• Natacha Cortêz
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A mão esquerda de Guilherme Boulos repousa sobre o ombro direito da mulher, Natalia Szermeta. Ela está sentada em uma cadeira de plástico branca na garagem da casa do casal, no Jardim Catanduva, distrito do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Ele está em pé ao lado, com certa distância do corpo dela. A mão direita de Natália retira a mão do marido assim que a fotógrafa anuncia o fim do retrato. São pouco mais de 7 da manhã da última terça-feira (24) e nessa imagem que descrevo, feita minutos após um café preto tirado por Guilherme de uma Nespresso – puro para ele, com adoçante para ela –, o semblante do casal denuncia uma noite de poucas horas de sono. Naquela madrugada, à 1h, uma pesquisa Datafolha com as intenções de votos para o segundo turno da prefeitura de São Paulo mostrou o crescimento de Guilherme, candidato pelo PSOL, de 42% para 45%, enquanto seu adversário, Bruno Covas, atual prefeito pelo PSDB, variou de 58% para 55%. Antes, os dois foram sabatinados no programa Roda Viva, da TV Cultura.

Guilherme Boulos e Natalia Szermeta na garagem da casa do casal, no distrito de Campo Limpo, zona sul de São Paulo (Foto: Camila Svenson)

Guilherme Boulos e Natalia Szermeta na garagem da casa do casal, no distrito de Campo Limpo, zona sul de São Paulo (Foto: Camila Svenson)

"Tem meses que a gente não sabe mais o que é dormir uma noite inteira. O ritmo da campanha é intenso, mas fazemos com vontade e isso acaba enganando o cansaço. O problema são as olheiras profundas, essas eu não consigo esconder", diz Natalia no caminho apressado que faz para chegar ao ponto de ônibus da Estrada do Campo Limpo, de onde parte para o primeiro compromisso do dia, uma reunião do marido com policiais civis no Hotel Excelsior, centro da capital, seguida de coletiva de imprensa. Enquanto aguarda o ônibus certo, ela acende um cigarro (o maço azul é de Kent) e avisa que no meio da manhã vai precisar parar uns minutos para fazer uma prova pelo celular. Aos 33 anos, ela cursa a segunda faculdade e está no último período de direito em uma instituição particular com campus no Butantã. Mais nova, entrou em geografia, mas não concluiu por conta da maternidade. Natalia engravidou da primeira filha, Sofia, hoje com 10 anos, e um ano depois, de Laura, hoje com 9. "Interrompi [a faculdade] como interrompe a imensa maioria das mulheres da periferia quando precisam cuidar de filhos, casa e trabalho. Quando passei a ter mais tempo pra mim, e com as meninas crescidas, voltei a estudar e reconsiderei o curso. Direito tem mais a minha cara agora."

Em seu trabalho de conclusão de curso, escolheu estudar um fenômeno que conhece de perto, as ocupações de terra urbana. "Quero trazer um debate sobre reparação histórica, o quanto no Brasil o privilégio da propriedade privada e o problema da moradia estão intrinsecamente ligados. Política pública neste país precisa passar por reparação através da moradia, que é reservada para uma elite", diz ela, que está, junto com o marido, entre os 61 coordenadores do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST). Nesse time – e agora ele vai até um grupo de WhatApp para dizer com exatidão –, são 42 mulheres e 19 homens que respondem por algo entre "30 e 40 mil famílias" só no estado de São Paulo. A nível nacional, o movimento fundado em 1997, atua em 13 estados e reúne em torno de 6 milhões de famílias que, nas palavras da coordenadora, "apenas reivindicam o direito constitucional à moradia digna". Ela garante que nada no movimento é "profissionalizado", que ninguém é remunerado pela militância e que não é cobrado nenhum tipo de aluguel aos que acampam. "Sobrevivemos com doações e com o que produzimos e vendemos, camisetas, bonés, bingos e rifas." Bem por isso, a maior parte dos membros têm trabalhos fora.

Natalia no Estação Butantã do metrô de São Paulo (Foto: Camila Svenson)

Natalia no Estação Butantã do metrô de São Paulo (Foto: Camila Svenson)

Natalia nasceu em São Paulo, na mesma casa em que os pais vivem até hoje, ali perto da Estrada do Campo Limpo, onde ela pega ônibus todos os dias – antes da pandemia para frequentar as aulas pela manhã e agora para se locomover pela cidade por conta do papel executivo que tem campanha do "companheiro", como gosta de dizer. Um dia, lá pelos seus 17 anos, ainda morando com os pais, abriu a janela do quarto em que dormia e avistou um imenso acampamento povoado por lonas pretas. Arrastou consigo o namorado da época e foi conhecer o lugar. Sabia que se tratava de pessoas sem teto, a militância no grêmio estudantil anos antes havia preparado Natalia para o que os seus olhos estavam prestes a ver. Ao chegar no acampamento, foi recebida com "a desconfiança habitual" guardada aos visitantes. Aos poucos foi ficando, se envolvendo com as pessoas e com os protestos do grupo. Quando deu por si, estava passando as noites no lugar. Já naquele primeiro dia no acampamento, percebeu o jovem Guilherme Boulos, então com 22 anos. "Não tinha como não [perceber]", lembra ela. "Ele se destacava dos outros. Sempre teve esse jeito de falar de professor, e uma coisa de ouvir com atenção, olhando no olho, baixando o tronco pra mostrar que tá ali mesmo te escutando."

A aproximação romântica dos dois, no entanto, levou algum tempo. Se conheceram em 2005 e só começaram a namorar em 2009. Logo juntaram os trapos, como ela define, e nunca se casaram no papel. “Dividimos os mesmos sonhos, somos parecidos nos valores. A militância nunca foi um momento das nossas trajetórias, não vai passar. Nem com ele sendo eleito vai passar. É uma escolha de vida. Não estamos no mundo para nos conformar com as coisas como elas são, mas para tentar transformá-las”, responde quando peço que conte o que a fez se apaixonar.

Parecidos nos valores, mas de berços distintos. Natalia não só é da periferia, como é filha de pais ativistas. Stanislaw, de origem polonesa e ucraniana, nasceu num campo de prisioneiros na Alemanha, em 1945, durante a Segunda Guerra. Veio criança para o Brasil e se profissionalizou como metalúrgico. Membro da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (a Polop), foi preso e torturado na ditadura. A mãe, Maria do Carmo, é ex-operária da Sharp e também tinha função na Polop. Não chegou a ser presa, mas a filha recorda das muitas vezes em que foi enquadrada pela polícia. A prisão e a tortura do pai e a perseguição sofrida pela mãe deixaram marcas na família. "Não falamos disso, sempre trouxe dor", ela conta. "Mas falamos da militância, da origem deles, dos meus avós. Com meus pais que aprendi sobre justiça social."

Natalia Szermeta (Foto: Camila Svenson)

Natalia Szermeta (Foto: Camila Svenson)

Antes de entrar para o MTST (aos 20 anos, em 2002), Guilherme nasceu em Pinheiros e morou na Pompeia, bairros de classe média alta na zona oeste de São Paulo. É filho de um casal de infectologistas. O pai, Marcos, dirigiu a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e atualmente chefia a Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo. A mãe, Maria Ivete, trabalha no Hospital das Clínicas, onde coordena o Núcleo de Atendimento à Violência Sexual. Guilherme é formado em Filosofia pela USP, especializado em Psicanálise pelo Cogeae/PUC e mestre em Psiquiatria, também pela USP. Até o final de 2019, foi professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). 

Todas as respostas da mulher de Guilherme são feitas na primeira pessoa do plural. Nunca refere-se a si somente. Quando questiono como ela se sente com o fato de o marido ter se tornado um político profissional, responde sobre os sentimentos dele. "Apesar dos receios que tive nessa trajetória até aqui, percebo uma mudança na forma como as pessoas estão vendo o Gui. Ficam emocionadas de vê-lo, choram. Ele chora também. Então, pra mim isso só pode ser o caminho certo."

São quase 9 da manhã quando chegamos na Estação República do metrô. Natalia pede licença para acender mais um cigarro e seguimos até o hotel onde ela encontraria Guilherme e a equipe da campanha para a reunião com membros da guarda civil. No lugar, a bituca vai ao chão num gesto automático e um dos assessores de imprensa pede que a reportagem aguarde até a reunião terminar no Mcdonald's ao lado. Natalia o contraria e pergunta se queremos subir com ela. Ela fuma outros dois cigarros, conversa com um repórter da Folha de S. Paulo, joga as bitucas novamente no chão e então pegamos o elevador rumo ao 22° andar do Excelsior. Dentro do elevador, uma mulher pergunta à Natalia se ela vai mediar a conversa do marido. Natalia pede que a mulher o faça por conta da prova da faculdade que precisa preencher antes das 10h. Ficamos no 22° andar tempo suficiente para água e dois cafés. Em nenhum momento marido e mulher conversaram, mas ela fica à espreita, em pé em um canto, observando ele falar. Dali, caminhamos algumas quadras e um cigarro até encontrar um lugar calmo para ela realizar a prova. Numa padaria, pede um croissant com queijo na chapa e um café com leite. "Vai ser o almoço", diz.

Natalia mexe no celular, um Android, o tempo todo. Ou está no WhatsApp ou em ligações. Enquanto come, a mãe liga para dar notícias de Sofia e Laura, que estão passando uns dias na casa dela. Mais cedo no Jardim Catanduvas, enquanto Natalia se arrumava, Guilherme contou que as filhas "num belo dia" ligaram para avisar que tinham adotado uma cachorra durante a estadia na casa da vó. "No início do ano perdemos o Lampião, que era o nosso cachorro. As crianças ficaram chocadas e quiseram logo substituir o buraco. O nosso acordo foi comprar dois peixes [Prateado e Flash], é mais fácil de cuidar e nesse momento de campanha resolveria. Mas elas são loucas por cachorro, tanto que fizeram o que fizeram. E é uma gracinha a cachorrinha." Luna, a nova moradora, deve chegar depois da eleição.

Natalia Szermeta (Foto: Camila Svenson)

Natalia Szermeta (Foto: Camila Svenson)

Há sete anos, a família vive no mesmo sobrado, comprado com a ajuda dos pais do casal. A proximidade com a residência dos pais de Natalia foi fundamental para escolherem o imóvel rosa de portões brancos de 110 m², com dois quartos, escritório, dois banheiros, sala, cozinha e garagem. Segundo ela, as tarefas domésticas são divididas igualmente com o marido, mas, se um ou outro fica mais livre, o trato é que se prontifique a cuidar das filhas e das tarefas do lar. Considera-se feminista?, pergunto. Ela faz uma pausa e diz que precisa explicar esse ponto: “Feminismo não existe né, são inúmeros os feminismos. As pautas de esquerda no Brasil são elitizadas e isso se reflete na pauta feminista. A gente é feminista sim, faz um debate sobre o tema, mas é um outro tipo de feminismo, preocupado em salvar a vida das mulheres, feito com mulheres periféricas. Sou crítica desse feminismo meio burguês e acadêmico, que se preocupa mais com questões de comportamento e com o politicamente correto do que com mudanças efetivas, sobretudo na rotina das mulheres periféricas".

O MTST é composto em sua grande maioria – na base e coordenação – por mulheres, que são mais de 70% dos integrantes. "Então, essa pauta [feminista] é presente no dia a dia do movimento", diz Natalia, que explica que a relação das mulheres na luta por moradia vai muito além da busca por propriedade. "A propriedade é uma característica de sociedades patriarcais. Uma característica da hereditariedade, da herança que passa do pai para o filho homem… As mulheres não buscam propriedade, buscam autonomia, preservar suas vidas e a vida dos seus filhos, buscam um novo começo. Tem muita mãe solo no MTST, vão para salvar a vida dos filhos e delas mesmas. A manutenção da luta para as mulheres é muito mais afetiva do que numérica", completa ela, que incluiu os homens no feminismo que acredita, "Nesse ponto, a luta das mulheres do movimento não busca destruir o outro, mas entender o sistema em que a gente vive e dialogar com os homens. Assim como a mulher é educada a ser submissa, o homem é educado a ser violento, eles são grande parte do problema e devem ser aliados na solução".

Natalia na sala de reunião do comitê da campanha do marido no bairro de Santa Cecília, centro de São Paulo (Foto: Camila Svenson)

Natalia na sala de reunião do comitê da campanha do marido no bairro de Santa Cecília, centro de São Paulo (Foto: Camila Svenson)

Depois do croissant e da prova feita, Natalia desmarca um compromisso com um grupo de vigilantes que no primeiro turno apoiou o candidato Márcio França (PSB). Ela chega a ir até o ponto de encontro, mas eles estão atrasados e ela precisa seguir com a agenda. Faz duas ligações, acende um cigarro e pede um Uber para irmos até a Rua das Palmeiras, em Santa Cecília, onde fica um dos comitês da campanha de Guilherme. Dentro do carro, ela fala de novo com a mãe sobre as filhas. No comitê, se reúne com quatro mulheres jovens e reclama da não entrega de materiais da campanha em uma região da cidade. Ao terminar, pergunta se a reportagem está contemplada. São pouco mais de 13h. Digo que precisamos de mais tempo com ela. Subimos três lances de escada até uma sala de reunião, com uma mesa grande improvisada no centro e as mesmas cadeiras de plástico da garagem em que fizemos o retrato pela manhã. Ali, Natalia tira da mochila um laptop da marca Lenovo e um caderno, pega dois copos de plástico descartáveis, um posiciona como cinzeiro e o outro enche de água. Acomodada para trabalhar, organiza por telefone um dos evento do dia seguinte, 25 de novembro, uma roda de mulheres para refletir sobre o Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher.

Natalia na sala de reunião do comitê da campanha do marido em Santa Cecília  (Foto: Camila Svenson)

Natalia na sala de reunião do comitê da campanha do marido em Santa Cecília (Foto: Camila Svenson)

São quase 15h da terça-feira e antes de nos despedirmos de Natalia, paramos para mais uma sessão de fotos, dessa vez nos cômodos de paredes coloridas do comitê. Ela reclama das novos registros, diz que não gosta "mesmo" de ser fotografada e se preocupa com o botão da blusa amarela que está usando, "parece que soltou". Pede à fotógrafa que ajude com o decote. "Já estou mostrando a barriga." Além da blusa modelo cropped (mais curta), vestia calça jeans de cintura alta e risca de giz, sandálias pretas de plataforma e um cardigã preto. A bolsa era uma mochila escolar de tom rosa claro com ilustrações de borboletas – parecia ser emprestada de uma das filhas. As unhas dos pés e das mãos estavam compridas e pintadas de um vermelho escuro. O cabelo, que vai até a metade das costas, permaneceu solto o tempo inteiro. No colo, vestia um colar com um olho grego; no rosto, pouca maquiagem, talvez só base e corretivo. Durante as fotos, comenta de novo as olheiras. "Não sei se vou conseguir me livrar delas tão cedo." Quem sabe elas melhorem depois de domingo?, sugiro. "É que não vai acabar no domingo, né?", devolve. "Ganhando ou perdendo, nossa vida já mudou."