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Quando o hospital é em casa

Lucília Galha 03 de julho

Todos os dias, uma equipa da Unidade Local de Saúde Santa Maria em Lisboa presta cuidados hospitalares a 12 doentes no sítio onde moram – evitando o seu internamento numa enfermaria. A chamada Hospitalização Domiciliária está a crescer na capital e em todo o País.

"Então dona Josefa! Bom dia!” – cumprimenta a médica, Laura Pereira, logo à entrada.
“– Hoje é dia de Portugal” – responde, triunfante e bem-disposta a doente, a exibir o lenço da equipa das quinas na cabeça. Naquele dia, Portugal defrontava a Geórgia.
“– Como correu a noite, teve dores de cabeça?”
“– Estou a evitar ver muita televisão e a descansar mais.”

Josefa Xiri, 48 anos, ficou apreensiva quando ouviu falar do internamento em casa. Agora está feliz com a solução. Alexandre Azevedo

Enquanto a especialista avalia os parâmetros vitais da doente – mede a tensão arterial, a frequência cardíaca, a saturação do oxigénio e a temperatura (estão todos bem) – o enfermeiro Pedro Gamito prepara a medicação a aplicar. Josefa Xiri tem no pescoço, do lado direito, um cateter central. Trata-se de um dispositivo colocado numa veia por onde é administrado o antibiótico. Implica cuidados de higiene apertados: para se manipular, é preciso usar luvas esterilizadas e não se pode molhar.

A cena é típica de uma enfermaria hospitalar ao início do dia, mas o enquadramento não podia ser mais distante disso. A doente angolana, de 48 anos, está sentada no sofá da sala de sua casa. É ali que recebe diariamente os cuidados da equipa de Hospitalização Domiciliária da Unidade Local de Saúde Santa Maria, em Lisboa. Josefa está a fazer antibiótico por causa de um abcesso cerebral (uma acumulação de pus decorrente de uma infeção).

No dia 12 de maio sentiu-se mal. “Eu estava a preparar-me para ir para a escola quando ouvi um barulho. A mãe estava estendida no chão e não conseguia falar”, conta Núria, de 17 anos, a filha mais nova. Houve suspeitas de um tumor, mas acabou por se perceber que uma bactéria se tinha alojado no cérebro e provocado uma infeção. Esteve no hospital três semanas e foi durante esse período que ouviu falar do internamento em casa. “Naquele dia fiquei preocupada, perguntava-me se funcionaria, mas o meu marido achou boa ideia e como me falaram do risco de contrair uma infeção hospitalar se continuasse ali, pensei bem e aceitei”, recorda. Desde 12 de junho que um médico e um enfermeiro a visitam todos os dias de manhã – e à tarde telefonam-lhe para ver se é preciso alguma coisa. “É tudo igual com a diferença de que estou em casa, ao pé da família”, diz, satisfeita, a empregada doméstica que vive num apartamento num 3º andar, em Alvalade.

Josefa Xiri foi a primeira visita daquela manhã de quarta-feira, 26 de junho, em que a SÁBADO acompanhou o trabalho da Unidade de Hospitalização Domiciliária de Santa Maria. A equipa, criada em fevereiro de 2020, é constituída por três médicos e cinco enfermeiros especialistas – além de uma administrativa, uma assistente operacional e uma farmacêutica. Abrange 12 freguesias de Lisboa e, além de casas de particulares, também vai a instituições. “Fizemos protocolo com 40 estruturas de lares para idosos e tem estado a correr bem”, explica a enfermeira-chefe Paula Morais.

Começaram por ter apenas seis camas mas, neste momento, já são 12 – ou seja, dão assistência a uma dúzia de pessoas nas suas casas ou no sítio onde estiverem a residir. “A hospitalização domiciliária é uma opção de internamento que cria um conforto muito grande para o doente, permite que ele não se desadapte ou desinquiete com a permanência hospitalar que é, obviamente, um ambiente extremamente agressivo”, traduz a médica coordenadora da equipa, Teresa Rodrigues. A tendência de crescimento é generalizada. Em 2023, o número de doentes internados no domicílio nas 36 unidades existentes no País bateu recordes (ultrapassou os 10 mil) – e cresceu 12,3% face ao ano anterior. Dados divulgados recentemente pelo Ministério da Saúde indicam mesmo que a capacidade instalada em termos de camas já é “equivalente a um hospital de média dimensão” e espera-se que estes números continuem a subir.


Dez quilos às costas

Situada no espaço onde antes havia uma agência bancária – em frente ao Centro de Controlo e Segurança e ao call center, com uma saída direta para a rua (um requisito necessário) –, a equipa reúne todos os dias de manhã, pelas 8h. Entre as 8h e as 8h30 fazem uma primeira passagem de turno, ou seja, falam sobre todos os doentes e sobre o que cada um precisa de fazer. No meio da primeira sala, quando se entra, há uma mesa oval, do lado esquerdo, dois quadros brancos com os nomes dos doentes, os planos terapêuticos, morada, telefone e observações e, à direita, uma fila de computadores e mais um quadro com um mapa de Lisboa colorido onde estão assinaladas as zonas das residências.

Quem decide as rotas e distribui os internados pela equipa é a enfermeira-chefe, Paula Morais. O percurso é decidido em função do “primeiro doente em que precisamos mesmo de estar”. Tem a ver sobretudo com as horas da medicação, esclarece.

Para o terreno saem sempre duas duplas constituídas por médico e enfermeiro – que são guiadas por um motorista. Como naquele dia a lotação estava a 100% (aplica-se a mesma linguagem que no hospital), a cada dupla coube seis doentes. A equipa que a SÁBADO acompanhou começou em Alvalade (na casa de Josefa Xiri), depois seguiu para a instituição Inválidos do Comércio, no Lumiar, e terminou na Casa Pia, em Benfica.

Depois da reunião, os profissionais de saúde preparam o material a levar numa outra sala de trabalho, onde há um frigorífico – para guardar os fármacos que têm de ser refrigerados. A lista de coisas a transportar é extensa e as mochilas de cada enfermeiro chegam a pesar 10 kg. Têm entre pensos, seringas, agulhas, compressas, termómetro, medidor de glicemia e de tensão arterial, oxímetro, desinfetante, tubos para colheita de sangue, máscaras e um kit SOS (com medicamentos para emergências respiratórias ou cardíacas). Além disso, também há a medicação de que cada doente precisa – só para Josefa foram 24 ampolas de penicilina que tiveram de ser diluídas num saco de soro antes de saírem. O procedimento demorou 10 minutos.

“Pedro, esta mochila posso fechar?” pergunta Paula Morais. “Sim, chefe, estou só terminar a nota de alta [uma das doentes recebeu alta naquela manhã]”, responde o enfermeiro. Às 9h37, a médica Laura Pereira e o enfermeiro Pedro Gamito saem do edifício em direção ao carro. Vão devidamente fardados (calças e polo com símbolo da hospitalização domiciliária); a especialista ainda traz ao pescoço o estetoscópio. Naquele dia, a motorista é a tripulante de ambulâncias Gisele Luís – o colega habitual atrasou-se. Há um GPS em cada carro, mas os profissionais de saúde também fazem de copiloto: “Aqui em frente e à esquerda. Agora sempre em frente”, diz Pedro Gamito, sentado ao lado da condutora.

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A equipa faz uma primeira passagem de turno entre as 8h e as 8h30
Foto: Alexandre Azevedo
Cada enfermeiro leva uma mochila com todo o material para prestar os cuidados aos doentes
Foto: Alexandre Azevedo
Há uma sala destinada à preparação da medicação onde existe um frigorífico e um lavatório
Foto: Alexandre Azevedo
No percurso entre as visitas, o enfermeiro Pedro Gamito aproveita para fazer o registo das horas de entrada e saída da casa dos doentes
Foto: Alexandre Azevedo
Josefa Xiri tem uma máquina que lhe permite receber o antibiótico de que precisa em casa
Foto: Alexandre Azevedo
A médica Laura Pereira e o enfermeiro Pedro Gamito com a doente de 90 anos que teve alta naquela manhã
Foto: Alexandre Azevedo
O lar Inválidos do Comércio é das instituições com mais doentes a receber este acompanhamento hospitalar
Foto: Alexandre Azevedo
As deslocações têm de ser curtas – se houver uma urgência têm de chegar num tempo máximo de 30 minutos. Até à casa de Josefa, a equipa demorou apenas 6 minutos, esteve com ela 27 minutos e depois seguiu caminho. Para o lar Inválidos do Comércio, o percurso foi de 13 minutos. “Temos aqui três doentes internados, é dos lares em que temos sempre mais”, diz a médica Laura Pereira. Já acompanharam 20 doentes da instituição.

No quarto 12 estão dois dos utentes que a equipa foi visitar naquela manhã. José Soares, 85 anos, antigo comerciante, está a ser seguido desde 11 de junho. “Teve uma infeção respiratória e tem uma insuficiência cardíaca em fase avançada. Está connosco por causa da parte renal que piorou com antibióticos”, explica a especialista em Medicina Interna. Começa por auscultá-lo. “Consegue subir para lhe auscultar as costas? Agarre-se a mim. Respire pela boca, querido”, vai dando instruções num tom assertivo, mas atencioso. “Tenho noites horríveis”, queixa-se o doente. Apesar dos pesadelos noturnos, tem vindo a melhorar – já não precisa de oxigénio. Talvez tenha alta em breve.

Quem pode ficar em casa

Os cuidados recebidos em casa são equivalentes aos do hospital. “A equipa faz o exame objetivo, avalia os parâmetros vitais, colhem-se análises em casa e trazem-se os sangues para o laboratório, vemos os resultados, fazemos ajuste terapêutico e se forem precisos exames de imagiologia pedimos transporte, os doentes vão até ao hospital. Nada é custeado por eles”, detalha a médica. A única coisa diferente em casa é a higiene e a alimentação – ali, são os próprios os responsáveis. Há uma visita diária de manhã e, se for necessário, uma segunda visita à tarde. Contudo, mesmo que os doentes só sejam vistos uma vez, há um enfermeiro que telefona da parte da tarde a todos.

Também há sempre um médico de prevenção, 24 horas por dia, fins de semana e feriados. “Vamos a casa do doente se ele necessitar, a qualquer hora do dia ou da noite”, explica a coordenadora Teresa Rodrigues. Outra particularidade: em vez da campainha (que existe na cabeceira de cada doente no hospital), em casa há um número de telefone de urgência sempre disponível – que é atendido por um enfermeiro da equipa.

Nem todos os doentes podem ficar internados em casa. “Têm de ter alguma estabilidade para não andar cá e lá. Não levamos doentes para casa para no dia seguinte voltarem ao hospital. Ou se tiverem exames para fazer ou não houver um diagnóstico estabelecido”, detalha a médica. Também é importante haver um cuidador em permanência, sobretudo nos idosos e dependentes. “Ter um doente em casa é uma coisa complicada, as pessoas assustam-se muito. E nós vamos cuidando dessa passagem de informação para que tudo corra bem”, explica. Mesmo assim, há famílias que não aceitam esta possibilidade. “Curiosamente, nos estratos sociais elevados aceitam menos do que nos estratos mais baixos. As famílias mais pobres são mais gregárias, vivem mais uns com os outros”, diz.

Apesar de os cuidados serem os mesmos, a postura dos profissionais de saúde é necessariamente diferente. “Ir a casa requer maior ambientação, nós é que temos de nos adaptar a eles”, diz o enfermeiro Pedro Gamito. O que implica, por exemplo, respeitar as regras daquela pessoa e daquela família. “Se nos pedem para pôr proteções nos sapatos ou para não deixar a mochila em cima do sofá. Temos de saber ler, é a inteligência social a funcionar”, diz. O trabalho também acaba por ser mais personalizado. Durante aquele tempo (a média é entre 40 minutos a 1h em casa de cada utente), a atenção é dada em exclusivo àquela pessoa. “Numa enfermaria é sempre a dividir com alguém”, diz Teresa Rodrigues.

A equipa de hospitalização domiciliária à porta das instalações onde fica o serviço no Hospital de Santa Maria. É constituída por três médicos e quatro enfermeiros. As duplas de médico e enfermeiro que saem para o terreno são sempre guiadas por um motorista. Alexandre Azevedo
Deste entrar na intimidade do lar, é inevitável que se crie uma certa familiaridade entre a equipa e os doentes. “Quando têm alta, e se precisam de vir ao hospital, passam sempre por aqui, deixam uns bolinhos ou vêm só para falarmos”, conta. Mas também há situações complicadas de gerir, mesmo para os profissionais de saúde. “Tivemos há pouco tempo um doente oncológico que esteve connosco perto de dois meses, o senhor Carlos, e quando chegou à fase final custou-nos imenso. Nós íamos lá a casa, estávamos com ele, com a mulher, com os cãezinhos”, recorda, emocionada, a médica Laura Pereira.

Crescer sem meios

Pelas 13h27, a dupla que a SÁBADO acompanhou naquela manhã regressa ao hospital. Quando as equipas chegam, é preciso retirar o material e entregar o sangue (se tiverem sido recolhidas análises) e também o lixo. Às 14h30, há uma nova passagem de turno para perceber quais são os doentes que necessitam de uma segunda visita à tarde. Já há cinco pessoas em espera para receber este acompanhamento em casa – são habitualmente referenciados ou pelas urgências ou pelos outros serviços hospitalares.

Está previsto o aumento do internamento domiciliário de Santa Maria. “O nosso atual presidente do conselho de administração gostaria muito de ter 30 camas. Nós também, se tivermos enfermeiros, se tivermos médicos, se tivermos carros, se tivermos um sítio onde trabalhar melhor que este. Agora, com quatro enfermeiros é impossível”, diz Teresa Rodrigues. Nem a coordenadora da equipa, nem a enfermeira-chefe saem para o terreno, cabe-lhes a gestão da equipa e as admissões e altas dos doentes. Quanto a meios, a equipa tem apenas um carro, um Renault Clio – que foi doado por uma empresa da indústria dos oxigénios. “O segundo é a partilhar com a distribuição de medicamentos”, conta a especialista, mas a principal carência são mesmo os recursos humanos. “É impossível prestar cuidados de saúde adequados sem eles”, lamenta.

A manhã termina com a organização do dia seguinte. Uma das doentes internadas no lar Inválidos do Comércio, com 90 anos, recebeu alta e deu lugar a outra senhora de São Domingos de Benfica. Quando é admitido um novo doente, um dos enfermeiros da equipa faz uma primeira visita a casa para apresentar o serviço e explicar como funcionam as coisas. Na base, a enfermeira chefe Paula Morais apaga do quadro a anterior informação da cama 7 – a cada doente é atribuído um número de cama, tal como se estivesse no hospital – e começa a escrever os dados daquela nova admissão. O próximo turno já será diferente.

"Então dona Josefa! Bom dia!” – cumprimenta a médica, Laura Pereira, logo à entrada.
“– Hoje é dia de Portugal” – responde, triunfante e bem-disposta a doente, a exibir o lenço da equipa das quinas na cabeça. Naquele dia, Portugal defrontava a Geórgia.
“– Como correu a noite, teve dores de cabeça?”
“– Estou a evitar ver muita televisão e a descansar mais.”

Enquanto a especialista avalia os parâmetros vitais da doente – mede a tensão arterial, a frequência cardíaca, a saturação do oxigénio e a temperatura (estão todos bem) – o enfermeiro Pedro Gamito prepara a medicação a aplicar. Josefa Xiri tem no pescoço, do lado direito, um cateter central. Trata-se de um dispositivo colocado numa veia por onde é administrado o antibiótico. Implica cuidados de higiene apertados: para se manipular, é preciso usar luvas esterilizadas e não se pode molhar.

A cena é típica de uma enfermaria hospitalar ao início do dia, mas o enquadramento não podia ser mais distante disso. A doente angolana, de 48 anos, está sentada no sofá da sala de sua casa. É ali que recebe diariamente os cuidados da equipa de Hospitalização Domiciliária da Unidade Local de Saúde Santa Maria, em Lisboa. Josefa está a fazer antibiótico por causa de um abcesso cerebral (uma acumulação de pus decorrente de uma infeção).

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