A cruzada de um soci�logo contra a mistifica��o de Jorge Luis Borges
Trinta e quatro anos depois de ter causado celeuma com uma pesquisa que explicitou as rela��es de Carlos Drummond de Andrade e de sua gera��o intelectual com o poder, o soci�logo Sergio Miceli volta ao vespeiro pol�tico-letrado com "Vanguardas em Retrocesso" [Companhia das Letras, 232 p�gs., R$ 49,50]. A colet�nea re�ne 11 anos de leituras comparativas sobre artistas e escritores argentinos e brasileiros dos anos 1920, tendo o mestre-sala Jorge Luis Borges na comiss�o de frente.
Ao pesquisar os escritos de juventude que Borges expurgou de sua obra completa, Miceli procura ancorar na pol�tica e na hist�ria argentina dos anos 20 uma obra que a cr�tica (n�o s� local) buscou isolar do contexto sociopol�tico, conferindo-lhe um status que Miceli chama de "extraterrestre".
Alessandro Shinoda - 1�. mar.12/Folhapress | ||
Retrato do soci�logo Sergio Miceli, em sua resid�ncia durante entrevista para a Folha no ano passado |
Ao reiterar o nacionalismo de um autor que se esfor�ou para apagar os contornos nacionais de sua obra, Miceli faz o que chama de "crime de lesa-majestade" e j� desperta rea��es, n�o s� na Argentina. Seus cr�ticos veem no trabalho uma tentativa de subordinar a an�lise "puramente liter�ria" ao contexto sociol�gico. Miceli contra-argumenta: para ele, � "rid�culo" querer ler a poesia de Drummond como pura metaf�sico.
Publicado ao mesmo tempo na Argentina e no Brasil, com pequenas diferen�as na montagem, o livro ser� lan�ado amanh�, �s 18h30, na Livraria da Vila do Shopping Higien�polis, em debate com intelectuais brasileiros e argentinos. Entre seus pr�ximos projetos est�o novos ensaios portenhos, mas sobre os anos 30, quando se d� o recuo conservador de Borges, e um livro sobre Drummond. "Ele que me aguarde", alerta Miceli.
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Folha - O que significa o t�tulo "Vanguardas em Retrocesso"?
Sergio Miceli - Uma gente, tanto letrados como artistas, que alardeava que estava inovando formalmente –com novas linguagens, sintaxe do povo, l�ngua falada, antilusitanismo, a import�ncia do modelo franc�s–, mas, do ponto de vista pol�tico, era para l� de retr�grada. Porque era ligada ao sistema olig�rquico anterior, num sistema de domina��o de que nem se dava conta.
A Beatriz Sarlo tem um trabalho que mostra a grande coisa que [a escritora] Victoria Ocampo fez: ela era uma tradutora. A revista "Sur" era uma esp�cie de "Serrote" [revista de ensaios do Instituto Moreira Salles] dos anos 30: achava que era vanguarda porque traduzia autores franceses de quarta e de quinta categoria.
Com o livro, eu digo: vamos acabar com o relato triunfalista de que o modernismo � s� um avan�o. Tamb�m � um retrocesso, o horizonte pol�tico estava toldado por essa interpreta��o, que eles n�o conseguiam fazer, do que estava se modificando em termos pol�ticos.
Nos anos 30, momento de baixa inclusive no impacto deles na cena cultural local, tanto l� como aqui o retrocesso pol�tico � mais dram�tico ainda. Se voc� ler a correspond�ncia do M�rio de Andrade em 1932, com Bandeira, Drummond, � decepcionante a ingenuidade pol�tica dele, ele n�o est� atinando com o que acontece no pa�s.
Houve retrocesso est�tico tamb�m?
N�o. � complicado, tem uma vanguarda, eu estou garantindo o nome sem aspas. Estou assumindo o que eles se diziam, porque isso � uma autoimagem. Eles empreenderam um trajeto a um custo alt�ssimo da interpreta��o que eles fizeram para tr�s, da hist�ria cultura argentina e brasileira. Eu acho que foi grave o que eles fizeram, no Brasil � como se n�o existisse arte acad�mica, e a arte acad�mica brasileira � sensacional. Como se s� existisse o barroco... Eles rearrumaram o pante�o. Na Argentina, idem. Botaram milhares de autores e artistas importantes fora e constru�ram uma esp�cie de nascimento m�tico da literatura argentina com o "criollismo" e com a literatura gauchesca. S�o vanguardas na retaguarda em termos pol�ticos.
Mas ele tinha alternativa?
Pode n�o ter alternativa, mas o ponto � que teve consequ�ncia para a obra. ele n�o conseguiu atinar com o que tinha acontecido politicamente. Ent�o, quando eu escrevo que eles entoam o canto do cisne da oligarquia, quer dizer: eles est�o inovando no linguajar, mas t�m muito preconceito politico, muita interpreta��o equivocada do que est� acontecendo socialmente, da nova coaliz�o vitoriosa em 30... L� e aqui, � parecid�ssimo, todos viram antigoverno central. Eles devia atinar, para a continuidade da obra deles, o que � que estava acontecendo. Outro exemplo: a rea��o de Oswald e Mario ao romance social nordestino. Eles destratam, o Oswald chamava de "os b�falos do Nodeste". N�o est�o atinando com o que estava acontecendo: S�o Paulo tinha perdido o controle do sistema pol�tico, e isso tinha um pre�o cultural. Quando a gente discute autores fora desse contexto, voc� n�o entende nada, n�o entende Drummond, n�o entende Bandeira. Drummond come�a a vida no Partido Republicano Mineiro, como um homem da oligarquia, com um posi��o na Imprensa Oficial, trabalhou com o Capanema como secret�rio de Estado.
O posicionamento antigoverno central, antinovo rearranjo pol�tico, n�o era uma tend�ncia internacional entre os artistas dos anos 1930?
N�o. O comunismo estava a todo vapor, o stalinismo...
Mas n�o havia tr�nsito entre Brasil e R�ssia. o stalinismo chegava aqui via Fran�a
Eu n�o saberia te responder. N�o me precipitaria para dar uma resposta disso. No caso argentino e no caso brasileiro � como tivesse havido uma decep��o pelo desmonte de um sistema de poder no qual eles se viam representados. Todos os escritores modernistas brasileiros tinham uma pretens�o pol�tica, isso � evidente: Augusto Meyer, Drummond. Quando eles ficam mais velhos e j� est�o reconhecidos, legitimados e consagrados eles podem recuperar essa hist�ria pregressa de um outro jeito, mas eles tiveram uma trajet�ria pol�tica. Na Argentina � a mesma coisa. Os anos 1920 s�o um fantasia da prosperidade, do otimismo. Esse per�odo da vanguarda corresponde � bonan�a econ�mica. eles acham que aquele mundo n�o ia acabar nunca. com a crise de 29, o golpe militar do Uriburu houve um desmonte daquele regime. Como eles reagiram? Como se o mundo tivesse caindo.
Sabetta/France Presse |
O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) em foto de 22 de agosto de 1981 em hotel na Cidade do M�xico |
E quanto ao Borges do final da vida, que apoiou ditaduras na Argentina?
N�o estou falando do Borges mais reacion�rio, porque esse tem epis�dios que eu nem falo no livro que s�o lament�veis: apoio ao Pinochet, ida ao Chile, n�o me refiro a ele, pois acho que j� � uma coisa de senilidade.
Neste livro voc� aplica a mesma metodologia aplicada em seu trabalho sobre os intelectuais brasileiros, de 1978, e que vem sendo depurada ao longo de 34 anos. Nesse percurso, que limites voc� percebeu em seu m�todo?
Eu fa�o uma esp�cie de hist�ria social e intelectual. N�o sou cr�tico liter�rio. Gostei muito da coisa argentina, mas consegui entender melhor a coisa brasileira. A gente acha que vivemos numa coisa que � o �mago da vida, que tudo � aqui, que a cultura brasileira � um mist�rio. N�o � assim.
Voc� despertou celeuma com o livro dos intelectuais, mas hoje seu trabalho j� est� incorporado...
Faz parte do establishment [risos].
Por que focar a Argentina neste novo trabalho?
Sempre quis fazer uma coisa comparativa. O problema � que voc� tem que estudar muito. Eu tinha tentado fazer uma pesquisa comparativa com os mexicanos, atrav�s da pintura, os muralistas, mas n�o foi adiante. Comecei em 2001, em Stanford. Tem mais de 11 anos de leitura, eu n�o sabia a hist�ria argentina. Precisei me enfronhar, entrar em outra cultura. E � uma cultura liter�ria que tem uma densidade e uma exposi��o diferente da brasileira. Mas tivemos um processo hist�rico paralelo.
Como vem sendo a recep��o ao trabalho por l�?
Na Argentina eles t�m uma resist�ncia � ci�ncia social, muito mais do que no Brasil. N�o s� � sociologia: a antropologia praticamente inexiste na Argentina. H� uma resist�ncia grande, � uma cultura muito mais liter�ria. As ci�ncias sociais venceram no Brasil e no M�xico, se tornaram a refer�ncia. Aqui a sociologia se implantou legal. E mesmo as humanidades liter�rias s�o muito sociol�gicas. Roberto Schwarz, Antonio Candido, sem a sociologia aquilo ali n�o seria da mesma maneira. Em muitos pa�ses n�o existe cientista social que saiba fazer hist�ria intelectual.
Seu trabalho sobre as rela��es de Drummond e sua gera��o com o poder gerou grande celeuma e desconforto. Voc� enfrentou resist�ncias semelhantes na Argentina de Borges?
O Borges � particularmente sens�vel. Ele � o grande mistagogo, o homem que det�m o mist�rio dessa escrita imaculada. Voc� mexer com o cara que � o centro nervoso da autoimagem argentina � complicado. Depois, existe tamb�m toda uma ortodoxia interpretativa sobre ele, na qual esse meu trabalho � lesa-majestade pura, � sacril�gio. [Esses cr�ticos dizem que] N�o tem por que se interessar pelo Borges do ponto de vista social. Porque n�o � ali que est� o interesse. Embora haja pessoas na cr�tica liter�ria argentina que remaram contra a corrente e escreveram obras importantes contra o Borges.
A bibliografia sobre Borges � que nem a sobre a igreja cat�lica no Brasil: uma maluquice. Existe uma tradi��o na cr�tica liter�ria argentina de pensar a hist�ria da cr�tica sobre Borges, tem volumes e volumes. No in�cio a resist�ncia foi maior. Eu me lembro que, nas primeiras reuni�es para a hist�ria dos intelectuais, quando eu falava a rea��o era arretada.
O que diziam?
Perguntava: por que se interessar pela hist�ria social da figura? A minha pergunta cl�ssica nas reuni�es era: voc�s falam de autores cujo pai a gente n�o sabe se nasceu, n�o nasceu, o que fazia. De quem voc�s est�o falando? Voc�s falam de livros. Na tradi��o de uma cr�tica liter�ria pouco sociol�gica como a da Argentina, os textos desfrutam de um estatuto de extraterritorialidade. Eles s�o nuvens m�gicas, est�o infundidos pela magia. Os cr�ticos falam de textos como se fossem pessoas vivas.
Ent�o, v�rias vezes eu tive esse tipo de discuss�o: Ezequiel Mart�nez Estrada, mas quem � Ezequiel Mart�nez Estrada? [autor do ensaio cl�ssico "Radiograf�a de la Pampa"]. Mas por qu�? Em que momento escreveu? Por que � que est� escrevendo isso? N�o era s� ele que estava escrevendo isso, Scalabrini Ortiz estava escrevendo a mesma coisa. Eduardo Mallea. Essas representa��es m�ticas da Argentina, essas coisas, o pa�s infestado de imigrantes, essa coisa conspurcada... Por que essa maluquice? No Brasil se escreveu "Ra�zes do Brasil" [de S�rgio Buarque de Holanda], "Casa-Grande & Senzala" [de Gilberto Freyre], de gente que j� tinha forma��o como cientista social. Ent�o eu acho que � esse tipo de rea��o. Por exemplo, a an�lise do "Fervor de Buenos Aires" [a primeira colet�nea de poesia de Borges] que eu fa�o no livro. Os argentinos n�o conhecem esse livro.
N�o est� em cat�logo?
Nos anos 40, o Borges organizou uma poesia completa dele. Aparentemente, a pessoa abre a poesia completa dos anos 40, est�o l� os livros dos anos 20. S� que ele tirou tudo, metade das poesias, as dedicat�rias, as refer�ncias. Sabem que tem um livro chamado "Fervor de Buenos Aires", mas eles n�o conhecem, n�o leram. Se voc� vai ver, o que a Companhia das Letras fez da poesia do Borges aqui foi o que o Borges autorizou. Ent�o eu acho que a resist�ncia est� por a�. No Brasil, todo mundo est� mais acostumado a isso.
Voc� diz que tocar no mito Borges � complicado, mas parece ter gosto em enfocar justamente as figuras un�nimes, como Drummond...
� a �nica maneira de fazer uma hist�ria social intelectual de fato � enfrentar essas coisas. Se eu tivesse escolhido um autor que n�o fosse o centro de todo o debate, enfraqueceria muito a argumenta��o. Eu hesitei muito em fazer, porque existem 30 mil biografias do Borges.
Voc� n�o enfrentou resist�ncias apenas no ambiente acad�mico: o tradutor brasileiro de Borges, o cr�tico Davi Arrigucci Jr., j� expressou fortes obje��es � sua abordagem. Como se deram as discuss�es de voc�s?
Tivemos brigas horrorosas. Esse neg�cio de como o Borges contribuiu para velar, nublar todo esse per�odo de juventude, o Davi acha l�cito isso. Ele acha que o autor pode fazer isso, que amadureceu, cresceu, e queria que aquele per�odo fosse esquecido. Eu discordo, n�o acho que � assim. � como se eu me fiasse, na reconstru��o e na inteligibilidade de um autor e de uma obra, no que o autor faz da obra. Voc� fica ref�m de um tipo de decis�o do autor. Mas talvez o que o incomode mais de tudo... ele � muito apaixonado...
Ele?
Ele � mais oper�stico do que eu. E quando junta o Modesto [Carone, tradutor], o [cr�tico Antonio] Arnoni [Prado], �s vezes a gente tem briga. O que mexe com o neg�cio dele � como se esse tipo de an�lise tivesse um resultado que comprometesse, ou colocasse entre aspas, ou contestasse uma interpreta��o mais liter�ria. Ele acha que eu n�o cito, n�o levo em considera��o. Eu levo em considera��o, mas n�o queria fazer uma pol�mica falsa, porque ele escreve de outro ponto de vista. Ele tem an�lises not�veis, o livro do Bandeira ["Humildade, Paix�o e Morte"] � completamente sociol�gico, na constru��o de todo o contexto da opera��o do Bandeira. Ele teve influ�ncia [no trabalho de Miceli] nesse sentido, mas n�o na interpreta��o, porque s�o paradigmas e tomadas de posi��o, pontos de partida muito diferentes.
Na leitura percebe-se que voc� gosta de um antagonismo, mas o texto � cheio de armadilhas para os seus antagonistas, pois voc� os critica, mas n�o os nomeia, como se esperasse que as carapu�as fossem servindo...
N�o � gosto por isso. Eu aprendi na minha forma��o que a gente s� deve nomear com muita economia. A gente n�o deve nomear para fazer listagens. Quando eu falo que a hist�ria liter�ria � triunfalista, podem vestir a carapu�a. Mas eu n�o imaginava que os argentinos j� estivessem prontos para ter um livro como esse. Agora tem muita gente fazendo esse tipo de trabalho l�.
Depois de 35 anos, voc� enxerga os limites o m�todo?
� claro, tudo � hist�rico e tem limites mesmo.
E quais s�o eles?
� uma objetiva��o das condi��es sociais de produ��o, mas n�o resolve, n�o d� conta de uma leitura da obra. N�o d� conta. Mas acho que a maior parte das leituras de obra hoje que na empreendem esse movimento tamb�m se empobrecem muito. Eu imagino que a contribui��o que eu dei, ou de trabalhos do tipo que eu fiz deram, foi o que se tornou imposs�vel fazer intepreta��es com textos considerados como extraterrestres ou extraterritoriais. Estou falando extraterritoriais porque fica mais bonito, mas eles tratam como extraterrestres mesmo.
Em termos comparativos, como v� as condi��es de produ��o intelectual l� e aqui hoje?
L� eles t�m menos recursos, menos gente, todos t�m dois, tr�s empregos, ganham mal, a coisa � mais acanhada do ponto de vista institucional, mas eles mobilizam muita gente, t�m uma atividade intelectual muito intensa.
Aqui tem muito dinheiro para voc� fazer o que quiser, tem mais autonomia, tem uma hierarquia na academia, tem uma elite que conseguiu condi��es excepcionais para fazer as coisas. Mas isso � tamb�m uma esp�cie de servid�o. A inser��o nesse mundo t�o protegido da academia, poder ter um emprego s� (falo de uma elite), tem um lado de servid�o e de cegueira para uma por��o de coisas. � preciso refletir sobre as novas condi��es de produ��o dessa gera��o.
E quanto � rela��o com o governo? A intelectualidade na Argentina est� basicamente alinhada ao kirchnerismo
N�o est�. Tem a Beatriz...
Ela � uma voz solit�ria.
N�o � t�o solit�ria, tem gente que pensa como ela. Mas eles est�o numa situa��o mais complicada do ponto de vista econ�mico, social. Aqui tem esse mensal�o, que � um enrosco. Eu acho que � complicado e dilacerante. Se n�o houvesse [o julgamento] seria tr�gico: como ficaria a Justi�a neste pa�s? Seria rid�culo. Mas, da forma que est� se dando, se virar uma vit�ria da direita, tamb�m n�o acho legal. O lulismo talvez esteja se tornando essa linha divis�ria entre os intelectuais.
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