Salinger, Pynchon e outros eremitas liter�rios
RESUMO A reclus�o tem sido um estilo de vida abra�ado ao longo do tempo por grandes escritores, do japon�s Saigyo Hoshi, no s�culo 12, ao brasileiro Rubem Fonseca. Biografia de J.D. Salinger e novo romance de Thomas Pynchon lan�am luz na vida e obra dos escritores, dois dos mais folcl�ricos eremitas do mundo das letras.
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Recluso mesmo era Saigyo Hoshi (1118-90). Patriarca da literatura reclusa, movimento que prosperou no Jap�o medieval, o soldado que largou a farda aos 22 anos e foi escrever poemas no campo acreditava que o escritor devia viver em isolamento para refletir sobre as restri��es da vida normal nas cidades e sobre a natureza.
De maneira menos radical, a tradi��o sobreviveu como a op��o de alguns gigantes da literatura depois da fama. A poeta americana Emily Dickinson (1830-86) passou seus �ltimos 20 anos em casa. O franc�s Marcel Proust (1871-1922) n�o s� ficou 13 anos isolado, tempo em que escreveu "Em Busca do Tempo Perdido", como nos �ltimos tr�s nem sequer saiu do quarto.
Entre os brasileiros, Dalton Trevisan, Raduan Nassar e Rubem Fonseca -este prestes a p�r na pra�a seu 28� t�tulo, "Am�lgama", pela Nova Fronteira- vivem quase no anonimato. Mas � provavelmente na percep��o da obra de dois norte-americanos que a imagem erem�tica mais colou. Ao falar de J. D. Salinger (1919-2010) e Thomas Pynchon, parece quase imposs�vel dispensar o aposto "recluso" e suas variantes.
Os lan�amentos de "Salinger" [Simon & Schuster, 720 p�gs., R$ 87], biografia do autor de "O Apanhador no Campo de Centeio", e "Bleeding Edge" [Penguin, 478 p�gs., R$ 88,10], novo romance de Pynchon, deixam em evid�ncia os dois ermit�es. Salinger viveu 55 anos isolado do mundo. Pynchon vai al�m: h� 60 anos n�o � fotografado e por mais de uma d�cada duvidou-se at� de sua exist�ncia.
N�o � surpresa que o isolamento seja o fio condutor de "Salinger", biografia assinada pelo escritor David Shields e pelo roteirista Shane Salerno, diretor do document�rio de mesmo nome que estreou nos EUA em setembro. Filme -que deve virar cinebiografia com atores- e livro -a sair no Brasil em janeiro, pela Intr�nseca- se completam num conjunto multim�dia que vem irritando f�s do autor pelo foco em sua vida pessoal.
Nascido em 1919, filho de um judeu e de uma cat�lica convertida ao juda�smo, criado na classe m�dia de Nova York, Jerome David era mais um autor jovem e promissor quando os japoneses atacaram a base de Pearl Harbor, em 1941.
Decidiu se alistar no Ex�rcito e acabou na linha de frente do desembarque das tropas aliadas na Normandia no Dia D, 6 de junho de 1944. Tomou parte de outras batalhas importantes e presenciou a liberta��o do campo de concentra��o de Dachau, na Alemanha. Terminou o conflito internado em um hospital psiqui�trico com transtorno de estresse p�s-traum�tico.
Seus contos, at� ent�o algo fr�volos, passaram a refletir o vazio dos jovens que chegaram p�s-Guerra. Publicada pela revista "New Yorker" em 1948, a hist�ria "Um Dia Ideal para os Peixes-Banana", cujo personagem principal, Seymour Glass, era um traumatizado de guerra, fez com que o escritor fosse visto como a voz de sua gera��o.
Seu �nico romance, "O Apanhador no Campo de Centeio", o transformaria de autor "cult" em celebridade. Lan�ado em 1951, o livro, um libelo contra o sistema protagonizado pelo adolescente rebelde Holden Caulfield, j� vendeu mais de 65 milh�es de c�pias e influenciou multid�es: de escritores como Tom Wolfe, que d� depoimento no filme e no livro, a figuras como Mark Chapman, o assassino de John Lennon, preso na cena do crime com um exemplar do romance.
PASSATEMPO
O Brasil n�o ficou inc�lume � rebeldia de Holden. F�s do livro, tr�s jovens resolveram traduzi-lo como passatempo. A vers�o foi publicada em 1965 pela Editora do Autor, de Fernando Sabino, Rubem Braga e Walter Acosta, este ainda hoje � frente da casa.
Por pouco, o livro n�o foi batizado "A Sentinela do Abismo". "Eu e meus cotradutores (Alvaro Alencar e Antonio Rocha) achamos que n�o ia funcionar no Brasil a tradu��o literal de 'The Catcher in the Rye'", recorda Jorio Dauster. Da agente de Salinger, por�m, chegou a ordem: nada de mexer no t�tulo.
"Como nessa �poca j� era imposs�vel ter contato direto com o eremita de New Hampshire, fomos obrigados a ceder. Anos mais tarde, descobri os desatinos que tinham sido cometidos com o t�tulo -por exemplo, 'Uma Agulha no Palheiro', em Portugal, e 'El Cazador Oculto', na Espanha- e dei toda raz�o ao Salinger", diz.
Deborah Paiva | ||
Mas, se a hist�ria de Holden Caulfield cativava leitores e fez do escritor um homem rico, a invas�o de sua vida pessoal logo come�ou a perturb�-lo. Salinger ainda lan�aria tr�s livros, mas em 1955 deixou Nova York, iniciando seu ex�lio na pequena cidade de Cornish. A partir de 1965, quando publicou na "New Yorker" o conto "Hapworth 16, 1924", fez-se seu sil�ncio.
Shields e Salerno garantem ter as respostas para o que aconteceu.
Mas boa parte das alegadas revela��es n�o � propriamente novidade. Biografias como "Em Busca de J. D. Salinger", do ingl�s Ian Hamilton (processado pelo escritor), e os livros de Margaret Salinger, sua filha, e da romancista Joyce Maynard, sua ex-paquera, j� diziam que ele se dedicara � filosofia religiosa vedanta, s� comia alimentos crus e vivia amargurado pelas lembran�as da guerra.
O que "Salinger" conta de novo � que, ao contr�rio das lendas, ele n�o era propriamente um maluc�o solit�rio. Frequentava caf�s, se relacionava com os vizinhos, ia ao cinema, tinha amigos. E escrevia. Uma "revela��o" importante, ainda a confirmar, � de que ele teria deixado cinco livros prontos, a serem publicados entre 2015 e 2020.
Em termos liter�rios, pouco h� a acrescentar. A prefer�ncia � por informa��es que beiram a fofoca, com espa�o at� para uma especula��o sobre o fato de que o escritor teria apenas um test�culo.
Houve cr�ticas e os autores responderam. "Meu objetivo n�o � derrubar Salinger, mas mostrar as fontes (de inspira��o) horr�veis da arte e os custos sem fim de uma guerra sem fim", defendeu-se Shane Salerno, em um artigo para a "Esquire". "Ele n�o era um deus. Era s� um homem. Esse � o ponto."
PSEUD�NIMO
Como Salinger, Thomas Pynchon evita a imprensa. Sabe-se que nasceu em 1937, serviu a Marinha e estudou na Universidade de Cornell. Suas poucas fotos conhecidas, mostrando um garoto dentu�o, foram feitas h� d�cadas. Por muito tempo n�o se sabia onde vivia e cogitou-se at� que Thomas Pynchon seria um pseud�nimo adotado por J. D. Salinger.
Hoje sabe-se que ele mora em Nova York e � casado com a pr�pria agente, Melanie Jackson, com quem tem um filho. � falta de detalhes pessoais, os livros t�m sido a chave para sua vis�o do mundo.
Sua obra pode ser dividida entre romances curtos com trama mais ou menos definida e protagonistas claros, caso de "V.", "Vineland" e "V�cio Inerente", e os caudalosos e experimentais, cheios de camadas, como os catataus "O Arco-�ris da Gravidade" e "Contra o Dia".
"V." (1963), seu primeiro romance, trazia elementos que se tornariam sua marca: ironia, humor negro, sociedades secretas, enciclopedismo, cita��es obscuras e personagens de nomes esquisitos. Dez anos depois, com "O Arco-�ris da Gravidade", primeiro grande romance moderno sobre a paranoia, Pynchon foi reconhecido como um mestre.
Apesar de ele ser considerado herm�tico, seus leitores respondem com adora��o. Os mais dedicados criaram na internet um banco de dados(pynchonwiki.com).
"Pynchon � um dos grandes nomes da fic��o norte-americana do final do s�culo 20", opina Paulo Henriques Britto, um de seus tradutores no Brasil. "A maneira como ele incorpora elementos da baixa cultura e os combina com uma t�cnica sofisticada permanece �nica."
"Bleeding Edge", nono livro do autor, atualiza temas caros a ele, tendo ao fundo o mais importante evento do s�culo at� agora: o 11 de Setembro.
A protagonista do romance, Maxine Tarnow, uma examinadora de fraudes, descobre, ao investigar o empres�rio de tecnologia Gabriel Ice, que o atentado �s Torres G�meas n�o tem a ver com fundamentalismo, mas com uma conspira��o envolvendo geeks, hackers e a m�fia russa.
As tramas paralelas t�picas de Pynchon est�o de volta. Seu temor quanto aos poderes da tecnologia tamb�m -aqui dirigido contra a internet. Lan�ado nos EUA em setembro e sem previs�o de publica��o no Brasil, "Bleeding Edge" tem sido saudado como um dos melhores livros do autor e foi indicado ao National Book Award.
"O recluso tende a ser cada vez mais uma figura de exce��o com a incorpora��o da literatura no circuito das celebridades, com os festivais liter�rios e demais nexos com o mundo do entretenimento massivo", opina Lu�s Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A internet, por�m, embaralhou o conceito de recolhimento: "O autor pode viver num isolamento f�sico e manter-se conectado".
Nos �ltimos anos, Pynchon tem se tornado mais vis�vel.
Rompeu o sil�ncio em 2006 com uma carta de apoio ao ingl�s Ian McEwan, acusado de pl�gio no romance "Repara��o". Chegou a fazer duas "apari��es" na s�rie de TV "Os Simpsons", ambas com um saco de papel na cabe�a, gravou sua voz num filmete para promover "V�cio Inerente" -que ganhar� no ano que vem vers�o cinematogr�fica por Paul Thomas Anderson- e at� deu uma breve declara��o � CNN (n�o levada ao ar, mas lida por um narrador).
Nela, ironizou: "'Recluso' � um c�digo usado por jornalistas que significa: 'N�o gosta de falar com rep�rteres'".
Uma pe�a publicit�ria feita pela editora para "Bleeding Edge" debocha da sua lenda. Nela, um jovem de �culos escuros vaga por Nova York vestindo uma camiseta com os dizeres: "Ol�, eu sou Tom Pynchon".
ALEXANDRE RODRIGUES, 46, � jornalista e escritor, autor de "Veja se Voc� Responde Essa Pergunta" (N�o Editora).
DEBORAH PAIVA, 62, � artista pl�stica.
Livraria da Folha
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