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Otavio Frias Filho, diretor de Reda��o da Folha, � autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Pe�as e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.
Intelectuais sob tutela
Como o segredo de aborrecer consiste em dizer tudo (Voltaire), o valioso apanhado que a "Ilustr�ssima" (28/8) dedicou aos 500 anos do livro "Utopia", de Thomas Morus, n�o chegou a examinar a sedu��o hipn�tica que as utopias exercem sobre um estamento em particular: os intelectuais. Ao menos na tradi��o ocidental, a ambi��o de redesenhar a sociedade de alto a baixo, conforme um plano metodicamente concebido numa escrivaninha, ocorreu a muitos deles.
O livro de Morus � apenas um epis�dio marcante numa sequ�ncia que vai da "Rep�blica", de Plat�o, passando por in�meros vision�rios e reformadores religiosos, at� os coletivismos de Comte e Marx no s�culo 19, matriz das utopias modernas. O prop�sito � cancelar os conflitos sociais, substituindo-os pela coopera��o harm�nica, mesmo que ao pre�o de coer��o e vigil�ncia perturbadoras (foi Marx, n�o seus advers�rios, por exemplo, quem escolheu o termo "ditadura do proletariado").
O pensamento conservador logo desenvolveu uma r�plica �s revolu��es inspiradas em utopias. A sociedade resulta, segundo esse argumento, da decanta��o de fatores e institui��es que evoluem conforme sobrevivem ao teste insubstitu�vel dos s�culos. Romper num golpe esse emaranhado de fios hist�ricos seria equivalente a salvar uma �rvore separando-a das ra�zes. As utopias s�o del�rios cerebrinos que violam propens�es da natureza humana –ou, em linguagem atual, inscritas no acervo evolutivo da esp�cie.
A melhor resposta sempre foi que, sem o farol das utopias, as sociedades talvez nem sequer melhorassem; sem um horizonte igualit�rio ideal, que sirva para ressaltar e amea�ar as injusti�as do presente, n�o h� por que lutar pelo futuro nem apostar nele. E o futuro chegou, no s�culo 20, em parte do globo, na forma do neologismo distopia, usado para designar para�sos terrestres, implantados pela revolu��o armada, que invertiam as promessas ut�picas ao prodigalizar guerra, escassez e tirania.
Surgiu uma literatura dissidente, �s vezes sat�rica, voltada a expor as distopias coletivistas (a fascista entre as socialistas, embora naquele caso talvez calhasse melhor o termo contrautopia), na linha de escritores com origem na pr�pria esquerda, como George Orwell e Arthur Koestler. Em chave parecida, mas a partir de matriz liberal e enfoque ensa�stico, acaba de ser publicado no Brasil pelo selo Tr�s Estrelas um dos expoentes dessa cr�tica, "O �pio dos Intelectuais", originalmente lan�ado em 1955, do franc�s Raymond Aron.
Amigo pessoal e advers�rio ideol�gico de pensadores de esquerda como Sartre e Merleau-Ponty, numa �poca em que o esquerdismo doutrin�rio exercia hegemonia cultural ainda mais un�voca do que hoje, Aron diz em ess�ncia que, colocando-se por raz�es morais a servi�o de uma ideologia pol�tica, o intelectual logo se converte em militante a servi�o do partido, divindade laica que tudo justifica e absolve. Sem perceber, abre m�o da liberdade para pensar e da aptid�o para criticar.
Embora concebido como livro, "O �pio dos Intelectuais" tem composi��o fragment�ria, como se fosse uma compila��o de artigos e palestras. Essa impress�o talvez se deva ao pr�prio estilo de Aron, que em geral tende, apesar dos achados de aguda penetra��o filos�fica, ao jornal�stico, ao epis�dico, ao circunstancial, quando n�o incide na banalidade. Esse efeito comp�e, por sua vez, um quadro de simplicidade e despretens�o que de alguma maneira refor�a o destemor intelectual do autor.
Das entrelinhas de Aron emergem os contornos de uma psicologia do intelectual engajado que se converte, por coer�ncia apaixonada, em aut�mato. Existe a� um apre�o est�tico pela arquitetura totalit�ria, em detrimento das imperfei��es da hist�ria; existe um abandono �s vol�pias religiosas da certeza, que dispensam da ang�stia de questionar e se autoquestionar; existe um desejo de escapar das intrincadas contradi��es do mundo em dire��o ao conforto das belas inten��es e do manique�smo bem-pensante; existe uma vaidade (res�duos de cristianismo?) de se julgar moralmente superior ao pr�ximo.
Muita coisa mudou, � claro, desde 1955, a come�ar do fato de que o antagonismo geopol�tico universal que dividia ent�o o mundo ruiu, e as ideologias se tornaram mais fluidas, menos dogm�ticas. Mas nem por isso a intoler�ncia cedeu em todas as dimens�es ou o fanatismo pol�tico desapareceu; ao contr�rio, com base em justificativas de repara��o e suscetibilidade moral, a liberdade de express�o, por exemplo, est� sob assalto de gravidade inaudita, tema para um coment�rio futuro.
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