A descoberta da Am�rica e o 18 Brum�rio de Alexis de Tocqueville
Os editores brasileiros desta biografia de Alexis de Tocqueville, publicada em ingl�s h� seis anos, acrescentaram um subt�tulo que n�o constava do original --o profeta da democracia. A alus�o soa estranha, quando se sabe que Tocqueville manteve uma atitude reativa, para n�o dizer reacion�ria, diante da democracia moderna, baseada no voto popular (ainda que restrito) e na igualdade de direitos. Longe de t�-la anunciado, ela j� era uma realidade nos Estados Unidos e a principal controv�rsia das guerras napole�nicas na Europa quando Tocqueville nasceu em Paris, em 1805.
O subt�tulo n�o � descabido, por�m, se estiver impl�cito que o biografado foi o profeta dos males e dos riscos da democracia, de suas propens�es a degenerar em novas formas de despotismo. Essa ideia fixa norteou tanto sua obra de historiador e te�rico pol�tico, como sua discreta atua��o como parlamentar liberal nos anos que antecederam e se seguiram � Revolu��o de 1848 na Fran�a. � atribu�da em grande parte a raz�es biogr�ficas.
Tocqueville foi um magistrado oriundo de fam�lia nobre e bem relacionada no Antigo Regime, anterior � Revolu��o de 1789. Quem sustentou a defesa de Lu�s 16 perante a Conven��o que o enviaria � guilhotina foi seu bisav�, ele pr�prio guilhotinado em seguida. Tamb�m preso, o pai do fil�sofo escapou do mesmo destino quando, na pen�ltima hora, a queda de Robespierre (1794) encerrou o per�odo de terror revolucion�rio. De um �ngulo psicol�gico, sua obra refletiria o empenho de exorcizar o trauma da Revolu��o.
Pois a Revolu��o prosseguia. Depois do refluxo representado pelo Imp�rio de Napole�o (1804-14) e pela Restaura��o da dinastia Bourbon (1815-30), novas revoltas, em 1830 e 1848, come�avam a apresentar uma fei��o in�dita, oper�ria e socialista. N�o bastava a igualdade jur�dica, reivindicava-se igualdade material.
Era a �poca da m�quina a vapor, das estradas de ferro e do tel�grafo, das cartolas que imitavam chamin�s de f�bricas e navios. Em meio ao tumulto urbano do qual eclodiria a modernidade, n�o se pode dizer que Tocqueville tenha levado uma vida empolgante.
Sente-se a dificuldade do bi�grafo, o jornalista e historiador brit�nico Hugh Brogan, de sustentar o interesse nas quase 700 p�ginas de "Alexis de Tocqueville" [trad. Mauro Pinheiro, Record, R$ 69,90] em que narra uma exist�ncia livresca e enfermi�a, na maior parte do tempo enclausurada num gabinete ou no castelo da fam�lia na Normandia.
MINISTRO
T�mido e circunspecto, Tocqueville foi levado � vida p�blica pela influ�ncia familiar e pela fama de seus livros num tempo em que as elites parlamentar, liter�ria e financeira em boa parte se sobrepunham (os poetas Lamartine e Victor Hugo, por exemplo, foram deputados). A pol�tica o expeliu depressa. Foi um ef�mero ministro de Lu�s Bonaparte, antes que o sobrinho do imperador, eleito presidente em 1848, desse o golpe de Estado (1851) que o converteria em Napole�o 3�.
Da� o gosto com que este bi�grafo exaustivo aborda os dois epis�dios mais movimentados de uma vida um tanto ma�ante, a aventurosa viagem aos Estados Unidos, (de que resultou sua obra mais conhecida, "A Democracia na Am�rica", 1835-40) e a soturna perambula��o por Paris durante os levantes populares ferozmente reprimidos pelo governo republicano, assunto de um livro inacabado, "Lembran�as de 1848" [trad. Modesto Florenzano, Penguin Companhia, 392 p�gs., R$ 28,50].
Tocqueville foi um historiador erudito, um te�rico imaginativo e um escritor elegante, mas sua qualidade mais not�vel � a aptid�o para generalizar a partir da observa��o concreta.
Entre abril de 1831 e fevereiro de 1832, o jovem autor passou nove meses nos Estados Unidos; foi paparicado nos sal�es de Nova York e Boston, naufragou no rio Ohio, desceu o Mississippi, avistou-se com o ent�o presidente, Andrew Jackson, mas n�o conheceu James Madison na Virg�nia --a maior l�stima intelectual, diz o bi�grafo, da excurs�o.
Sob a alega��o de estudar o sistema penitenci�rio local --o governo constitucional e corrupto do "rei burgu�s", Lu�s Filipe (1830-48), financiava a viagem-- ele concebeu uma interpreta��o pioneira e at� hoje fecunda sobre a sociedade e a democracia americanas.
Uma terra virgem onde todos s�o imigrantes � prop�cia ao nivelamento de direitos, mas a democracia americana n�o existiria sem as ra�zes da participa��o comunit�ria e das limita��es ao poder do rei, legados essenciais do colonizador ingl�s que remontavam � Idade M�dia. Sob o alvoro�o das revolu��es e contrarrevolu��es, Tocqueville --sempre interessado na moldura geral e nos fatores de longo alcance-- identifica veios profundos de continuidade que apontam numa mesma dire��o: centraliza��o do Estado e igualdade (pol�tica e, em seguida, social).
Her�i de guerra, Jackson, o presidente que Tocqueville conheceu, foi um general estranho � elite dirigente da costa atl�ntica que se elegeu � frente de um movimento de massas (origem do Partido Democrata). Nessa atmosfera, n�o custou ao escritor teorizar que o grande risco do sistema americano estaria no advento de uma ditadura da maioria, sua obsess�o. O mecanismo de freios e contrapesos ("checks and balances", pelo qual os tr�s poderes se controlam, e as inst�ncias locais controlam a nacional) talvez n�o fosse suficiente para preveni-lo.
Ele falava dos Estados Unidos (e, indiretamente, da Inglaterra), mas seu pensamento n�o deixava a Fran�a, onde a "trag�dia" (Napole�o) estava por ser reencenada como "farsa" (Napole�o 3�), conforme o famoso gracejo de Marx. Para Tocqueville, igualdade e democracia eram vetores irrecorr�veis, consequ�ncia do pr�prio progresso moderno, mas o governo da maioria descambava para novo despotismo, legitimado por sua pr�pria natureza majorit�ria, sendo exercido primeiro por uma fac��o, logo depois por um tirano. Por qu�?
O nexo estava numa ideia do fil�sofo Montesquieu desenvolvida por Tocqueville, sobretudo em sua outra obra influente, "O Antigo Regime e a Revolu��o", publicada em 1856, tr�s anos antes de a tuberculose matar seu autor.
Montesquieu argumentara que na monarquia (distinta, para ele, do despotismo), o poder do rei, embora imenso, era contrastado por regulamentos e costumes, pelas autonomias concedidas a certas cidades, corpora��es e tribunais, para n�o mencionar a estrutura paralela da Igreja. Esses elementos de conten��o seriam os "corpos intermedi�rios", fonte de inspira��o de sua doutrina da separa��o de poderes.
DESPOTISMO
A contribui��o de Tocqueville foi sustentar que a centraliza��o administrativa, j� em curso no Antigo Regime, debilitara os "corpos intermedi�rios", preparando o terreno para a Grande Revolu��o (da qual 1789, 1830, 1848 etc. s�o apenas epis�dios) que os erradica em nome da igualdade. O resultado � a facilidade com que um d�spota passa a dominar a multid�o de indiv�duos igualados numa dispers�o de �tomos, sem v�nculo entre si nem anteparo que os resguarde do Estado.
Tocqueville n�o deixou uma an�lise sobre o bonapartismo; esse seria o tema da sequ�ncia de "O Antigo Regime e a Revolu��o", nunca escrita. Ainda assim, � instrutivo comparar sua vis�o com a de Karl Marx, que elaborou o conceito no ensaio "O 18 Brum�rio de Lu�s Bonaparte". Para o fil�sofo socialista alem�o, pol�tica e hist�ria n�o passam de um teatro de marionetes comandado pelas rela��es econ�micas de produ��o.
Mesmo quando se torna esquem�tica demais, essa concep��o � fabulosa pelo que pode revelar do funcionamento invis�vel da sociedade. Comparada a ela, as ideias de Tocqueville parecem superficiais e obsoletas; comparado ao estilo de Marx, com suas impreca��es de profeta e sua vitalidade panflet�ria, o de Tocqueville empalidece.
No c�none marxista, em certa fase hist�rica o movimento prolet�rio ainda n�o tem for�a para depor a burguesia, nem esta consegue aniquilar aquele; desse prec�rio impasse emerge de repente o poder de um ditador, referendado por plebiscito, que parece governar acima de todas as classes. Apar�ncia enganosa, por�m, pois o bonapartismo seria, em �ltima an�lise, a forma extrema do dom�nio pol�tico burgu�s, quando acuado pela revolu��o social.
O bonapartismo se desdobraria no s�culo 20 nas vertentes fascista e comunista --ambos movimentos de massa conduzidos pelo chefe inconteste de uma fac��o disciplinada, para a qual a viol�ncia pol�tica � leg�tima quando empregada em nome de uma ra�a ou de uma classe eleita.
A encarna��o do bonapartismo na figura de Stalin e outros ditadores comunistas conferiu uma aura tocquevilliana ao sinistro fen�meno, que a humanidade ainda n�o superou completamente, como se ele correspondesse n�o apenas a um momento agudo da luta de classes, mas a todo um per�odo embrion�rio da democracia moderna. � o que faz de Tocqueville um autor ainda t�o atual.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade