Dois olhares sobre os jogos de "Decameron"
RESUMO Duas novas edi��es se voltam para o cl�ssico de Boccaccio: uma antologia, lan�ada pela Cosac Naify, mais fiel a aspectos sint�ticos do italiano; e uma vers�o integral do texto, pela L&PM. Apesar do bom n�vel das tradu��es, faltam aparatos cr�ticos e notas para ampliar as possibilidades de interpreta��o do texto pelo leitor.
*
De uma vez, apareceram duas novas tradu��es do "Decameron" (1349-53, revisto em 1370-71), de Giovanni Boccaccio (1313-75). Uma delas, integral, efetuada por Ivone C. Benedetti [L± R$ 74; 632 p�gs.]. A outra, contendo uma sele��o de dez hist�rias, escolhidas entre as mais celebradas do volume, de responsabilidade de Maur�cio Santana Dias [Cosac Naify; R$ 62; 128 p�gs.].
O argumento do livro � conhecido: atingida pela peste negra, em 1348, Floren�a v�-se na imin�ncia do caos: a organiza��o pol�tica entra em colapso, rompe-se a autoridade familiar e p�blica, desbaratam-se os costumes. A viol�ncia e o assombro das mortes sucessivas levam a situa��es extremas: da entrega a excessos luxuriosos imediatistas, sem esperan�a de futuro, � autoflagela��o, quando apenas a expia��o dolorosa parecia responder ao castigo.
Nesse cen�rio t�trico, dez jovens da alta sociedade -sete mulheres e tr�s rapazes, acompanhados de sete servi�ais- buscam sobreviver � cat�strofe, agindo com bom senso e lucidez.
Retiram-se juntos para propriedades fora da cidade e, ali, procuram restabelecer uma rotina; o asseio pessoal, o decoro civil, as pr�ticas crist�s e o prazer da conversa��o s�o a base do autogoverno do grupo.
Decidem ainda que, da sesta ao crep�sculo, sob o comando de um "rei" ou "rainha" eleito a cada dia e que decidiria o tema da jornada, contar-se-iam hist�rias a fim de tornar mais leve o dia. E o plano � rigorosamente seguido durante dez jornadas -justamente o significado do termo grego "decameron".
As jornadas s�o dez, mas se estendem, de fato, por um per�odo de 14 dias. Isto porque, dando in�cio �s sess�es numa quarta-feira, interrompem as reuni�es �s sextas, dia simb�lico da Paix�o de Cristo, destinado a ora��es, e tamb�m aos s�bados, reservados para lavar a cabe�a e jejuar.
Apenas duas das dez jornadas t�m temas livres; as demais seguem instru��es, como a de contar hist�rias nas quais os protagonistas se saem bem, ap�s tribula��es v�rias; ou, ao contr�rio, hist�rias de amantes rec�procos que tiveram final infeliz; ou sobre pessoas que, por meio do engenho sutil, conseguiram conquistar um bem desejado; hist�rias nas quais algu�m, com respostas prontas, safou-se de perigos etc.
Por esse esquema, notam-se ao menos quatro for�as posicionadas no centro do tabuleiro do "Decameron", a saber:
1) o esfor�o dos jovens para recriar uma corte, refundar uma ordem pol�tica, quando a cidade real parece sucumbir ao caos;
2) o peso enorme da fortuna, isto �, do acaso e da conting�ncia, que se abate sem causa ou aviso sobre as a��es e vidas humanas;
3) a tirania e alcance das paix�es amorosas, que n�o acatam condi��o de nascimento, situa��o econ�mica ou temperamento individual, a todos arrastando pelo desejo de gozo com promessas inseguras e perigosas;
4) a bravura do engenho, isto �, do entendimento pronto e perspicaz, apto como nenhuma outra faculdade humana a fazer frente ao imprevisto da fortuna.
As cem narrativas contadas pelas dez personagens acomodam, com inven��o copiosa, g�neros ret�ricos muito diversos, como as "novelas" (isto �, narrativas de assuntos diversos, compostas de v�rios epis�dios, quase independentes entre si), as "f�bulas" (an�logas aos "fabliaux" franceses, isto �, historietas em prosa ou verso, de natureza c�mica, escabrosa ou obscena), as "par�bolas" (vale dizer, alegorias, exemplos, contos moralizados de inten��o pedag�gica) ou, enfim, as "hist�rias" (que fazem refer�ncia a passagens hist�ricas e personagens ilustres).
Alex Cerveny/Arte Folha | ||
No conjunto, as novelas organizam em "estilo m�dio" -equidistantes do sublime e do pedestre, como prop�e um conhecido estudo de Francesco Bruni- uma enorme variedade de registros discursivos. Nessa perspectiva, as hist�rias contadas pelos jovens sobreviventes produzem, por meio da ex�mia arte de narrar, uma esp�cie de "Paideia", reinterpretada em contexto crist�o.
Elas trazem � vida um repert�rio de inven��es arquitetadas como educa��o da elite, mas uma educa��o menos apegada � pureza da doutrina ou � subst�ncia do conceito do que � conversa��o variada, ao entretenimento elegante, � sutileza com que a arte costura, num s� tecido, os mil pontos da l�ngua dos acidentes.
NOVAS TRADU��ES
Ambas as novas tradu��es, feitas diretamente do italiano, s�o de bom n�vel. Comparando trechos aleat�rios do livro, a de Santana Dias parece mais literal, mais fiel aos termos repetidos e � sintaxe apta a m�ltiplas intercala��es do italiano, o que pode, por vezes, soar menos fluente em portugu�s. E poderia ser ainda mais literal, arcaizando e toscaneando o portugu�s at� onde suportasse a inteligibilidade da l�ngua.
Com um exemplo simples: na primeira frase da primeira novela da primeira jornada, aparece duas vezes a palavra "coisa", e na frase seguinte, o termo "coisas".
A tradu��o de Santana Dias mant�m a repeti��o na primeira frase, mas a altera na terceira ocorr�ncia por "obras"; Benedetti usa apenas uma vez "coisas" na primeira frase, substituindo-a, na segunda, por uma an�fora ("as fez").
Por qu�? Talvez porque hoje soe mal a repeti��o? Ela, por�m, � parte de um estilo que n�o a considera deselegante ou redundante, em parte porque s�o hist�rias para ser lidas em voz alta, em parte porque a repeti��o favorece o ritmo solto e o temperamento leve, um despejo m�dio, prosaico, cuja gra�a n�o conv�m desdenhar.
O aparato cr�tico das duas edi��es � reduzido: no caso da antologia, se limita a uma breve introdu��o de Santana Dias, modesta na pretens�o interpretativa, mas adequada na aproxima��o tanto do mais importante especialista no "Decameron", Vittore Branca, que acentua os aspectos "medievais" do livro, quanto do j� citado Bruni. Traz tamb�m uma seleta e �til bibliografia para os que desejem avan�ar os estudos sobre o livro.
No caso da edi��o integral da L&PM, a introdu��o ficou a cargo de Carlos Eduardo Berriel, professor de teoria liter�ria na Unicamp, estudioso do Renascimento e editor da revista "Morus", dedicada aos estudos ut�picos.
Aqui a inten��o interpretativa articula aspectos da vida social europeia e da biografia de Boccaccio -por exemplo, fazendo-o ver, em N�poles, a sua amada Fiammetta, � imagem da Beatriz de Dante ou da Lauretta de Petrarca. No entanto, mais que vividas, tais passagens s�o lugares comuns do g�nero biogr�fico, anedotas assentadas em t�picas ret�ricas e n�o hist�rias que se possam confirmar.
Berriel tamb�m entrega o "Decameron", sob uma "concep��o inteiramente laica", ao "Renascimento" e "� variedade da realidade da vida", o que faria das suas novelas uma quase antecipa��o do "romance enquanto g�nero". � uma leitura que, mais recentemente, tende a ser criticada, porque refor�a uma vis�o teleol�gica da hist�ria, segundo a qual os eventos de uma �poca se explicam mais pelo que resultariam em outra do que pelas refer�ncias pr�prias do seu modo de significa��o.
Na edi��o da Cosac Naify, n�o h� notas de nenhuma esp�cie, nem textuais, nem interpretativas, o que, no caso de um livro escrito h� 650 anos atr�s, enfraquece as possibilidades de uma leitura bem-feita.
N�o porque se deva ser did�tico a respeito dele, ou porque n�o sustente uma inteligibilidade atual, mas sim porque notas bem informadas multiplicam a capacidade de o leitor aproveitar a pot�ncia significativa do texto.
Na edi��o da L&PM, h� algumas notas -poucas, a considerar qualquer boa edi��o italiana, como a da Mursia, a cargo de Cesare Segre, ou a da Einaudi, do citado Branca. Entretanto, parte delas se gasta por uma op��o question�vel, qual seja, a de reverter para o franc�s os nomes italianizados por Boccaccio. A op��o se complica ao alterar o t�tulo alternativo do livro, apresentado por Boccaccio em sua primeira didasc�lia: "Comincia il libro chiamato Decameron cognominato principe Galeotto...".
Ao traduzir Galeotto por Galehaut, Benedetti busca ser fiel ao nome original do amigo dedicado de Lancelote, no c�lebre ciclo bret�o.
Mas Galehaut � op��o estranha ao original boccacciano. Se fosse para traduzir o nome, n�o seria mais pr�prio, em vez de lhe dar uma retrovers�o francesa, aportugues�-lo para Galeote, nome consagrado do her�i nas tradu��es do ciclo do Graal para nossa l�ngua?
Outra complica��o se d� pelo honor�fico "pr�ncipe", mantido pela tradutora junto a Galehaut, pois se trata de voz gen�rica italiana para referir um "cavaleiro nobre". Ma, se o italianismo se mant�m, n�o seria mais justo deixar tudo por conta do "Pr�ncipe Galeotto", assim como para os demais nomes italianizados, e ter mais espa�o para notas filol�gicas, ret�ricas e hist�ricas que ampliassem as estrat�gias interpretativas do texto?
Seja como for, estas s�o observa��es incidentais, que contam pouco diante do que um e outro tradutor t�o bem fez ao presentear-nos com tal obra de cultura.
TRABALHO GR�FICO
No que toca ao trabalho gr�fico e de editora��o, as duas edi��es s�o bem diferentes.
A da L&PM, com n�mero muito maior de p�ginas, � mais simples, sem deixar de ser bem impressa, revisada e facilmente manuse�vel.
A capa faz uso de uma pintura a �leo de Gustaaf Wappers (tamb�m conhecido como Gustave Wappers, 1803-74), que, � maneira acad�mica do s�culo 19, retrata o pr�prio Boccaccio a contar hist�rias para a rainha de N�poles e uma dama, ambas vestidas como cortes�s e atiradas languidamente sobre o leito desarrumado.
� uma cena conforme � fama mais licenciosa que os tempos acentuaram no "Decameron", mas que pouco tem a ver com o r�gido decoro com que se comporta o grupo dos dez jovens narradores, tal como o livro o prop�e.
Os grandes tipos do t�tulo e do autor, que ocupam um ter�o da capa, empregam uma tipologia de estilo h�brido, com detalhes da letra romana como na perna da frente do "R", bem como na propor��o geral; acrescentam-se estiliza��es e tra�os figurativos, como espadas no "M" e "N", arco ogival e barra dupla no "A" -esse arco, por exemplo, lembra a f�rmula pseudog�tica atualmente muito empregada em s�ries juvenis de sucesso.
Portanto, n�o se cuidou, aqui, para que a capa fosse veross�mil ao "trecento" italiano, mas tampouco se quis que parecesse completamente contempor�nea: h� uma refer�ncia gen�rica ao acad�mico, como a dizer que se trata de livro antigo ou cl�ssico.
A edi��o da Cosac Naify, ao contr�rio, faz uma clara op��o por um livro visualmente autoral e contempor�neo ao delegar toda a ilustra��o do volume, em capa dura, ao artista pl�stico paulistano Alex Cerveny. A solu��o da capa se d� em termos tipol�gicos, com aplica��es de vinhetas alusivas a grotescos de manuscritos iluminados.
O efeito � elegante, j� pela elimina��o das serifas, pelo rigor geom�trico e pelo emprego do estilo "monoline", isto �, sem varia��o na espessura dos tra�os. H� ligaturas interessantes -por exemplo, entre "C" e "A" e entre "O" e o "N".
Internamente, as ilustra��es s�o numerosas, n�o havendo p�gina em que n�o se encontrem desenhos, vinhetas ou interven��es em vermelho e azul no pr�prio corpo do texto. A apar�ncia geral � luxuosa, a ponto de dar ao livro certo ar decorativo, sen�o mesmo de "coffee table book": aquele que n�o s� se l�, mas se deixa estar sobre os m�veis como ornamento.
ALCIR P�CORA, 59, � professor de teoria liter�ria da Unicamp, autor do livro "M�quina de G�neros" (Edusp) e organizador de "Por Que Ler Hilda Hilst" (Globo).
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade