• Silvia Chakian
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Coluna Silvia Chakian (Foto: Mariana Simonetti)

Coluna Silvia Chakian (Foto: Mariana Simonetti)

Principal marco legislativo na conquista dos direitos das mulheres no país, a Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, completa 15 anos este mês. Ela ganhou esse nome depois da responsabilização internacional do Estado brasileiro pela inércia no caso da cearense Maria da Penha Fernandes. À época, passados mais de 15 anos das duas tentativas de homicídio praticadas por seu ex-marido, que a deixaram paraplégica, seu processo se arrastava sem decisão definitiva.

Mas tão ou mais importante que enaltecer a luta de Maria da Penha é reconhecer que a legislação decorre, principalmente, de intensa mobilização dos movimentos de mulheres e especialistas, que souberam utilizar o contexto favorável trazido pela nova ordem constitucional e internacional para promover a movimentação político-jurídica que oficializou a responsabilidade do Estado na garantia dos direitos humanos das mulheres – incluindo o de viver sem violência. Com isso, foi possível a construção de uma legislação abrangente, destinada a todas as mulheres, independentemente de raça, etnia, classe, orientação sexual, cultura, nível educacional, idade e religião, capaz de mudar o paradigma de tolerância no trato da violência doméstica até então vigente no país. Assim, barbaridades como as vividas por Maria da Penha deixaram de ser vistas como questão do foro íntimo para finalmente serem tratadas como questão de Estado.

Nesse ponto, a definição de Fabiana Severi para a Lei Maria da Penha não poderia ser mais feliz: um projeto jurídico feminista que cria parâmetros para a construção de políticas públicas nas três esferas de poder, e garantia do dever de diligência para prevenção, investigação, punição e reparação da violência doméstica e familiar contra as mulheres. Ao justificar a escolha do termo, a autora destaca que, entre os compromissos da lei, está a noção de justiça social, por meio da qual a resposta para o fenômeno da violência doméstica não está apenas na criminalização, mas sim no reposicionamento das mulheres na sociedade brasileira, em termos de acesso a direitos humanos.

De fato, está na origem da Lei Maria da Penha a constatação de que a violência doméstica e familiar ocorrida no ambiente privado tem relação direta com a desigualdade construída historicamente. A origem disso está em discursos, práticas e leis discriminatórias que impediram o reconhecimento das mulheres como sujeitos de direitos. Essa é uma noção fundamental, que justifica a legislação ter priorizado, ao longo dos artigos, quais são as agendas de transformações estruturais e de padrões culturais necessárias para garantir às mulheres educação, trabalho, moradia, saúde, habitação, alimentação, lazer, cidadania, liberdade, segurança e acesso à Justiça, como estratégia para afastá-las da violência. Daí porque sejam simplistas e ineficazes as iniciativas legislativas que se limitam a buscar elevação de pena para os crimes praticados no contexto da violência doméstica e familiar, como única resposta para a diminuição das estatísticas.

Não estou com isso querendo dizer que as penas previstas para os crimes praticados no contexto doméstico e familiar sejam totalmente adequadas, mas sim que a resposta para o enfrentamento da violência de gênero não está, segundo reconhece a própria lei, exclusivamente na esfera penal. Ainda que por vezes partam de boas intenções, algumas dessas iniciativas acabam criando verdadeira cortina de fumaça, que esconde a falta de investimento na implementação das políticas de responsabilidade da União, estados e municípios, que poderiam efetivamente contribuir para a diminuição dos índices de violência.

"Reduzir o objetivo da Lei Maria da Penha às politicas de controle da criminalidade não atende às expectativas de proteção das mulheres num país como o nosso"

Silvia Chakian

Reduzir o objetivo da Lei Maria da Penha às politicas de controle da criminalidade não atende às expectativas de proteção das mulheres num país como o nosso – onde são elas que aparecem nas estatísticas como mais impactadas pelo déficit habitacional, insegurança alimentar, desemprego e pobreza, só para citar alguns exemplos.

Que neste aniversário possamos relembrar sua verdadeira essência, sua origem na história de luta dos movimentos de mulheres pela garantia de direitos humanos, repudiando as respostas fáceis que afastam a legislação de seu objetivo e acomodam gestores das esferas municipais, estaduais e federal que ainda se recusam a cumprir a agenda de reformas de nível estrutural e cultural que lhes foi incumbida desde 2006.