Walter Benjamin na era da reprodutibilidade t�cnica
Quando Walter Benjamin se matou, aos 48 anos, em setembro de 1940, fugindo da pol�cia francesa do regime de Vichy (pr�-Hitler) e barrado na fronteira com a Espanha pela pol�cia franquista, vivia exilado e desempregado em Paris. Sem jamais ter conseguido um posto de professor na universidade, mantinha-se como cr�tico liter�rio, com um pequeno aux�lio do Instituto de Pesquisa Social, embri�o da escola de Frankfurt.
Havia publicado poucos livros, alguns artigos, v�rias resenhas, mas as portas se fechavam cada vez mais para ele em raz�o de sua origem judaica alem�. Era conhecido num pequeno c�rculo de amigos, em sua maioria escritores que fugiram do nazismo: Brecht, Adorno, Scholem, e, em Paris, tamb�m Bataille e Klossovski.
Reprodu��o |
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O fil�sofo alem�o Walter Benjamin |
Quando, em compensa��o, Benjamin caiu em dom�nio p�blico, 70 anos mais tarde, sua fama n�o cessava de crescer. Por mais justificado que seja, tal fen�meno deve nos deixar desconfiados. Teria Benjamin se transformado em mais um "bem cultural", um "Kulturgut", isto �, uma mercadoria cultural, cujo valor de fetiche ele n�o se cansou de denunciar?
ONDA
Muit�ssimo citado, em geral de maneira fragment�ria, Benjamin � agora objeto de uma onda de tradu��es que arrisca se transformar, no Brasil, em epidemia.
Cabe, portanto, perguntar se essa onda de fato leva a um conhecimento mais preciso do autor, em particular em rela��o a suas reflex�es sobre as transforma��es da percep��o e das pr�ticas est�ticas na modernidade, ou se n�o assinalaria uma tend�ncia mercadol�gica de "glamour" com a qual se confunde, tantas vezes, a ideia de cultura viva.
Seu primeiro texto traduzido no Brasil foi "A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade T�cnica". O ensaio introduz hip�teses essenciais para uma teoria da arte contempor�nea, marcada, segundo Benjamin, pela "reprodutibilidade t�cnica", central na fotografia e no cinema, que abole progressivamente a 'aura' de unicidade e de autenticidade da obra de arte.
Existem hoje quatro vers�es diferentes desse texto nas "Gesammelte Werke" (obras reunidas, editora Suhrkamp): tr�s em alem�o, uma em franc�s. A �nica publicada em vida de Benjamin foi a francesa, traduzida por ele e por Klossovski a partir de duas vers�es em alem�o, escritas em fins de 1935 e in�cios de 1936.
A primeira delas foi traduzida por S�rgio Paulo Rouanet para a editora Brasiliense, nos anos 1980; a segunda ficou desaparecida por d�cadas. A vers�o francesa saiu em 1936, na "Zeitschrift f�r Sozialforschung", revista para pesquisa social, publicada em Paris, j� que tinha sido proibida na Alemanha, pelo instituto de mesmo nome, dirigido nos EUA por Max Horkheimer e Theodor Adorno.
Ora, a vers�o francesa sofreu in�meros cortes, sem a concord�ncia de Benjamin, pelo editor em Paris, Max Brill, e com a anu�ncia de Horkheimer. Benjamin s� tinha concordado com algumas modifica��es em raz�o da prud�ncia pol�tica do instituto, mas queria marcar uma posi��o materialista e progressista que foi dilu�da com a censura.
Ao reler a carta de Benjamin a Horkheimer de 14 de mar�o de 1936, na qual manifesta sua indigna��o com a "deslealdade" de Brill, e as cartas de Horkheimer e de Adorno, de 18 de mar�o de 1936 --dispon�veis no rec�m-editado "Benjamin e a Obra de Arte" [trad. Vera Ribeiro e Marijane Lisboa, Contraponto, 256 p�gs., R$ 48]--, torna-se manifesto o conflito entre Benjamin e seus interlocutores.
Ademais, quando se l� a longa carta a Benjamin que Adorno assina com um "seu velho amigo" e, em seguida, a carta a Horkheimer, de 21 de mar�o, na qual Adorno elogia concep��es de Benjamin, mas tamb�m afirma sua falta de dial�tica, seu "masoquismo", sua "concep��o rom�ntica e professoral sobre a t�cnica", fica patente o quanto Adorno --que se preparava para emigrar aos EUA-- est� preso num jogo de poder entre o "patr�o" (Horkheimer) e o "bolsista" (Benjamin) do instituto ao qual pretendia integrar-se.
�LTIMA VERS�O
Essa situa��o dif�cil levou Benjamin a escrever, entre 1938 e 39, uma �ltima vers�o do ensaio, que seria traduzida em 1968, por Carlos Nelson Coutinho, e em 1969, por Jos� L. Gr�newald (texto que consta at� hoje do volume "Os Pensadores", da editora Abril).
Retraduzida com cuidado por Marijane Lisboa para a Contraponto, esta � a vers�o que ele achava mais congruente com seus prop�sitos: explorar as possibilidades t�cnicas e art�sticas do filme e da montagem fotogr�fica em favor de uma pol�tica de esquerda, em vez de lamentar sua integra��o � ind�stria do cinema como mero entretenimento.
Benjamin tentou, em v�o, publicar essa �ltima vers�o de seu texto em alem�o ou em ingl�s --impossibilidade que foi fruto da recusa de Horkheimer, documentada no mesmo volume, de p�r Benjamin em contato com o pesquisador em cinema Jay Leyda, de Nova York.
A segunda vers�o em alem�o, de 1936, que estava desaparecida, foi localizada no Arquivo Horkheimer em Frankfurt e publicada em 1989 num volume de "Suplementos". Essa vers�o acaba de ser traduzida pela primeira vez no Brasil, por Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado [Zouk, 128 p�gs., R$ 38] num trabalho preciso, com excelentes notas do tradutor. Anuncia-se ainda outra tradu��o do mesmo texto (!), por Gabriel Vallad�o Silva, para a editora L&PM.
A hist�ria da reda��o e da recep��o do texto foi reconstru�da com cautela por Detlev Sch�ttker em livro de 2007, no qual publica a vers�o "definitiva" de Benjamin, de 1938-9, com vasta documenta��o, notas, fortuna cr�tica, excelente bibliografia e filmografia. Ele foi inclu�do no volume da Contraponto, organizado por Tadeu Capistrano, mas sem a bibliografia (embora citada no corpo dos coment�rios!) e a filmografia, e sem justificativa nem men��o a essa falta.
Em compensa��o, o organizador publica dois artigos de Susan Buck-Morss e Miriam Hansen, de 1992 e 1987. Sem d�vida interessantes, os textos, no entanto, n�o combinam com o trabalho de Sch�ttker, cuja reconstru��o aponta muito mais para a discuss�o entre Benjamin e o Instituto de Pesquisa social.
Ademais, nenhum desses artigos cita a segunda vers�o, encontrada em 1989 (que Hansen nem poderia conhecer, portanto). Pergunta-se por que o organizador incluiu no mesmo livro textos t�o diversos e retirou, sem advertir o leitor, informa��es preciosas fornecidas pelo autor.
Por fim, gostaria de insistir na import�ncia da segunda vers�o. Ela aponta para uma nova teoria da "mimesis", isto �, da "representa��o art�stica", e do jogo ou da brincadeira" ("Spiel") nas artes. Trata-se de tentar pensar as possibilidades, liberadas pela perda da aura e pelas novas t�cnicas, de novas pr�ticas est�ticas: "ordena��es experimentais", ou "Versuchsanordnungen" (a revis�o do volume da Brasiliense continua traduzindo o termo por "experi�ncias", o que se presta a confus�o).
Essas novas pr�ticas art�sticas e interativas --por exemplo, no Brasil, Oiticica ou Lygia Clark-- deveriam permitir a inven��o de um "espa�o de jogo" ("Spielraum") que Benjamin esperava ser poss�vel, n�o s� no dom�nio da est�tica, mas tamb�m no da pol�tica.
� dessa rela��o entre est�tica e pol�tica que se trata, para quem quiser ler Benjamin sem transform�-lo em mais um fetiche cultural.
JEANNE MARIE GAGNEBIN � professora titular de filosofia na PUC-SP e autora de "Hist�ria e Narra��o em Walter Benjamin" (Perspectiva).
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