobando todo tipo de alucina��o, fobia, obsess�o e paranoia, a "loucura" de Erasmo n�o � propriamente uma dem�ncia.
Em latim, trata-se da "stultitia", a tolice, a estupidez, ou, se quisermos ainda, a "burrice", como esclarece a tradutora Elaine Sartorelli em sua �tima e breve introdu��o. Por �bvias raz�es, ela prefere manter o t�tulo consagrado.
Num c�lebre passe de m�gica ret�rico, Erasmo faz com que a loucura tome, ela pr�pria, a palavra. Todos seriam mais felizes, afirma a personagem em seu autoelogio, se vivessem como animais num chiqueiro.
Um dos companheiros de Ulisses, ali�s, convenceu-se disso depois que Circe, no poema de Homero, transformou todos em su�nos. N�o � a inf�ncia, ademais, a idade mais bem-aventurada? E o que s�o as crian�as, exceto humanos tomados de loucura?
Jogar, dan�ar, beber vinho, fazer pantomimas... "Nada disso foi inventado pelos s�bios", continua o texto. O amante que n�o v� a verruga da sua amada, o pai que acha lindo o filho estr�bico, que podemos dizer contra eles? Quantos div�rcios n�o aconteceriam se os casais tivessem mais senso cr�tico?
Tudo vai por essa toada humor�stica, at� o momento em que as garras de Erasmo se fazem entrever. Te�logos e pregadores, diz o livro, t�m sucesso garantido ao defender os maiores absurdos e tolices. Os grandes da igreja empreendem guerras de conquista, derramam sangue, acumulam bens, espalham a infelicidade e o terror, tudo em nome da mansid�o de Jesus.
Verdade que, conforme avan�a, o discurso perde em coer�ncia ficcional, uma vez que a loucura, ou a estupidez, deveria defender tamb�m todos os males que j� causou. O esp�rito de den�ncia, entretanto, � o que prevalece.
Erasmo e Burton, como Montaigne, s�o atual�ssimos, exceto talvez num ponto. Representando uma ponte entre a cultura cl�ssica e o esp�rito moderno, mostram a fragilidade do que, nos dias de hoje, parece ser uma esp�cie de historicismo exagerado.
N�o � inven��o de Rousseau, por exemplo, o gosto pelas caminhadas solit�rias na natureza, nem � puramente cria��o do romantismo o fastio de tudo, o t�dio existencial. H� com certeza pouco t�dio e saud�vel loucura nesses bosques cl�ssicos, nesses gabinetes luxuriantes que os dois autores nos levam para visitar.
MARCELO COELHO, 54, � articulista da Folha.
TATIANA BLASS, 34, � artista pl�stica.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade