Ela participou da resistência francesa, traduziu autores como T.S.Eliot, Scott Fitzgerald e Virginia Woolf, e foi uma prestigiada editora e crítica literária. Mas seu maior feito se deu nas chicotadas do sexo extremo.
Durante 40 anos o segredo foi mantido. Apenas em 1994, a francesa Dominique Aury disse, em entrevista à New Yorker: "Pauline Réage sou eu." Era o fim do mistério em torno do livro erótico mais marcante do século 20.
"História de O" conta as peripécias de O e seu amante, a quem ela se submete, sem restrições. Isso inclui suplícios de todo o tipo, carnais, psicológicos, metafísicos. "Minha boca, meu ventre e meus seios não me pertencem mais, torno-me criatura de um outro mundo, onde tudo mudou de sentido."
O romance, com todo seu poder de transcendência, surgiu de um desafio amoroso. Aury (ou Anne Cécile Desclos, nome verdadeiro) estava apaixonada por Jean Paulhan, editor importante da Nouvelle Revue Française e depois da editora Gallimard. Ele achava que ela seria incapaz de escrever um livro erótico. De quatro com a narrativa, acabou assinando o prefácio.
As especulações sobre a autoria foram muitas, a mais célebre delas partiu de um Camus moralista, que também achava impossível uma mulher ter escrito o romance, de resto condenado por algumas feministas.
O irônico é que a escritora, que faria aniversário nesta sexta (23), revelou ter se inspirado em sua amiga Odile de Lalain. Ora, Odile (O), era uma das amantes de…Camus.
O que nos leva à história de HH, título imaginário de uma biografia de outra escritora de livros eróticos—ou pornográficos, como ela preferia. Como sua colega francesa, Hilda Hilst arrombou a porta do desejo quando foi desafiada, também por um editor, Massao Ohno: "Quer que leiam seus livros, escreva como a Cassandra Rios!".
Rios era a autora de "Carne em Delírio", "A Santa Vaca" e tantos outros livros lúbricos. Vendia muito, mas também era implacavelmente censurada pela ditadura militar.
Hilst não se fez de rogada e escreveu "O Caderno Rosa de Lori Lamby", contando as aventuras de uma menina de oito anos que se prostitui, com o consentimento dos pais. "Quem será que inventou isso da gente ser lambida, e porque será que é tão gostoso?" Perdeu amigos e foi atacada por parte da crítica.
A psicanalista Vera Iaconelli, em coluna aqui na Folha, ressaltou o lado engraçado e escatológico do livro, e contextualizou: "a escritora compara a falência e desespero do pai de Lori, escritor ignorado pelas editoras, com a facilidade com que a menina faz dinheiro."
Hilst era obcecada pelo pai, um poeta frustrado e brilhante, que ficou louco. "Bêbados e loucos é que repensam a carne". Seu livro, saudável desacato, também é uma declaração de amor.
Ela escreveu outros relatos pornográficos e continuou não sendo muito lida, mas o que importa? A poeta, dramaturga, contista e romancista sentia pena dos que não conseguiam ter prazer com sua escrita. Nunca deixou de ser indomável.
Em lados opostos de uma suposta liberdade, HH e O partem do mesmo princípio: tirante a maldade, vale tudo nessa vida.
Nas divertidas entrevistas que concedia, Hilst fazia questão de dividir uma ou mais garrafas de vinho do Porto com os entrevistadores. Seu conselho, no poemário "Alcoólicas", era: "Beba. Estilhaça a tua própria medida."
Tempter Cocktail
- 30 ml de vinho do Porto ruby
- 30 ml de brandy de apricot (damasco)
- 7 ml de suco de limão (opcional, para quem preferir menos doce)
Passo a passo
Mexa com gelo e coe para uma taça martíni previamente gelada.
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