Folha de S. Paulo


Em tom de romance, livro narra as origens da filosofia de Sartre

RESUMO Escritora brit�nica consegue rara fa�anha de, num texto com qualidade liter�ria, manter o rigor ao apresentar conceitos filos�ficos. Em livro sobre respons�veis pelo existencialismo e pela fenomenologia, Sarah Bakewell mostra como surgiu e se popularizou uma corrente de pensamento que uniu teoria e cotidiano.

Arquivo �ltima Hora
O fil�sofo Jean-Paul Sartre (� esq.) ao lado de Jorge Amado e Simone de Beauvoir
O fil�sofo Jean-Paul Sartre (� esq.) ao lado de Jorge Amado e Simone de Beauvoir

Quem se interessa pela hist�ria das ideias e gostaria de conhecer a vida dos principais pensadores do s�culo 20 tem agora uma �tima oportunidade com o livro "No Caf� Existencialista" [trad. Denise Bottman, Objetiva, 416 p�gs., R$ 59,90, R$ 39,90 em e-book]. Sua autora, Sarah Bakewell, possui a grande virtude de dar vida �s quest�es filos�ficas e rigor conceitual � narrativa liter�ria.

Escrita em 2016, a obra � publicada no Brasil com o subt�tulo "O Retrato da �poca em que a Filosofia, a Sensualidade e a Rebeldia Andavam Juntas", menos te�rico que o original ("Liberdade, Ser e Coquet�is de Damasco"), mas preservando a no��o de um pensamento que tem na liberdade e no cotidiano seus temas fundamentais.

Formada em filosofia, Bakewell alcan�ou sucesso com o livro "Como Viver" (Objetiva, 2012), sobre o franc�s Montaigne (1533-92).

Em seu novo t�tulo, sem mudar de pa�s, mas saltando quatro s�culos � frente, descreve a �poca em que se desenvolveu o existencialismo, vertente filos�fica cujo lema se expressa na frase "a exist�ncia precede a ess�ncia" –isto �, o pensador deve compreender a pr�pria exist�ncia humana e suas a��es, em vez de se preocupar com quest�es abstratas e universaliza��es.

Ao investigar a natureza da mulher, por exemplo, a filosofia essencialista n�o leva em considera��o as mulheres reais. O existencialismo, por sua vez, prop�e mudar n�o s� as respostas preconceituosas (como a de Arist�teles, que via na mulher certa defici�ncia natural) como tamb�m a pr�pria indaga��o.

N�o se trata mais de encontrar uma defini��o definitiva do que � ser mulher, mas de olhar as condi��es hist�ricas e compreender como a educa��o das crian�as leva a um menor est�mulo � liberta��o e � autonomia das mulheres.

Do mesmo modo, se a filosofia essencialista buscava demonstrar a exist�ncia do mundo e dos outros seres humanos como quest�o pr�via da filosofia, o existencialismo parte do pressuposto de que estamos jogados na exist�ncia, diante de outras pessoas, e � a partir desses dados concretos que devemos fazer filosofia.

O ENCONTRO

Bakewell constr�i sua trama a partir do relato de um encontro entre Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Raymond Aron . Num bar, os tr�s debatem a fenomenologia, nova corrente de pensamento que surgia na Alemanha e que possibilitava atribuir status filos�fico a tudo que estivesse pr�ximo � exist�ncia. At� o coquetel de damasco que tomavam poderia ser analisado dessa maneira.

E � exatamente isso que interessa a esses jovens. Assim, eles passam a estudar a fenomenologia alem� e a propor um desenvolvimento dessa filosofia, com alguns direcionamentos diferentes, desaguando no existencialismo.

Sartre e Beauvoir s�o dois personagens importantes da obra de Bakewell, mas outros pensadores ligados ao movimento tamb�m interv�m. O grupo inclui Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty, Edmund Husserl, considerado o pai da fenomenologia, e Martin Heidegger –que se filiou ao nazismo e recusou-se a ajudar seu antigo mestre (Husserl) e seus amigos Karl Jaspers e Hannah Arendt.

Os cap�tulos seguem mais ou menos uma ordem cronol�gica. Percorrem quase todo o s�culo 20, indicam as circunst�ncias hist�ricas dessa �poca (Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria e Maio de 68) e contam como os fil�sofos tiveram suas vidas e ideias modificadas pela conjuntura pol�tica e cultural.

Acompanhamos as aventuras desses pensadores, suas afinidades te�ricas e entreveros, que n�o foram poucos. Embora humanize a filosofia, Bakewell n�o evita as quest�es mais delicadas e aponta os sil�ncios, idiossincrasias ou erros desses personagens.

Conhecemos sua intimidade, suas ousadias (como o relacionamento aberto de Sartre e Beauvoir) e atos de coragem, assim como suas falhas e covardias.

N�o h� o distanciamento t�o comum nos textos de filosofia, nos quais racioc�nios costumam ser apresentados como se n�o houvesse pessoas de carne e osso por tr�s deles. Em "No Caf� Existencialista", aproximamo-nos tanto desses personagens que passamos a torcer por uns e desejar que outros n�o consigam o que querem, como far�amos num romance.

DA VIDA � OBRA

Tais eventos cotidianos, por�m, n�o se descolam das teorias desses fil�sofos. Ao ler sobre as viagens de Beauvoir aos EUA na d�cada de 40 e sua rela��o com o romancista Nelson Algren, o leitor tamb�m aprende sobre as principais ideias do livro "O Segundo Sexo" e fica sabendo de seu impacto. N�o era trivial pensar a quest�o de g�nero como dissociada de uma natureza ou ess�ncia e associada exclusivamente � constru��o hist�rica –podendo, por assim dizer, ser modificada.

Mas "No Caf� Existencialista" n�o � um romance inspirado em fatos reais nem um livro voltado apenas para as curiosidades e esc�ndalos biogr�ficos. Trata-se, antes, de relato bastante concreto sobre uma teoria e sua �poca –uma hist�ria intelectual na qual o pensamento n�o se encontra dissociado das condi��es hist�ricas em que surge, e a vida est� intrinsecamente relacionada �s teorias inventadas pelos fil�sofos.

� por isso que a descri��o dos acontecimentos pessoais se intercala com uma apresenta��o detalhada das teorias elaboradas em "O Ser e o Nada" (Sartre), "Ser e Tempo" (Heidegger) e "Fenomenologia da Percep��o" (Merleau-Ponty), para citar alguns exemplos.

Bakewell demonstra conhecimento abrangente e profundo da fenomenologia e de suas principais obras. Seu rigor pode ser observado nas quase 50 p�ginas de notas de rodap�, importantes para quem busca refer�ncias para leituras futuras, mas que podem ser dispensadas caso o leitor n�o queira se aprofundar nos temas mencionados.

A autora consegue a rara fa�anha de, num texto com qualidade liter�ria, manter a precis�o de artigos e livros acad�micos; no��es complexas, se n�o s�o apresentadas de forma exaustiva, em nada deixam a desejar em termos de cuidado conceitual.

Se fica mais f�cil fazer essa associa��o quando falamos de fil�sofos que se aproximam do cotidiano, essa proposta tamb�m nos leva a refletir sobre nossos modos, muitas vezes herm�ticos demais, de mostrar a import�ncia da filosofia de uma forma que quase ningu�m consegue compreender.

� necess�rio preservar o rigor das leituras, mas tamb�m urge tornar essas pesquisas compreens�veis para n�o especialistas, dado que os temas filos�ficos v�o al�m das an�lises estruturais de jogos de linguagem �s vezes indecifr�veis.

Os fil�sofos constroem seus sistemas para tornar claras as quest�es de seu tempo e propor mudan�as em suas realidades. Uma pesquisa que desconsidera o aspecto concreto e pensa o ensino de forma abstrata vai n�o s� na contram�o das inten��es dos fil�sofos mas tamb�m refor�a o discurso que exige o fim do ensino da filosofia no Brasil.

Nesse sentido, o livro de Bakewell � essencial para mostrar a possibilidade e o sucesso de unir escrita agrad�vel e did�tica ao rigor filos�fico.

A estrat�gia de dar concretude � teoria leva Bakewell a n�o apenas descrever as condi��es hist�ricas como tamb�m se colocar pessoalmente no livro como leitora e admiradora da filosofia. Torna-se evidente, em particular, seu gosto pelo pensamento cr�tico e rebelde; compreendemos por que ela se dedicou a essa obra, trazendo, para nossos dias, as discuss�es sobre corpo, sexualidade e liberdade, entre outras no��es fundamentais da fenomenologia.

Embora vivamos em outro momento, no Brasil e n�o na Europa, muitas das quest�es levantadas por esses fil�sofos fazem sentido e podem nos ajudar a compreender dilemas atuais e a modificar problemas que ainda existem.

Em um mundo em que a tecnologia se infiltra nos atos mais corriqueiros, � importante resgatar Heidegger e discutir os perigos desse tempo acelerado no qual parece n�o mais haver espa�o para o passar do tempo.

De forma an�loga, nesses momentos em que a pr�pria no��o de sentido parece perder sentido , em que, diante das in�meras possibilidades que o mundo parece nos dar, as pessoas se sentem perdidas e incapazes de dar um significado a suas vidas, � essencial voltarmos a Camus e compreendermos como se opera a passagem da admiss�o do absurdo da vida para a valoriza��o da vida.

Em alguns trechos de "No Caf� Existencialista", o relato de Bakewell avan�a no campo da opini�o. E � assim, como impress�o subjetiva (sujeita a contesta��o, portanto), que os fragmentos devem ser tomados.

A autora afirma, por exemplo, que a filosofia existencialista tem uma "mensagem individualista" (p. 28) ou que era uma "tarefa imposs�vel e destrutiva" (p. 262) a tentativa de Sartre de unir existencialismo e marxismo –ocasi�es em que a acertada simplicidade da obra cede lugar ao simplismo, e afirma��es discut�veis n�o s�o confrontadas com questionamentos.

No Caf� Existencialista
Sarah Bakewell
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S�o deslizes pontuais, que n�o tiram o encanto do livro. O trabalho de Bakewell � essencial para quem deseja conhecer melhor o mundo te�rico e ao mesmo tempo t�o humano do existencialismo e da fenomenologia, em suas florestas, caf�s, jogos de futebol, universidades e boates em que se ouve muito jazz.

Como diz a autora, � uma "filosofia habitada", de uma intersec��o entre "filosofia e biografia" (p. 38), tornando a primeira mais bela, e a segunda, mais precisa.

Sarah Bakewell nos convida a sentar na mesma mesa que os fil�sofos e a tomar parte na conversa, ora amig�vel, ora tensa, mas sempre prazerosa. Quando a noite finda, quando os pensadores se v�o, permane�o sentada � mesa, absorta em suas vidas, pensamentos e erros; chamo o gar�om e pe�o mais um caf�, desejando que o conv�vio ultrapasse a �ltima p�gina.

THANA SOUZA, 38, doutora em filosofia pela USP, � professora da Universidade Federal do Esp�rito Santo e autora de "Sartre e a Literatura Engajada" (Edusp).


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