O futuro é uma ideia nova na humanidade. Nós nunca tivemos futuro. Sei. Duro para uma segunda-feira, né?
O tempo é um conceito que se declina de várias formas. Física, biológica —envelhecimento celular—, cosmológica, histórica, mitológica, estética, a duração da autopercepção subjetiva —o tempo existencial—, social, enfim, muitas formas.
Aqui me interessa apenas uma dessas formas: o tempo sociológico, aquele que nasce das interações sociais e materiais que vão submetendo o cotidiano a esse processo.
O grande sociólogo Norbert Elias escreveu um ensaio primoroso sobre esse tipo de temporalidade, “Sobre o Tempo”, editado pela Zahar.
Durante milênios, “nada” aconteceu em termos de tempo sociológico porque o tempo social era parado. Nenhuma grande mudança tirava o Homo sapiens da sua condição prioritariamente natural.
Para o tempo social acontecer, se fazem necessárias transformações relevantes nos âmbitos da técnica e da gestão da vida, da sobrevivência e da reprodução. E isso demorou muito a ocorrer em nossa
pré-história e história. Sem o fogo de Prometeu não teríamos o tempo social de fato.
O futuro de que falamos quando nos perguntamos “qual o futuro da humanidade?” é esse tipo de tempo. E ele é o que mais importa. O Sol morrerá um dia e tudo acabará.
Mas mesmo nossa experiência concreta da natureza hoje é mediada pelo tempo social. O debate sobre sustentabilidade e sofrimento do planeta é um debate sobre nossa natureza social e técnica em interação com a natureza do planeta. Aquilo que os estoicos chamavam de logos.
Nunca tivemos futuro. Caçávamos, plantávamos, nos reproduzíamos, adorávamos divindades, mas nada disso implica num futuro concreto como pensamos hoje.
Mesmo o tempo apocalíptico ou o tempo “eschaton” da teologia não é, de fato, um futuro concreto à vista.
Ele faz parte da esfera puramente mítica. Pode ter efeito psicológico, mas não é o futuro no qual pensamos quando nos perguntamos “qual o futuro da humanidade?”.
O tempo social só passa quando se impõe como cotidiano. Na modernidade, esse processo se acelerou. Nos últimos anos, mais ainda.
Isso nos causa vertigem e abre o mercado para todo tipo de picaretagem: inovação, quebra de paradigmas, disrupção, como se tudo isso ocorresse no plano de um encontro corporativo num resort.
Não. A aceleração social da vida, fruto da agressividade crescente da técnica, nos faz sangrar.
Dito de forma metafórica, o futuro é o resultado da técnica socialmente engajada, como um avião, um celular, uma vacina, um projeto de democracia.
A clássica divisão de história e pré-história, marcada pelo surgimento da escrita e da possibilidade de ler o que nossos antepassados escreviam, e, portanto, saber como viviam no sentido mais largo da expressão, anuncia o nascimento do tempo histórico —porque nos apropriamos do que já foi vivido, ou seja, do passado—, mas, isso por si só, não é suficiente para entendermos de modo mais claro o nascimento do futuro.
O futuro só nasce quando a ideia de progresso se impõe como mais significativa do que a de passado. E isso é moderno, não é bíblico ou milenarista.
Não evoluímos num ambiente em que existisse futuro à vista. Quem fazia guerra faria guerra sempre, quem dava à luz daria à luz sempre, quem caçava caçaria sempre. Nesse ambiente, não existe futuro.
O futuro é uma ideia nova na experiência do sapiens. Tão nova que não temos clareza de que ela só existe quando existe a possibilidade mesma do progresso técnico.
Ainda que esse progresso não seja o controle absoluto do nosso destino, tampouco da natureza, da contingência, nem do Sistema Solar, nosso tempo contemporâneo é devorado pela crença de que o futuro nos espera no horizonte como um dado da própria natureza das coisas.
O ser do universo é indiferente ao nosso tempo e para ele não existe o nosso futuro. O futuro da natureza das coisas não é o mesmo que o nosso futuro. O nosso é efêmero como tudo o que criamos ao longo de um tempo maior que, de certa forma, nunca passa porque nos ultrapassa.
A eternidade é indiferente ao nosso sofrimento.
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