• em depoimento a Bruno Costa
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As raízes e o Brasil (Foto: Isabel Garcia)

As raízes e o Brasil (Foto: Isabel Garcia)

Meu nome em português é Sandra Benites. Em guarani, Ara Rete. Sou do Mato Grosso do Sul, da etnia Guarani Nhandewa, um povo que existe não só em dez estados no Brasil, mas também no Paraguai, na Argentina e na Bolívia. Dentro do povo Guarani, existem os núcleos, como o Nhandewa, ao qual pertenço. Sou mãe de quatro filhos, bilíngue. Não falo inglês por opção. Hoje, 274 línguas indígenas são faladas no Brasil, por 305 etnias.

Nossa cultura foi apagada, e valorizá-la, em vez de exaltar o estrangeiro, é uma forma de resistência. Alguns desses grupos étnicos são aldeados, outros moram nas cidades que se levantaram em cima das aldeias. Esses espaços não são identificados como indígenas. A grande maioria dos parentes, como os chamamos, se misturou.

Tenho muito orgulho de ser uma mulher guarani indígena, porque somos duas identidades invisibilizadas – a de gênero e a etnia. Mas hoje, por meio de várias lutas e resistências, estamos encontrando voz de forma acadêmica, artística ou militante. Minha primeira formação foi de professora, através da Licenciatura Indígena Intercultural do Sul da Mata Atlântica, pela Universidade Federal de Santa Catarina, em 2000. Fui morar no Espírito Santo, em Aracruz, onde trabalhei, por oito anos, numa comunidade Guarani, dando aulas.

Por volta de 2015, depois de terminada a licenciatura, e radicada no Rio de Janeiro, conheci um grupo de mulheres antropólogas que me levaram a questionar: como seria uma mulher indígena estudando antropologia, pesquisando sobre o seu próprio povo? Assim, a academia me provocou a olhar de fora para dentro e comecei a me viciar em pesquisa. Fui fazer mestrado na UFRJ, a fim de rebater essa visão do ocidental sobre nós. Não foi fácil, mas fui construindo a partir desses espaços acadêmicos as bases para a minha luta.

Em 2016, um professor me chamou para fazer parte da cocuradoria da exposição Dja Guata Porã, no Museu de Arte do Rio (MAR), inaugurada em 2017 e que ficou aberta ao público até 2018, e onde pude visibilizar não só os indígenas aldeados, mas o indígena do contexto urbano. Por volta de 2017, fui convidada a dar um seminário de história indígena no Museu de Arte de São Paulo (Masp). Acho que gostaram, porque me chamaram de novo pela segunda e terceira vez. No fim de 2019, recebi uma ligação do próprio diretor do Masp (Adriano Pedrosa), me convidando para fazer a curadoria de uma exposição sobre a história indígena do Brasil.

Não respondi imediatamente, fiquei pensando por uns 15 dias, conversei com artistas e amigos indígenas e não indígenas, para saber o que eles pensavam sobre isso. Para mim, ficou claro que estou ali não para mudar, mas para somar. Fui na intuição da minha luta. Aceitei porque todo o território onde a arte brasileira foi construída era indígena. Durante 2020, a ideia era fazer a pesquisa para a exposição, que aconteceria este ano, mas, como veio a pandemia, foi adiada para 2023.

Agora estou no doutorado em antropologia social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), continuo trabalhando no Masp (desde 2019, passei a ocupar o cargo de curadora-adjunta do museu, tornando-me a primeira curadora indígena contratada por uma instituição de arte no Brasil), discutindo com os curadores por que isso é fundamental – a aldeia foi coberta pelos concretos e é preciso trazer para ela de novo essa visibilização.

Acredito, enquanto pesquisadora, indígena, mulher e guarani, que o pensamento não hegemônico nos ajuda a pensar num mundo diferente. Temos que discutir os aspectos das nossas histórias que não são contadas, a sabedoria, a forma de contar e lidar com o mundo. Isso não está no livro, mas os indígenas estão falando disso há muito tempo. Temos essa criatividade, essa memória ancestral que a gente carrega dentro do nosso corpo, que muitas vezes, por não entendimento, é ignorada e silenciada.

A gente precisa falar sobre esse processo da violência, do silenciamento, desse aspecto da história brasileira. É importante falar. A gente precisa, enquanto população negra, enquanto população indígena, retomar e ser quem vai contar a história, a partir desse nosso corpo silenciado, violentado e negado. O resistir para existir é exatamente o que impulsiona nossa sobrevivência até hoje.