• Alex Peters
Atualizado em
Sophie Mayanne (Foto: Jamie Spence (Condé Nast))

Sophie Mayanne (Foto: Jamie Spence (Condé Nast))

O verão pode ser difícil. O clima quente traz roupas mais sumárias, revelando parte da pele
que durante o restante do ano pode ser enterrada sob camadas de roupas. Para quem tem
cicatrizes, o verão pode significar ter de tomar uma decisão entre ficar superaquecida usando roupas inapropriadas para a estação e expor partes do corpo que muitas vezes preferimos esconder.

Todos temos cicatrizes. Cicatrizes que recebemos por acidente, cicatrizes que trazemos a nós mesmas. Cicatrizes que salvam nossa vida, cicatrizes que dão vida. Cesarianas, cirurgias de mama, mastectomias, apendicite, machucados – elas contam nossa história, uma representação física do que passamos e da vida que vivemos. Mas para muitas pessoas, elas são uma fonte de incômodo, ansiedade e até vergonha. Um relatório da British Skin Foundation revelou que 72% das pessoas com cicatrizes visíveis ou doenças de pele dizem que elas afetam sua autoconfiança. De acordo com um estudo publicado no ano passado, a maior parte dos pacientes de mastectomia nos EUA se sentem constrangidos em relação às cicatrizes, enquanto cicatrizes na face, provou-se, trazem impacto no funcionamento psicossocial, causando ansiedade e constrangimento.

O que não é nenhuma surpresa. Cicatrizes são muitas vezes estigmatizadas em nossa sociedade, que valoriza uma beleza sem defeitos. Ainda que, historicamente, muitas culturas considerassem cicatrizes desejáveis, em nossa sociedade ocidental moderna essas marcas permanentes na pele não se encaixam nos ideais sem manchas vendidos a nós pela mídia e pela indústria da beleza, que não são gentis quando o assunto é ‘imperfeição’.

Pense em quantos artigos, campanhas, produtos você já viu prometendo soluções para reduzir e suavizar cicatrizes. Maquiagem, cremes, lasers, microagulhamento, remédios caseiros. Eu mesma já testei vários: Bio-Oil, gel de vitamina E, patches de silicone, tea tree oil. Pense em como a mídia já usou cicatrizes como significado de vilania: cicatriz no Rei Leão (1994), Coringa (2019), Tony Montana em Scarface (1983), um desfile interminável de vilões de James Bond. Tudo causa impacto.  Estudos mostraram que pessoas com anomalias faciais têm maior probabilidade de serem julgadas como sendo indignas de confiança, desonestas, emocionalmente instáveis e não inteligentes.

Medo de julgamento

“Mesmo nesta época de autoamor e positividade corporal, as pessoas ainda sentem vergonha ou insegurança sobre qualquer coisa fora das atuais – e bastante rasas – narrativas de beleza”, diz Clare Varga, chefe de beleza da empresa de previsão de tendências WGSN. “Na era do Facetune, da cultura do filtro e ‘Instafaces’ com identikit, a perfeição é apresentada como padrão, fazendo com que qualquer pessoa que não estiver em conformidade se sinta por fora ou inferior”.

Essa sensação é ainda mais amplificada em relação a cicatrizes que causamos a nós mesmos, que foram ligadas a uma imagem corporal significativamente mais negativa do que pessoas com cicatrizes cirúrgicas ou acidentais. “Sentia nojo cada vez que olhava minhas cicatrizes”, conta Ama, instrutora infantil de equitação que mora perto de San Francisco. “Quando você cobre o corpo por quase três anos, evita vê-las sempre que possível, para de comprar roupas e se sente incapaz de vestir coisas que gosta ou quer porque elas iriam deixar seus braços ou coxas expostos, toda e qualquer autoconfiança é drenada totalmente. Eu não estava pronta para mostrar minhas cicatrizes e ficava preocupada com o julgamento de outras pessoas: ‘Será que ainda vão gostar de mim quando descobrirem que tenho essas cicatrizes extremas e impossíveis de esconder?’”

Medo de julgamento e rejeição semelhante é perpetuado e mantido pela maneira como cicatrizes auto infligidas são tratadas e escondidas pela mídia. No ano passado, o Instagram começou a censurar imagens contendo cicatrizes auto infligidas curadas, uma decisão que levou a amplo debate sob a hashtag #YouCantCensorMySkin. “Nenhuma dessas fotos está causando dano. Na verdade, elas mostram que há vida após você machucar a si mesma, há recuperação, esperança. Tirando do ar essas imagens, você está dizendo a elas e a outras pessoas que seu corpo nunca será aceito”, escreveu Hannah Daisy, ilustradora e defensora da saúde mental, em uma carta aberta ao Instagram.

Mas felizmente a conversa em torno das cicatrizes está começando a mudar à medida que o movimento maior da positividade corporal acontecendo na indústria da beleza traz às pessoas espaço para aceitar e celebrar todas as partes do corpo. “As pessoas estão rejeitando a perfeição filtrada e o photoshop, buscando a realidade e a honestidade em seu lugar”, diz Varga. “Os chamados ‘defeitos da beleza’, como cicatrizes, são agora vistos como interessantes e individuais e reconhecidos como parte da história única de cada pessoa”.

Trazendo confiança em relação às cicatrizes

Marcas como a Fenty abriram as portas à retratação da beleza fora dos padrões prescritos
tradicionais, com as passarelas e campanhas apresentando modelos com necessidades especiais, com curvas, com estrias e cicatrizes. A modelo Aweng Chuol, que sempre aparece
na Fenty, já revelou seu amor por suas cicatrizes faciais (que ganhou ao subir em árvores e perseguir galinhas durante a infância), cicatrizes que estavam extremamente visíveis em uma bastante celebrada campanha sem retoques feita pela Fenty.

Enquanto isso, a campanha #LoveYourMarks, da Bio-Oil, incentivou mulheres a aceitarem
suas cicatrizes e estrias, enquanto a campanha rosa da GHD apoiando instituições de caridade que trabalham com o câncer de mama apresentou sobreviventes exibindo suas cicatrizes de mastectomia e tatuagens. As duradouras campanhas da Beleza Real da Dove ao longo dos anos vêm celebrando muitas inseguranças corporais, desde rugas e pneus a cicatrizes.

“Isso vem dando às mulheres confiança em relação às suas cicatrizes”, conta Annuschka, que vive em Hamburgo e tem uma cicatriz como resultado de sua cesariana, feita há 23 anos. Para Annuschka, sua cicatriz sempre trouxe sensação de insegurança, começando já no hospital após dar à luz quando olhou para baixo e viu a pele de seu ventre grampeada “como Frankenstein. Você não se sente tão livre quanto antes”, ela conta, dizendo que pensava duas vezes antes de ficar pelada, principalmente na frente de novos parceiros. “Nunca volta a ser como era antes”.

Recentemente, no entanto, ela começou a ver a cicatriz sob uma luz totalmente nova depois que sua filha comentou como ela era bonita, já que havia testemunhado o nascimento de um bebê. “Nunca havia pensado nela como sendo uma cicatriz bonita, e sim uma cicatriz escondida”, conta. “Ouvir aquilo mudou de verdade minha perspectiva”.

Falar abertamente sobre cicatrizes pode ajudar pessoas a se aceitarem, e isso se aplica a celebridades que, comemorando suas próprias cicatrizes, podem por sua vez levar confiança a outras pessoas. Do vestido de noiva com as costas nuas da Princesa Eugenie, que exibia a cicatriz de sua cirurgia de escoliose, a Lena Dunham sem medo de mostrar as cicatrizes que ganhou como parte de sua luta contra a endometriose. O ator Lachlan Watson faz parte de um grupo crescente de pessoas não-binárias e homens trans que exibem orgulhosamente as cicatrizes de suas cirurgias no tórax online para quem quiser ver. “Sempre senti que as cicatrizes contam uma história”, conta à Vogue. “Sempre lidei com cicatrizes em muitos aspectos de minha vida…. E todas têm um significado bem diferente para mim, mas todas
representam crescimento. O fator em comum que todas compartilham é que são algo que aconteceu e eu cicatrizei”.

A beleza está em todo lugar

Trazer visibilidade às histórias de dor, luta e conquista por trás de cada cicatriz é a ideia por trás de séries fotográficas como o projeto  Defiance , de Ami Barwell, que se concentra especificamente em cicatrizes do câncer, e o  Behind the Scars , de Sophie Mayanne, pelo qual ela passou os últimos quatro anos documentando cicatrizes com o propósito de quebrar o tabu. “Cicatrizes são uma parte importante da experiência de cada indivíduo”, diz, “uma manifestação física de suas experiências emocionais e muitas vezes apenas uma pequena parte de uma história maior. Quero que as pessoas saibam que você pode ser autoconfiante depois que seu corpo muda de forma significativa — e que há beleza em todo lugar”.

Para muitos, no entanto, ainda pode ser difícil encontrar beleza em suas cicatrizes expostas. Essas pessoas estão tomando a questão para si em vez de enxergar suas cicatrizes como lembrete constante da dor passada. Elas pensam nelas mesmas como uma tela a ser transformada em arte por meio de tatuagens, sejam tatuagens de mastectomia, que, descobriu-se, promovem a cura psicológica para sobreviventes do câncer de mama, ou tatuagens em cirurgias no torso. 

O estúdio de tatuagem Crown and Feather, na Filadélfia, criou o Project Tsukurou no ano passado, com a missão de cobrir cicatrizes com lindas obras de arte. Criado como uma forma de contribuir com a comunidade, as obras são feitas de forma gratuita e o projeto já fez mais de 6 mil aplicações. O nome do projeto foi inspirado na kintsukuroi, a arte japonesa de consertar cerâmica quebrada com ouro. “A ideia é então que a história da cerâmica, tendo sido quebrada e consertada de forma bonita, torna a peça mais significativa e com maior impacto do que quando era nova”, conta Nick ‘the Tailor’ Solomon, que fundou o projeto com os parceiros Andy Robinson e Dylan Carr. “Cicatrizes sempre estarão presentes, mas mudando a apresentação, elas podem recompor a perspectiva de forma positiva”. Cicatrizes nos contam muito sobre a história de uma pessoa. São um símbolo de cura e superação; de passar pela dor e chegar ao outro lado. Precisamos começar a enxergar cicatrizes não como um defeito, mas como prova de nossa força e capacidade de resiliência, um lembrete físico que, apesar de termos passado por dificuldade, conseguimos nos recompor.

Para Ama, a jornada vem sendo longa, mas ela finalmente está chegando em um lugar de tentativa de aceitação de suas cicatrizes. “Levou anos, e eu tive de fazer o trabalho. Tive de passar tempo comigo mesma e com meu corpo, ficar confortável mesmo sozinha para usar apenas sutiã”, conta. “Tive de aceitar e seguir em frente. Esconder-se se torna exaustivo”. Ansiosa pelo futuro, ela está otimista de que a representação de cicatrizes irá continuar melhorando e irá trazer alguma esperança a quem está sofrendo agora. “Estamos contando a elas que não estão sozinhas, que há esperança e que há vida além de automutilação”, diz. “E ainda mais importante, que há um futuro com cicatrizes”.