Filha de Ezra Pound luta para distanciar fascistas da imagem do pai
O castelo italiano no qual o poeta Ezra Pound (1885-1972) se isolou nos anos 1950 para trabalhar sobre seu poema �pico "Os Cantos" dificilmente poderia ser mais remoto, empoleirado sobre um penhasco �ngreme, tendo como pano de fundo os picos nevados da fronteira austr�aca.
Reprodu��o |
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O poeta norte-americano Ezra Pound, em foto sem data |
Mais de meio s�culo mais tarde, a filha de 86 anos de Ezra Pound ainda desfruta o isolamento dos nobres c�modos do castelo de Brunnenburg, revestidos de pain�is de madeira e estantes de livros, onde ela l� o poema em voz alta para visitantes e reflete sobre a maneira incomum em que foi criada pelo poeta americano renegado.
Mas a paz de Mary de Rachewiltz foi abalada pelo mundo soturno da pol�tica neofascista italiana e a repercuss�o de um incidente sangrento nas ruas antigas de Floren�a, em dezembro, que deixou dois imigrantes mortos.
Indignada com a decis�o do grupo fascista ascendente CasaPound de dotar-se do nome de seu pai em homenagem ao apoio dado pelo poeta ao ditador Benito Mussolini, Mari de Rachewiltz foi � justi�a para tentar for�ar a organiza��o a abrir m�o do nome.
Ela intensificou seus esfor�os depois que um simpatizante do CasaPound matou dois ambulantes senegaleses a tiros e feriu tr�s outros, antes de cometer suic�dio.
"A not�cia me deixou chocada e envergonhada", ela disse ao "The Observer". "Os fascistas querem reivindicar Pound, mas n�o t�m nada a ver com ele. S�o um inc�modo, e tem que haver algo que eu possa fazer para impedi-los."
B�BLIA
Andando at� a escadaria espiralada de pedra do castelo, De Rachewiltz sobe at� uma sala de trabalho que proporciona vistas deslumbrantes de um c�u azul penetrante, pared�es rochosos, o vinhedo da fam�lia e, muito abaixo, o vale.
Ela pr�pria uma poeta rematada, De Rachewiltz, no castelo, se cercou de objetos que foram de Ezra Pound, incluindo esculturas e cadernos velhos nos quais, usando tintas de cores diferentes, ele redigiu trechos de "Os Cantos", a obra hist�rica que � vista como um dos poemas mais importantes do s�culo 20. De Rachewiltz a descreve como "minha b�blia".
Sua devo��o a seu carism�tico pai nunca se enfraqueceu, apesar de Pound e sua m�e, a violinista americana Olga Rudge, a terem entregado a um casal de camponeses de Aldo Adige para ser criada por eles.
Antes do nascimento dela, em 1925, Pound tinha se radicado na It�lia com sua esposa, depois de deixar seu rastro no cen�rio londrino da poesia, a caminho de virar presen�a constante na Rive Gauche parisiense, onde ajudou T.S. Eliot a editar "The Waste Land" e foi mentor de Ernest Hemingway, que tentou ensin�-lo a lutar boxe.
Em contraste marcante com tudo isso, De Rachewiltz passou sua inf�ncia criando abelhas e pastoreando ovelhas, embora essas atividades fossem interrompidas por visitas ocasionais a seu pai e a amante dele, na resid�ncia que mantinham em Veneza.
"A camponesa tirolesa ainda est� entranhada em mim", falou De Rachewiltz, que se recorda de ter destro�ado um violino que sua elegante m�e lhe dera. Seguiu-se um relacionamento tenso entre Olga Rudge e sua filha, que falava um dialeto italiano. "Acho que fui influenciada por meus pais adotivos, que provavelmente invejavam a 'dama de meias de seda' que vinha me buscar em casa", ela explicou.
Com Pound ela formou um v�nculo forte, estreitado nos momentos em que percorriam Veneza juntos, visitando livrarias ou indo de "vaporetto" (�nibus aqu�tico) nadar no Lido. Mais tarde, Pound pediria a sua filha que vertesse para o italiano o poema que j� come�ara a escrever, "Os Cantos".
"Em 1943, no auge da guerra, quando eu estava de volta em Alto Adige para garantir minha seguran�a, Pound veio de Roma para assegurar-se de que eu estava bem", ela recorda. Durante essa visita ele finalmente revelou � filha que tinha uma esposa que vivia em Rapallo, na costa liguriana.
ACOBERTAMENTO INTELECTUAL
Nessa �poca Pound j� era procurado pela justi�a dos Estados Unidos, depois de ter endossado o fascismo de Mussolini e feito uma s�rie de emiss�es radiof�nicas --repletas de declara��es de cunho antissemita-- para tentar persuadir os EUA a n�o participarem da guerra.
Preso em 1945 por for�as americanas e mantido por tr�s semanas em uma jaula, onde deu sinais de colapso mental, Pound foi acusado de trai��o. Passou os 12 anos seguintes num hospital psiqui�trico nos EUA.
Desde ent�o, De Rachewiltz vem travando uma batalha vital�cia para diferenciar Pound, o poeta, de Pound, o fascista e antissemita. � por essa raz�o que � t�o dolorosa para ela a ascens�o do grupo CasaPound, que j� conta com 5.000 integrantes.
Ela rejeita a sugest�o de que o endeusamento de Pound pela organiza��o fascista seja merecido. "Pound apenas citou o que Mussolini dizia", explica. "Esta organiza��o se esconde atr�s do nome de Pound para ter acobertamento intelectual."
"Pound cometeu erros, e precisamos recordar a parte boa que havia nele, assim como ele fez com outros. Ele se rendeu aos clich�s antissemitas que eram comuns na Europa e nos EUA naquela �poca."
Anos depois, Ezra Pound disse ao poeta americano (e judeu) Allen Ginsberg que o pior erro de sua vida foi seu "est�pido preconceito antissemita suburbano".
Libertado pelo governo dos EUA em 1958, ele retornou � It�lia, onde sua filha se casara com um egipt�logo italiano de origem russa, Boris de Rachewiltz. O casal tinha comprado o castelo de Brunnenburg, que estava em ru�nas. "A reposi��o das janelas custou mais que a pr�pria compra do castelo", recorda De Rachewiltz.
JARDIM DE INF�NCIA
Pound foi viver no castelo para continuar a trabalhar sobre "Os Cantos", e sua mulher, Dorothy, o acompanhou. "Ela ficava em seu quarto, lendo Henry James", recorda De Rachewiltz. Mas, depois de anos vivendo num hospital psiqui�trico superaquecido, Pound n�o se adaptou � vida no castelo, cheio de correntes de ar, e retornou a Rapallo, onde Olga Rudge cuidou dele at� sua morte, em 1972.
Hoje De Rachewiltz percebe que a rivalidade que mantinha com sua m�e, ambas disputando o afeto de Ezra Pound, dificultou a rela��o entre elas. "Todas as pessoas que conheciam Pound o amavam", disse ela. "Quando ele escreveu 'orgulho, ci�me e possessividade- / tr�s dores do inferno', estava escrevendo sobre todas n�s, incluindo sua esposa. Cada uma de n�s o queria para si mesma. Hoje releio as cartas de minha m�e e me dou conta de quanto ela me amava."
D�cadas mais tarde, cercada por sua fam�lia, De Rachewiltz ainda l� e escreve, fazendo pausas para almo�ar p�o e queijo com um c�lice de vinho tinto de seus pr�prios vinhedos, seguidos por uma x�cara de ch� Earl Grei �s 16h. Assistir a novelas na televis�o � um prazer ocasional.
Ela insiste que a a��o judicial contra a CasaPound n�o vai prejudicar sua rotina. "N�o quero encontr�-los", explicou. "Se Pound estivesse aqui, diria que eles precisam voltar para o jardim de inf�ncia."
Tradu��o de CLARA ALLAIN.
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