• Humberto Tozze
Atualizado em

“Fizemos uma parada LGBT fora de época. Nunca na história do país o poder privado se manifestou desse jeito em relação a uma pauta política.” A fala é da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL-SP), e diz respeito a uma das principais lutas que encabeçou neste ano, quando um projeto de lei que proibia a publicidade com pessoas LGBTQIA+ (PL 504/2020) e casais homoafetivos no estado de São Paulo entrou na pauta na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo). A atuação da deputada foi decisiva: apresentou uma emenda com o apoio de 26 parlamentares, pedindo que o conteúdo fosse revisto. Isso fez com que a proposta retornasse para a análise das comissões. Naquele momento, diversas marcas e empresas se posicionaram contra o projeto de Marta Costa (PSD). O argumento inicial era que tais propagandas poderiam ser “danosas às crianças”, o que foi logo encarado como mais uma forma de discriminação. “Mais de 800 empresas se posicionaram contra. Foi um feito histórico”, resume Erica. Entre elas, Disney, Grupo Heineken e Havaianas.

Erica Malunguinho (PSOL-SP) é a primeira deputada trans do Brasil  (Foto: Arquivo pessoal)

Erica Malunguinho (PSOL-SP) é a primeira deputada trans do Brasil (Foto: Arquivo pessoal)


Erica é de 20 de novembro de 1981, mesma data em que é celebrado o Dia da Consciência Negra no Brasil, dia em que o líder Zumbi dos Palmares teria sido assassinado, por coincidência no mesmo estado em que a deputada nasceu, Pernambuco. Nascida em Água Fria, “o bairro mais preto de Recife”, como se orgulha de recordar, os resquícios daquela época parecem se contrapor à vida política que leva hoje: “Tenho imagens de uma mata muito grande e densa, uma reserva de Mata Atlântica em que eu vivia, brincando ali dentro”. Com o tempo, encontrou-se na arte, na moda e depois na educação. Veio para São Paulo, fundou o Aparelha Luzia – um quilombo urbano localizado no centro da cidade. A confluência desses cosmos não parecia dar muitas pistas do que viria a seguir, mas escolheu enveredar-se nos rumos do Legislativo. “O projeto precisa ser político e pedagógico, se não aproximarmos as pessoas das coisas, das histórias, da política, pouco temos a caminhar”, ressalta.

Hoje, aos 39 anos, compõe um importante capítulo da política brasileira. No mesmo ano em que Jair Bolsonaro (sem partido) foi escolhido como presidente, Erica foi eleita primeira deputada transgênera do Brasil. “Nenhuma violência finaliza em si mesma, mesmo quando há morte.” No dia da posse, ela quis fazer barulho: entrou com um enorme cortejo que chamou de “reintegração de posse”, com batuques e mais de 100 pessoas vestidas de branco desfilando. “Foi político e performativo”, define.

Perto de completar três anos de mandato, seus fantasmas são outros: o racismo e a transfobia que enfrenta cotidianamente. A palavra violência é recorrente no seu vocabulário e parece ser um catalisador para sua atuação como parlamentar. Ela ingressou na política impelida pelo assassinato da vereadora carioca Marielle Franco. E no atual estágio de exercício enquanto deputada, seus projetos são igualmente inspirados em Marielle, como é o caso do PL 141/2021, que cria o Dia Marielle Franco de Enfrentamento à Violência Política contra Mulheres Negras, LBTQIA+ e Periféricas. “Esse projeto entende esse assassinato como parte de um processo institucional que inviabiliza mulheres de entrarem na política”, diz.

Marie Claire conversou com Erica por videochamada. A entrevista deveria ter acontecido presencialmente na Alesp, mas o aumento dos casos de infecção pela covid-19 no estado, na mesma semana que o país ultrapassou a infeliz marca de 500 mil mortos, obstaculizou o encontro no gabinete.

MARIE CLAIRE Alguns dos seus projetos de lei se relacionam à questão da violência política, por exemplo uma proposta de criação de um programa de combate ao Assédio e à Violência Política Contra a Mulher (PL 130/2021). Qual é a dimensão desse problema atualmente?
ERICA MALUNGUINHO
Compreender a realidade em que vivemos é uma responsabilidade de qualquer pessoa que esteja na política institucional. Vivemos num país construído à base de violências históricas que se tornaram estruturais e institucionais. Esse projeto [PL 130/2021 foi fundamentado pelo assassinato de Marielle [Franco], entendendo esse assassinato como parte de um processo institucional que inviabiliza mulheres de entrarem na política e quanto elas entram as formas de exercício de poder recaem sobre nossos corpos.

MC De que forma essa violência se materializa?
EM
É o silenciamento da fala, a interrupção, a interferência em projetos, são comentários completamente destituídos de uma relação institucional. E, obviamente, essas situações culminaram no assassinato de Marielle. Estamos falando de vários tipos de assédios, mas que no fim das contas autoriza a morte, a invasão do corpo e situações mais graves. Esse projeto vem no sentido de proteger as mulheres que adentram a política institucional.

MC Ele não foi votado ainda?
EM
Não foi. O processo na Alesp é complicado, porque ali trabalhamos basicamente respondendo às demandas do governador. Então, se entra projeto de João Doria, tudo paralisa para debatermos.

MC Como a Comissão de Defesa e dos Direitos das Mulheres da Alesp pode trabalhar para avançar projetos como esse seu?
EM
A comissão avalia projetos referentes à violência e políticas afirmativas em relação a mulher. Além dela, tem a Procuradoria da Mulher, que é uma espécie de órgão dentro da Alesp, responsável por fiscalizar as políticas públicas dirigidas às mulheres no Executivo. Sou uma das procuradoras, fomos nomeadas agora. Somos quatro nomeadas pelo presidente da Casa. Temos também a responsabilidade de trazer pautas. Uma das primeiras neste período é a investigação das violências sofridas pelas parlamentares transexuais na Câmara Municipal de São Paulo.

MC O que significa ocupar este cargo?
EM
É como se a minha mulheridade fosse institucionalizada ao ser nomeada como uma procuradora da mulher. Eu não dependo desse reconhecimento, não é uma questão de legitimação, mas acho que é uma reflexão e atitude importantes da Alesp ao me colocar como procuradora.

MC A discussão sobre a violência política é capaz de unir parlamentares mulheres de diferentes lados políticos? Aliás, isso tem acontecido?
EM
Essa é uma questão muito complexa para promover uma união. As mulheres da Alesp se uniram no caso do assédio que a deputada Isa Penna (PSOL) sofreu, pois era uma agressão física e explícita. Vale dizer que muitas delas não foram solidárias com a Isa, mas foram no gabinete de Fernando Cury (Cidadania). Esse é um dado muito importante quando você pergunta sobre união. Acredito que em casos extremos elas acabaram votando a favor da punição do assediador [Fernando Cury foi afastado do cargo por seis meses]. Mas isso não acontece em casos de questões ideológicas ou quando envolve a compreensão do que é ser mulher no mundo. Muitas mulheres na Alesp se dizem antifeministas.

MC As políticas de aborto, por exemplo, segregam mulheres na Alesp?
EM
Sim, os direitos sexuais e reprodutivos se alocam dentro de posições ideológicas que no campo da direita não tem espaço, porque ela está calcada na moralidade e em pressupostos religiosos que ferem o Estado laico. Tratam moralmente e do ponto de vista religioso para pensar políticas públicas para mulheres.

MC Imagino que a violência política investida contra os homens é diferente da investida contra mulheres e LGBTQIA+. Como você particularmente a sentiu?
EM
Essas violências se dividem basicamente em duas: sobre o posicionamento político que os homens cisgêneros podem ser acometidos. Por exemplo, o Marcelo Freixo (PSB) denunciou as milícias e estava sendo ameaçado, isso diz respeito à atuação política. No nosso caso, diz respeito a uma condição de ser quem somos. Essa sobreposição da voz, o tipo de contato e relacionamento muito baseados nos nossos atributos físicos, a suspeição da nossa capacidade profissional.

MC E afeta de forma distinta mulheres cis e trans?
EM
Entre mulheres cisgêneros e mulheres trans podemos fazer uma outra temática, que é assim: as mulheres cisgêneros vão passar por violências relacionadas aos atributos físicos, às vezes comentários elogiosos demais, de modo que não se atentam ao que a mulher está falando ou então subestimando-a. Toques invasivos, aproximações invasivas. Uma mulher trans nem considerada gente é. Ela está num outro lugar da humanidade, de modo que o tipo de assédio que vai acontecer comigo é além de ser esse da dúvida, da suspeição da fala, da intelectualidade, ele vai num grau de desumanização. É me perguntar se sou operada.

MC Isso já aconteceu?
EM
Sim. De perguntar se sou operada, de situações como usar o plenário para falar de minha condição de gênero, me chamar de “transformer”, por exemplo. Ou ficar a todo momento tentando elaborar minha existência: “é homem que se sente mulher ou mulher que se sente homem?” Deslegitimando minha condição. A violência de gênero que me é praticada vem com essas doses de abjeção e objetificação do meu corpo. Parte das violências vêm na interdição dos meus projetos de lei, principalmente quando falam de LGBTs. E outra coisa é a provocação de projetos anti-LGBTs, especificamente contra pessoas trans. Considero essa uma violência política de gênero no contexto em que estou inserida.

MC A vereadora Benny Briolly (PSOL) precisou sair do país após sofrer ameaças de morte. Passou pela sua cabeça sair do país ou deixar a política?
EM
Assim que entrei na Alesp, precisei mudar de casa pois eu recebi um e-mail descrevendo toda a minha casa, o meu apartamento, a porta de entrada. E logo que fui eleita, conversei com muita gente, principalmente lideranças negras, mulheres negras mais velhas e elas foram muito enfáticas e categóricas na discussão da minha proteção e segurança pessoal. Desde o início procurei estabelecer junto com a equipe um protocolo de segurança pessoal nas redes, de não acionar certos lugares na rede.

MC Qual é a sua avaliação a respeito da gestão do presidente Jair Bolsonaro no que diz respeito às populações mais vulneráveis, como a população trans, a carcerária, as mulheres e as pessoas pretas?
EM
Não tem gestão para isso. O governo federal tem implementado uma política de perseguição aos povos originários, à população quilombola, o que denota nitidamente a prática de um Estado racista. Em relação às pessoas trans não há nenhum suspiro, nenhuma fala. Não existem políticas públicas para as populações vulneráveis, exceto as mulheres cisgêneros que de alguma forma adentraram, a partir de lutas históricas, o reconhecimento de algumas vulnerabilidades. Mas numa gestão como a de Bolsonaro, essas vulnerabilidades só são acolhidas de forma ideológica e moralista, que não compreende o corpo dessas mulheres como corpo emancipado, mas como um corpo que deve ser controlado pelo Estado.

MC Tivemos números expressivos de eleição de mulheres trans nos últimos pleitos. Como você explica esse acontecimento?
EM
Fui eleita como primeira parlamentar transsexual do Brasil no mesmo cenário que Bolsonaro emergiu. Nenhuma violência finaliza em si mesma, mesmo quando há morte. A violência é devolvida. Existe uma oposição aos desmandos, à negatividade trazida por Bolsonaro. Eu me considero um exemplo naquele momento. A pergunta que faço é: quando isso vai se materializar em um cargo do Executivo?

MC Essa seria uma vontade sua? Pleitear a prefeitura?
EM
Não penso sobre isso, penso em cumprir com a responsabilidade que eu fui eleita para fazer e vou pensando a conta-gotas nesse sentido. Não vejo nem cenário para que haja uma legislatura a chefe do Poder Executivo sendo uma mulher trans no nível de conservadorismo que está.

MC E como vê a gestão do governador de São Paulo, João Doria, em relação à pandemia?
EM
De forma geral, é uma gestão ineficaz para resolver os problemas que São Paulo tem hoje. Não vejo nenhum sinal ou avanço no que diz respeito a questões como o transporte público e saúde. Não se vê nenhuma sinalização quanto ao rompimento da fome e da população em situação de rua. Eles não combatem estruturalmente o problema. E temos que falar que tem também um grupo político que toma conta de São Paulo há décadas e que nós enfrentamos problemas iguais ou parecidos de 15, 20 anos atrás. Administrar a pandemia significa ir além do lockdown, deveria vir junto de um apoio aos trabalhadores que ficaram sem trabalho, não era só a questão da vacina. Ele cumpriu uma responsabilidade importante em tomar a frente disso, mas vale dizer que ele queria privatizar o Instituto Butantan. É uma sorte que temos o Butantan a serviço do Estado neste momento.

MC Você costuma dizer que o racismo não é um recorte, mas um fundamento. Você acha que é possível uma reparação diante de violências históricas? Se sim, como seria?
EM
A reparação é urgente e diz respeito a políticas afirmativas, como cotas, política de redistribuição de renda, basicamente o eixo da reparação econômica e de escolarização. Após a assinatura da Lei Áurea, não houve nenhuma política de reparação, muito pelo contrário: foi uma política de falsa abolição, de aprofundamento das exclusões, dentro de uma suposta ideia de liberdade, empurrando as pessoas negras para as periferias, um Estado construindo legislação para prender pessoas negras, mesmo que elas não estivessem fazendo nada. É preciso fazer reparações porque se não houver isso, dificilmente o país vai olhar para o corpo de uma pessoa preta, de uma pessoa trans e não achá-las suspeitas, uma vez que a maioria da população negra está contingenciada a todas vulnerabilidades possíveis.

MC Sobre mulheres na política, como você vê essa questão de equidade de gênero dentro do seu partido? O PSOL é um partido que na base dá lugar de igualdade para todo mundo?
EM
A análise que eu faço é que o PSOL é um partido onde estão presentes todos esses discursos que reivindicam a destruição das violências. Ali você vê muitas parlamentares pretas, travestis, trans, LGBTs, então observo que é um partido que está em movimento e tomando para si essa disputa interna.

Erica Malunguinho (PSOL-SP) é a primeira deputada trans do Brasil (Foto: Arquivo pessoal)

Erica Malunguinho (PSOL-SP) é a primeira deputada trans do Brasil (Foto: Arquivo pessoal)

MC Você disse recentemente que se sente programada para reagir contra a violência racial, inclusive diante da presença da polícia. E fez uma pergunta sobre o que pessoas pretas fazem quando não precisam pensar no racismo. É possível se projetar para fora desse pensamento constante?
EM
Estou programada para me proteger das violências verbais e de todas as atitudes transfóbicas e racistas, mas busco meu lugar de humanidade. Como diz a nossa mestra Sueli Carneiro: ela é inegociável. Então tento construir esses lugares em que eu possa viver, tecer, dialogar, criar utopias, onde eu não precise pensar na transfobia, no racismo ou na xenofobia. O Aparelha Luzia é um exemplo desses lugares.

MC Você ficou também conhecida pela sua imagem com a moda. Pode nos contar sobre a sua relação com o que veste? E o impacto disso em seu trânsito pela Alesp.
EM
Comecei minha vida como artista com 16 anos, eu estava fazendo intervenções de arte e moda, discutindo gênero e sexualidade em Recife. Eu e meu grupo sempre entendemos o vestuário como aquilo que a moda diz ser: que é comportamento. E sempre entendi o vestuário como algo importante na informação que você precisa negociar com o mundo. E antes disso teve um processo de ter uma mãe que estava sempre muito arrumada, impecavelmente arrumada.  Ela entendia que o vestuário dela era a negociação dela em relação aos lugares que ela frequentava de trabalho etc. O vestuário significa uma coisa de negociação social para a população negra. Nos espaços de sociabilidade há uma obrigatoriedade que a gente esteja impecável, caso contrário você será colocada como suspeita ou não terá o respeito que precisa.E na Alesp isso não poderia ser diferente, inclusive estou num exercício muito interessante de me descolar da austeridade do vestuário, quero ousar mais.

MC Quais considera terem sido suas maiores vitórias em dois anos na Alesp?
EM
Foram quatro momentos. Quando intercedemos junto ao Ministério Público no caso da criança que foi capturada da mãe quando estava fazendo iniciação no Candomblé e o conselho tutelar tirou essa criança do processo litúrgico, a mãe perdeu a guarda. A atuação do Ministério Público não só agiu nessa situação, mas atuou para dar jurisprudência para que situações como essa não voltassem a acontecer. Foi um marco contra o racismo religioso. Outra coisa foi quando conseguimos que mulheres trans pudessem ser atendidas nas delegacias para mulheres. Quando conquistamos a gratuidade do bom prato para pessoas em situação de rua, isso foi maravilhoso. E quando derrubamos o PL 504 [projeto que proibia a publicidade com pessoas LGBTQIA+]. Nunca na história do país o poder privado se manifestou em relação à pauta política desse jeito. Fizemos uma parada LGBT fora de época. Foi um feito histórico.

MC E os maiores desafios nesse tempo?
EM
O desafio é constante, é permanecer de pé, firme, mesmo sendo constantemente atravessada por violências de Estado. É existir tendo que resistir tanto.

MC Quais pessoas LGBTQIA+ na política que admira?
EM
Jean Wyllys. Ele teve um papel fundamental dentro de um momento histórico e político do país, onde não havia reverberação da discussão da pauta LGBT. Ele é também o primeiro que traz esse debate para a esfera pública. E por toda a resistência e intelectualidade. Eu poderia falar da Marielle também. Ela trouxe isso e trouxe a dimensão de raça junto e o discurso da periferia. São dois momentos importantes para a insurgência LGBT na contemporaneidade.