As escritoras estanunidense Koa Beck e a paquistanesa Rafia Zakaria (Foto: Divulgação)

As escritoras estanunidense Koa Beck e a paquistanesa Rafia Zakaria (Foto: Divulgação)

O ano era 1851, e ativistas estadunidenses organizavam a quarta Convenção dos Direitos das Mulheres em Akron, no estado de Ohio, cuja principal demanda era o voto feminino, numa campanha iniciada em 1848. O ambiente estava tumultuado pela presença de homens hostis ao encontro, que berravam ser ridículo mulheres terem o direito de votar, já que precisavam da ajuda deles para coisas tão simples quanto subir em uma carruagem ou saltar uma poça de lama.

Do meio da plateia, a única negra presente, a abolicionista Sojourner Truth, levantou-se e iniciou um discurso no qual questionava se ela, por acaso, não era também uma mulher:

“Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim! Não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem – quando eu conseguia comida – e aguentava o chicote da mesma forma! Não sou eu uma mulher? Dei à luz 13 crianças e vi a maioria ser vendida como escrava e, quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher?”

A fala de Sojourner atravessou os séculos não só pela força de suas palavras como por revelar a visão predominante de uma imagem feminina, ainda enraizada na sociedade contemporânea, que se traduz numa delicada mulher branca, mãe, burguesa, dona da casa no comando das serviçais, estas sim negras, asiáticas, latinas ou mesmo as operárias de pele alva da classe trabalhadora.

Esse mesmo estereótipo acabou por cristalizar a alegoria das heroínas feministas e de seus propósitos de independência e sucesso. Pense na jornalista Gloria Steinem, importante ativista e cofundadora da revista Ms. nos anos 1970, com seus óculos redondos, as hastes presas entre as mechas dos cabelos lisos, longos e loiros. Sempre sexy e supercool.

Capa de 'Feminismo Branco', editado no Brasil pela Harper Colins (Foto: Divulgação)

Capa de 'Feminismo Branco', editado no Brasil pela Harper Collins (Foto: Divulgação)

Das sufragistas no século 19, passando pela revolução inspirada por Simone de Beauvoir nos anos 1970 à geração #MeToo, o protagonismo segue o mesmo, e o reforço dessa ideia chega com Feminismo Branco – Das Sufragistas às Influenciadoras e Quem Elas Deixam para Trás (Harper Collins, 384 págs., R$ 34,94), livro no qual a jornalista estadunidense Koa Beck mostra como essas ativistas acumulam vantagens por serem (ou parecerem) heterossexuais, cisgênero e de classe média e como elas usam esses benefícios para perpetuar a opressão patriarcal contra outras mulheres.

“Em 2017, eu era diretora de redação do site Jezebel, quando Donald Trump foi eleito e aconteceu a primeira Women’s March. O #MeToo tinha acabado de se tornar relevante novamente, com mais denúncias contra [o produtor] Harvey Weinstein. Então fazia parte do meu trabalho participar de eventos para falar sobre assédio sexual e discriminação, entre outros assuntos ligados a gênero”, lembra Koa.

"Todas as vezes em que eu estava em um debate, uma pessoa da plateia, quase sempre uma jovem, levantava a mão e me perguntava sobre o feminismo branco, usando estamente essas palavras."

Koa Beck

Em geral, as jovens descreviam ter ido à Women’s March "e as mulheres com quem elas se encontravam terem uma compreensão diferente do que era o feminismo para as latinas, negras, lésbicas, gordas ou pessoas com deficiência". 

"Elas queriam conselhos sobre como lidar com o feminismo branco, e eu sempre tentava dizer que a rejeição que elas experimentam como mulheres de cor, queer ou com deficiência faz parte da dinâmica histórica dos Estados Unidos, e, por mais doloroso que isso seja, não há nada que possam fazer, pois é parte de uma longa narrativa, que começou há mais de cem anos, e eu queria contá-la.” (Nos Estados Unidos, o termo “de cor” é usado para tratar de diferentes raças e etnias que não a branca, sem a carga depreciativa que existe no Brasil.)

Se essas demandas inspiraram a jornalista a escrever o livro, foi a partir de um lugar que ela reconhece de privilégio que Koa pôde fazê-lo. Na introdução, ela assume essa posição ao falar sobre sua passabilidade, pois, apesar de ser uma mulher birracial e lésbica, ela tem a pele clara e é “convencionalmente feminina”, o que leva as pessoas a tratarem-na como uma mulher branca e hétero.

Aos 34 anos, também ocupou cargos sênior em títulos femininos importantes, como a revista Vogue, onde foi diretora executiva, além de Marie Claire e Glamour. Nessas publicações, testemunhou a “virada feminista”, momento em que as revistas abraçaram o ativismo, nem sempre da melhor maneira.

“Entendi que, para o bem e para o mal, fui influente para o feminismo branco porque o vivi institucionalmente, por isso devo às mulheres e pessoas não binárias escrever o que sei”, diz Koa. E é justamente isso o que ela faz de modo didático, repassando a história a partir de leituras de autoras negras como Angela Davis ou bell hooks, sob o prisma de como o jornalismo trata de temas como o “empoderamento”, que se tornou sinônimo de sucesso financeiro, ou de gordofobia e desigualdade, pautas muitas vezes recusadas por se tratarem de um “nicho”.

Também sobram estocadas ao mercado, que vai de camisetas de grife com slogans a eventos voltados às chamadas “girl boss” – uma busca por essa hashtag no Instagram é bastante explicativa.

São elas, aliás, quem ganham destaque no texto, com histórias recentes como a de Sophia Amoruso, fundadora do descolado e-commerce Nasty Gal, badalada por toda a imprensa até ser acusada de assédio moral.

Para Koa, foram essas as personagens que o feminismo branco usou para tentar sequestrar de novo o protagonismo no século 21. “Nos Estados Unidos, existe uma ansiedade com a queda dessas mulheres de negócios com uma narrativa perfeita de sucesso, que não vieram necessariamente de famílias ricas, mas se ‘fizeram sozinhas’, criando empresas lucrativas e sendo respeitadas como feministas por isso”, explica Koa.

“Após algumas delas passarem a ser criticadas por racismo contra trabalhadoras negras, salários mais baixos para as latinas ou demissão de grávidas, iniciou-se uma movimentação para refletir sobre seus erros e recebê-las de volta no empreendedorismo."

"O feminismo branco começou com mulheres elitistas, que tentam novamente transformar este no tema mais importante do movimento."

Koa Beck

De acordo com ela está Rafia Zakaria, advogada, feminista e ativista pelos direitos humanos, que é ainda mais contundente em sua crítica. “O culto ao individualismo e a forma resultante do feminismo que se tornou notória por mulheres como Sheryl Sandberg, executiva do Facebook, em seu livro Faça Acontecer, e, por extensão, Gloria Steinem antes dela, encorajam toda mulher que alcançou o poder a acreditar que chegou lá sozinha e sem nenhum custo”, diz a autora deoutro livro que vem causando barulho, Contra o Feminismo Branco (Intrínseca, 304 págs., R$ 49,90).

"A sugestão de que o privilégio racial pode ter desempenhado algum papel em sua ascensão, que homenss brancos estão mais dispostos a ceder o poder para mulheres brancas, é uma ameaça intolerável para essa mitologia da supermulher que se constrói com esforço próprio."

Rafia Zakaria

Ao contrário de Koa Beck, que escreve sob a perspectiva de quem está incluída na conversa, Rafia o faz sob o ponto de vista de quem é vista como “a outra”. Nascida no Paquistão, aos 17 anos ela aceitou um casamento arranjado com um médico 13 anos mais velho com a
promessa de que ela poderia estudar.

Nos Estados Unidos, fez faculdade de direito e, quando quis continuar sua formação, passou a ser vítima de violência doméstica. Após uma noite de terror, Rafia pegou a filha pequena e uma mala de roupas e fugiu para um abrigo de mulheres. Depois dessa experiência e de anos de estudo e pesquisa, Rafia mostra como o colonialismo impregnou de machismo nações antes mais igualitárias, além de revelar como personagens icônicas como a própria Simone de Beauvoir (que Rafia admira) e jornalistas do século 21 contribuíram para invisibilizar a realidade de mulheres não brancas.

Entre os muitos causos, alguns dos mais contundentes são de jornalistas que ascenderam
durante as coberturas da “guerra ao terror”, pois eram as únicas com acesso às muçulmanas em países como o Afeganistão, e como elas usaram isso para se tornarem elas próprias  "heroínas”.

“A história do feminismo vem sendo contada por meio das vidas, conquistas e agendas das mulheres brancas. Se você é uma muçulmana de origem paquistanesa, automaticamente é considerada menos femininista porque a ideia central é que as brancas da cultura ocidental são as mais liberadas”, diz Rafia.

Capa de 'Contra o Feminismo Branco', editado pela Intrínseca (Foto: Divulgação)

Capa de 'Contra o Feminismo Branco', editado pela Intrínseca (Foto: Divulgação)

“Isso destrói as possibilidades de diálogo: por que eu deveria falar com uma feminista branca se ela não se importa com o papel que seu privilégio racial tem na história  do movimento?” Acusada de ser diversionista e de tentar promover uma fratura no ativismo, Rafia destaca que não se trata de criar vilãs.

"Não tenho nada contra as mulheres brancas. Meu problema é com a branquitude e o privilégio racial."

Rafia Zakaria


Assim como Koa Beck, Rafia concorda que “não é preciso ser branca para ser uma feminista
branca”. “Para isso mudar, é preciso escutar mais e falar menos para compreender o que o resto das mulheres viveu por muito tempo, sem estar sempre na defensiva. São as mulheres negras, asiáticas que têm de dizer o que é racismo ou não, e elas têm de aprender a ouvir.”