• Rosa Moraes (@rosamoraes5)
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Gastronomia (Foto: Reprodução)

(Foto: Reprodução)

De 2,5 milhões a dez mil anos atrás, a humanidade ainda não havia desenvolvido as práticas da agricultura e da pecuária. A forma que nossos antepassados mais longínquos tinham de se alimentar passava por uma relação estreita com o que a natureza oferece de forma espontânea. Éramos caçadores. E, acima de tudo, éramos coletores.

De tudo que a gente comia, 80% vinha da coleta de ervas, frutos selvagens, raízes, cogumelos, folhas e o que estivesse à disposição no entorno, de acordo com a época do ano. O resto vinha da caça e da pesca. Esse foi o método de subsistência que ocupou 90% da história do Homo Sapiens - afinal, estamos falando de mais de 2 milhões de anos.

Roteiro Chile: gastronomia ancestral de uma geografia de exceção (Foto: Reprodução)

Prato do restaurante Boragó (Foto: Claudio Vera/Boragó / Divulgação)

Um pouco mais perto no tempo, vamos cravar nosso alfinete no mapa do Chile, onde o povo Mapuche, que vive por lá há pelo menos 13 mil anos, formava uma sociedade caçadora e coletora de quase 1 milhão de pessoas. Esse povo nativo, cujas crenças politeístas eram intimamente ligadas ao respeito pela terra (Mapuche significa, em tradução literal, “gente da terra”), usava apenas aquilo a que tinha acesso para desenvolver um conhecimento vastíssimo baseado em comida, métodos de cocção e até preservação dos alimentos. Quem me contou isso foi o talentoso chef Rodolfo Guzmán, que mergulha de corpo e alma na sabedoria Mapuche para comandar seu premiado restaurante Boragó, em Santiago.

Antes de ser chef, Rodolfo é um coletor, na filosofia e na prática. Após se aperfeiçoar tecnicamente em restaurantes da Europa e do próprio Chile, ele decidiu se fixar em Santiago para tirar do papel um projeto pessoalíssimo. O chef acredita que para avançar, é necessário olhar para trás. E esse aparente paradoxo é a única forma de começar a explicar o lindo trabalho que ele faz com a comida para revelar o profundo potencial gastronômico da flora e da fauna de seu país natal.

Em seus menus endêmicos, elaborados com técnicas e estética modernas e sofisticadas, encontramos uma base de ingredientes nativos escolhidos e colhidos um a um da terra selvagem e das rochas do Pacífico que desenham a costa chilena de ponta a ponta - e que Rodolfo estuda com olhar científico e criterioso em seu CIB (Centro de Investigación Boragó), um amplo laboratório instalado embaixo do restaurante com microscópios, cozinha equipada e pilhas e mais pilhas de livros.

Roteiro Chile: gastronomia ancestral de uma geografia de exceção (Foto: Reprodução)

Prato do restaurante Boragó (Foto: Claudio Vera / boragó / Divulgação)

Rodolfo olha para trás em duas camadas. A primeira é de memória. “Minha mãe me ensinou a ser grato por tudo na vida, mas especialmente à comida na mesa”, ele escreve em seu livro Boragó - Vindo do Sul. “Ela me ensinou que não existe comida que não dê para comer - apenas comida que você decide não comer. Alguma coisa que ela me disse fez um click aqui dentro e hoje eu como de tudo. Amo a comida em todas as suas formas e aprendi a apreciar não só o gosto, mas o significado de uma refeição.”

A segunda camada é justamente a reverência à cultura ancestral do povo Mapuche, cujos passos o chef segue para dar vida às suas receitas. Os ingredientes, sempre sazonais, vêm de comunidades nativas e produtores locais de todo o Chile, incluindo costas rochosas, cumes de montanha e o deserto do Atacama, mas também do trabalho diário de coleta feito por ele e sua equipe. Tive a oportunidade de participar de uma dessas expedições de “recolección” ao lado do chef em Punta de Tralca e Isla Negra, no litoral central do país, a pouco mais de uma hora de estrada da capital. Algas, flores selvagens, folhas de diferentes árvores e arbustos. Sob o olhar de Rodolfo, a natureza chilena é promessa de uma refeição rica e colorida.

Do que comi naquela noite no Boragó, muita coisa veio da coleta que fizemos ao longo do dia. Um dos pratos mais incríveis do menu, batizado de endémica verano, foi o primeiro de todos - o plantas y hierbas fuertes de verano, uma salada super crocante de caules, flores e folhas com um molho perfumado que inunda a boca de texturas e sabores inesperados. Teve também a salada de Copihue, que trouxe a flor-símbolo do Chile ao lado de creme de milho nativo e caviar, um lindíssimo crudo de tomate rosado do Maule e a batata com limão e mel defumado, entre 15 etapas de um jantar surpreendente e criativo em cada detalhe - inclusive esteticamente, como a gente vê nas fotos.

Roteiro Chile: gastronomia ancestral de uma geografia de exceção (Foto: Reprodução)

Prato do restaurante Boragó (Foto: Claudio Vera / Boragó / Divulgação)

Entre tantos chefs da América Latina que vêm fazendo um movimento crescente e louvável de pesquisa e resgate de ingredientes originários, Rodolfo acerta em cheio com sua filosofia de cozinha, que apresenta ao mundo não só a comida, mas toda a cultura de um povo milenar. Milenar e perene: hoje, os Mapuche ainda representam 4% da população chilena e, apesar de a maioria ter migrado para as grandes cidades, muitos ainda vivem em Araucanía, coração de sua terra ancestral.

Santiago, por sinal, é um reduto de cozinheiros que se dedicam aos produtos do país. O contemporâneo Olam, do chef Sèrgio Barroso (e onde comi um dos melhores “uni” da minha vida) trabalha exclusivamente peixes e frutos do mar - os mais frescos da costa chilena. A sazonalidade e os ingredientes nativos também são tema da Pulpería Santa Elvira, de Javier Avilés, que articula uma lógica circular com cooperativas, produtores e coletores e transforma os ingredientes sazonais em pratos super atuais. Em um cardápio enxuto e dinâmico que muda a cada dois meses, você vai descobrir um belo trabalho com vegetais como a nalca - uma erva gigante considerada planta-mãe por povos ancestrais -, a chicória do mar e a lleuque, que é um tipo de uva nativa da Cordilheira dos Andes.

Já o Demencia é o novo restobar do reconhecido chef Benjamín Nast (o Benja), um dos mais premiados do Chile. Para acompanhar os coquetéis autorais e clássicos, o menu inclui pratos como os aspargos com menta e molho holandês com verdurinhas, huacatay e orégano, e a saborosa papada de porco, que recheia dois ricos sanduichinhos de brioche. Mais um arraso do Benja, diga-se de passagem. Outro endereço que merece visita é o Demo, do chef Pedro Chavarria, instalado no interior da galeria Curtiembre. Para conviver em harmonia com o espaço cultural, o restaurante é discreto - uma espécie de cubo transparente com cozinha pequena e poucas mesas dentro e fora, em que a gente prova delícias como o polvo com tomate confitado sobre molho defumado de pimentão e lâminas de rabanete e o risoto com pó de beterraba. Para fechar, não perca o cake de cenoura de Chavarria - é glorioso.

Último destaque antes de sairmos da capital chilena para ganhar a estrada, o Mercado de la Vega Central é parada obrigatória para quem se interessa por produtos locais. Bem pitoresco, o lugar tem uma profusão de comerciantes de frutas e verduras, artesãos e barracas de comidas típicas. Uma delas é a Donde El Nando Sangucheria, que serve - sem brincadeira - os melhores sanduíches do Chile, que a gente devora em bocadas mais do que fartas.

Roteiro Chile: gastronomia ancestral de uma geografia de exceção (Foto: Reprodução)

Prato do restaurante Boragó (Foto: Claudio Vera / Boragó / Divulgação)

Vocês devem estar se perguntando como é possível eu fazer uma imersão dessas no Chile e até agora não ter mencionado vinho uma vez sequer. Para tranquilizar os enófilos de plantão, agora sim, a gente pega a estrada, saindo de Santiago rumo a duas vinícolas incríveis: a Santa Rita, que já conquistou o paladar brasileiro e o mundo há eras, e a moderna e jovem Vik, que foi aberta ao público em 2014. Mas antes faremos uma breve parada em Val Paraiso, cidade que fica pertinho da capital e foi declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, para conhecer o simpático La Caperucita y el Lobo.

Criado na casa que foi da avó da proprietária, Carolina Gatica, o restaurante tem uma vista espetacular para o mar e brinca com a ideia de conto de fadas dividindo o menu em três atos - todos deliciosos. Alguns exemplos são o Tostón de Champiñón, feito com pão de brioche frito, cogumelos salteados, emulsão de gemas, queijo de cabra, sementes de girassol e coentro, e a elegante lasanha vegana, de abobrinha italiana grelhada, quinua soufflée, molho de tomate assado, queijo vegano e bolinhas de champignon. Vale demais adicionar a parada ao roteiro, que finalmente segue para a vinícola Santa Rita - essa entidade do vinho chileno fundada em 1880 pelo empresário Domingo Fernández Concha.

Dom Domingo, como era conhecido, foi o responsável por introduzir as cepas francesas no Vale do Maipo, revolucionando a produção da bebida no país. Hoje uma das vinícolas a figurar por anos consecutivos no ranking das 50 marcas de vinho mais admiradas do mundo, a Santa Rita coleciona prêmios em todas as suas linhas e é uma experiência completa para visitantes. Em meio à imensidão de vinhedos que se espalham aos pés da cordilheira, a marca ergueu um hotel magnífico (Casa Real) e o Museu Andino, com uma coleção de 3 mil peças arqueológicas e etnográficas de povos pré-colombianos que habitaram o território chileno.

A Viña Vik também apostou na hospitalidade para integrar a experiência do vinho, construindo um impressionante retreat arquitetônico no topo de uma colina, bem no coração do vale, com 22 suítes de design e 7 bangalôs que exibem uma extensa coleção de obras de arte, incluindo instalações locais de artistas chilenos e internacionais. O retreat é a cereja no bolo dessa marca que aposta em boas práticas vitivinícolas (uvas colhidas manualmente e fermentação natural, sem adição de leveduras) a boas práticas ambientais e humanas. Na minha passagem por lá, fui surpreendida com um almoço incrível no meio da horta em que o chef da Vik, Pablo Cáceres, capitaneia um menu preparado por vários cozinheiros da região de O’Higgins. É simplesmente imperdível.

De volta a Santiago e de malas prontas para voar para o Brasil, abri novamente o livro de Rodolfo Guzmán para digerir mais um pouco de tudo que vivi (e comi) no Chile. E está lá: esse país é geograficamente diferente de todos os outros países da América do Sul - e isso influencia toda a gastronomia chilena. Os Andes se esticando de norte a sul, as águas geladas do Pacífico, a presença do deserto mais seco do mundo, os lagos glaciais da Patagônia e outras características que só o Chile reúne em seu DNA fazem com que as espécies nativas sejam simplesmente únicas.

E o empenho do povo chileno, desde os habitantes originários até os contemporâneos, em explorar essa diversidade em toda sua extensão é o que torna a experiência gastronômica uma página à parte. Que esse livro continue a se escrever com a mesma cadência e respeito, sempre: uma evolução constante - e que carrega em si toda a sabedoria de quem veio antes.

Boragó
@boragoscl

Olam
@olamrestaurante

La Caperucita y el Lobo
@lacaperucitayellobo

Vinícola Santa Rita
@santaritawines

Donde El Nano Sanguchería
@donde_el_nano_sangucheria

Demencia Restobar
@demencia_restobar

Vinícola Vik
@vik_wine

Pulpería Santa Elvira
@pulperia.santa.elvira 

Demo Franklin
@demofranklin