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Histórias de Amor Moderno: “Disse-me que me queria e que pagava bem”

“Em Caracas era assim que me vestia, com vestidos curtos e justos, e saias também curtas, e tops e camisas. Eu venho do calor, por Deus!” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB
06 de julho de 2024 Maria Olívia Sebastião

O meu vizinho Aurélio é muito simpático, muito atencioso, mas também um pouco atiradiço. Há uns tempos, fez, como faz tantas vezes, a gentileza de me acompanhar até à porta de casa e eu aceitei, pois claro. Prefiro ter a companhia dele até casa àquela hora da noite, sinto-me mais segura, com certeza, todavia não há mais nada para além disso, considero apenas a sua amizade e a sua atenção. O Aurélio é muito mais velho do que eu, tem quase 60 anos, e eu ainda agora fiz 28.

Chegámos à porta e ele disse-me "Gladys, minha linda Gladys, deixa-me entrar, só desta vez". Diz-me que gosta de mim, e eu agradeço - que mulher não gosta que gostem dela? -, mas temos de impor os limites. E então, na minha condição, esses limites têm sempre de ser muito claros. As regras devem ser rígidas, não podes fazer cedências. "Vá lá, Gladys. Não te tomo mais do que um copo de água", insistia o Aurélio, e eu, o mais delicadamente que consegui, fui recusando. "É muito tarde, Aurélio, vai ter de continuar o seu caminho para casa, lo siento", mas ele insistia e insistia, "que mal tem, Gladys, que mal tem se as pessoas acharem que somos mais do que amigos?", perguntava. E também respondia, "tu precisas de um homem, Gladys, tu, tão bonita, tão fresca, tão morena, tu não podes andar por aí sozinha na vida, tu mereces um bom companheiro".

Eu não preciso de companheiros. Não preciso nem quero! Já tive a minha dose. E, se peguei na mala com quatro mudas de roupa e deixei para trás, sem pensar, a Caracas do meu coração, foi porque a companhia que tive não me deixou saudades nem vontade de repetir. "Tenha juízo, senhor Aurélio", disse-lhe eu, e ri-me. "Já viu, que seria, andarmos pelas ruas desta vila, de braço dado? Ia parecer que andava a passear a sua filha?" Dei-lhe um beijo ternurento na face. E ele sorriu, coitadito, ficou envergonhado. É muito bom homem, o Aurélio. E, se eu precisasse mesmo de um homem, tenho a certeza de que seria um bom partido. Embora muito mais velho, não está mal conservado. Não é bonito, mas também não é feio. É inteligente e culto, pelo menos comparando com o resto dos homens desta terra, que só sabem de caça e de colheitas, e que começam logo de manhã a beber cervejas nos cafés.

Cheguei a este sítio do interior do Alentejo faz em setembro dois anos. Vim para Portugal assim que as restrições às viagens abrandaram, e eu, que tinha andado a juntar o quanto podia, peguei nas poupanças e comprei a viagem. Rapidamente percebi que em Lisboa não se pode viver, nem em nenhuma grande cidade, porque a vida é muito cara para quem chega de fora e é pobre. Soube, no Consulado, da comunidade venezuelana que existe nesta zona do Alentejo. Fiz contactos, consegui casa e emprego, mudei-me para cá. E cá estou. Não é um paraíso, muito longe disso, mas pelo menos tenho paz e uma vida digna.

O que mais me custou quando cá cheguei foi a maneira como as pessoas me olhavam. "Mais uma venezuelana", conseguia ler-lhes no olhar. E depois as minhas roupas também não pareciam agradar, especialmente às mulheres da vila. Mas que querem elas? Tenho pouca roupa, trouxe o que podia. E em Caracas era assim que me vestia, com vestidos curtos e justos, e saias também curtas, e tops e camisas. Eu venho do calor, por Deus!

Na vila, há um café-bar onde os venezuelanos se juntam, porque trabalham lá duas raparigas do meu país. Eu trabalho no salão de estética, foi o contacto que me deram, e também lá há raparigas venezuelanas a trabalhar. Juntei-me a elas. Como é óbvio, saímos muitas vezes e vamos até ao Montinho, que é como se chama esse café-bar, onde podemos tomar cervejas frescas e provar vinhos portugueses, que são muito melhores do que aqueles que eu bebia na Venezuela.

As noites no Montinho são sempre animadas. Entre os venezuelanos e os jovens da vila, o ambiente é normalmente muito alegre e agradável, com música festiva. É um bom lugar, onde nos sentimos bem. Só tem um senão: quando chegam os homens em busca de mulheres, o ambiente fica feio. Uma vez, logo ao princípio de estar cá, fui abordada, e não foi com delicadeza. Um homem queria levar-me com ele, e eu disse-lhe "mas estás louco, que fazes?" Disse-me que me queria e que pagava bem. E eu fiquei a olhar para ele. "Por quem me tomas? Pensas que sou uma prostituta?" As minhas colegas aproximaram-se quando me viram assim enervada. Algumas delas passaram por situações idênticas, em que homens as abordaram e ofereciam dinheiro, pois julgavam que todas éramos prostitutas estrangeiras.

"Eu não disse que eras", disse esse homem, muito atrapalhado. "Só disse que tenho dinheiro para ti, se precisares." Chamei-lhe porco e afastei-me. Ele veio atrás de mim. E então apareceu o Aurélio. Chamou-me para perto dele e perguntou ao outro homem o que se passava, "há algum problema com a minha amiga Gladys?" E o outro ficou envergonhado e foi-se embora. "O que é que queres beber?", perguntou-me o Aurélio. Eu disse que nada, que só queria ir para casa. "Eu acompanho-te." Foi a primeira vez que o fez.

Desde esse dia, o Aurélio acompanha-me muitas vezes a casa. Quase sempre que nos cruzamos no bar, ele espera por mim, "eu acompanho-te", diz-me sempre, "fica em caminho, Gladys, eu moro mesmo ali ao lado" - ele mora três ruas mais acima, que eu sei, mas agradeço na mesma, porque gosto que ele me acompanhe. E sei que talvez não o devesse fazer, porque é possível que ele goste mais de mim do que devia. Só que eu gosto da companhia dele. Faz-me sentir segura. Às vezes, quando bebe um pouco demais, torna-se mais intenso e mostra que me deseja. É então que sou obrigada a recusá-lo, e ele acaba sempre por me obedecer e seguir o seu caminho. Tenho pena de não ser apaixonada por ele. Na verdade, talvez seja o homem que me fez sentir melhor em toda a vida.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
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