• Larissa Saram
  • Colaboração para Marie Claire
Atualizado em
Obra Brazil, de Santarosa Barreto (Foto: Divulgação)

Obra Brazil, de Santarosa Barreto (Foto: Divulgação)

Um neon cor de rosa onde se lê ​​"Are you Brazilian? Oh I love Brazilian Women". Há grandes chances da obra "Brazil", exposta no MASP em 2019 como parte da mostra "Histórias das mulheres, histórias feministas" ter aparecido em algum momento na sua timeline. Além da cor e brilho magnéticos, com potencial instagramável, a reprodução fotográfica do trabalho da artista Santarosa Barreto se espalhou porque gerou uma identificação entre as mulheres que já tiveram a oportunidade de viajar para fora do Brasil ou foram apresentadas a um homem estrangeiro por aqui mesmo.

A frase, que em português significa "Você é brasileira? Oh Eu amo as mulheres brasileiras", é frequentemente usada por gringos que nos associam estritamente ao sexo fácil e descompromissado. Resumindo: um típico insulto fantasiado de cantada – e, muitas vezes, o start para a prática de importunação sexual.

"Criei esse trabalho em 2016, durante uma residência artística em Paris que recebe gente do mundo inteiro. Logo quando cheguei, incomodava o jeito esquisito que os homens olhavam para mim após descobrirem da onde eu era. Eles me falavam em tom elogioso, como se fosse uma coisa legal, mas era ofensivo. Estavam resumindo a minha existência a um estereótipo que toma o nosso corpo como algo público", conta Santarosa Barreto sobre o ponto de partida para desenvolver a obra "Brazil".

"Enquanto fazia as minhas pesquisas, postava algumas anotações no meu Instagram. Quando publiquei sobre esses comentários que ouvia, muitas seguidoras se identificaram. E a coisa fica pior se você é negra, trans. Entendi que era um assunto que deveria ser debatido de alguma forma."

A artista paulistana tem razão. Ainda há poucos dados oficiais sobre a importunação sexual contra brasileiras no exterior, mas os relatos assustadores postados em comunidades online são uma amostra de que é preciso falar mais sobre como a estereotipação pode enveredar por caminhos perigosos.

Relato postado no perfil @elasnaosecalam (Foto: Reprodução )

Relato postado no perfil @brasileirasnaosecalam (Reprodução )

O projeto "Brasileiras Não Se Calam", por exemplo, que nasceu com o objetivo de apoiar quem já sofreu algum tipo de assédio, discriminação e xenofobia fora do território nacional, apontou em um relatório anual que, entre julho de 2020 e julho de 2021, mais de 800 mulheres foram alvo de algum tipo de preconceito, humilhação ou violência em países como Portugal, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos.

No perfil do grupo no Instagram, há histórias chocantes envolvendo formas diferentes de abusos que partem da objetificação e sexualização do corpo feminino.

Uma maneira mais segura de existir

Em 2008, a advogada Suzana L.* viveu uma experiência que até hoje lhe causa mal estar. Ela morava em Londres e estava noiva de um irlandês que trabalhava como diretor de um importante hotel da cidade. "Fui visitá-lo no trabalho e engatamos uma conversa com um cliente que ia com frequência ao bar do hotel. Meu noivo precisou sair por um momento e mantive a conversa com esse convidado. De repente, o cara enfiou a mão por baixo da minha saia, apertou a minha coxa e disse que tinha tido uma namorada brasileira que havia feito um ótimo trabalho. E que eu também devia estar fazendo um bom trabalho para o meu noivo querer casar comigo. Foi horrível! Queria gritar, chorar, xingar, mas só tirei a mão dele de cima de mim e fui embora."

Depois do episódio, Suzana diz que ficou deprimida e se sentia pouco confortável em falar em que país tinha nascido para desconhecidos: "Como minha família é italiana, preferia dizer que era também. Era uma forma de evitar qualquer tipo de aproximação", conta.

Mentir sobre a nacionalidade também foi a forma que a escritora e professora universitária Dia Nobre encontrou para se proteger durante uma temporada morando na Itália. "Em 2013, fiz parte do doutorado em Roma e morei lá durante 1 ano. Passei por várias situações desconfortáveis. Alguns italianos me perguntavam se eu fazia – e às vezes até pediam para ver – a ceretta alla brasiliana, em português 'depilação brasileira', que é como foi batizada a técnica que tira todos os pêlos íntimos. Durante um tempo, deixei de falar de onde era porque conhecer pessoas no cotidiano era muito chato", relembra.

Na rua, foram incontáveis os episódios em que ouviu cantadas de cunho sexual. Certa vez, foi agarrada por um sujeito que identificou seu sotaque:  "Estava falando em português com um amigo no telefone e, quando desliguei, esse homem apareceu e me segurou. Ele disse 'vamos ali comigo'. Fiquei assustada, falei que não tinha nada e sai correndo, sem nem olhar para atravessar a rua. Era fim de tarde, no centro da cidade, se ele me levasse para trás de algum prédio, ninguém iria ver".

A escritora foi vítima de importunação sexual em outros países também, como México e França. Experiências que ela transformou em poesia e estão no livro independente "No útero não existe gravidade" . "Emprestei as minhas memórias para a personagem e as ficcionalizei com metáforas. Foi a forma que encontrei de elaborar as situações que vivi e com as quais não consegui lidar", diz.

E de onde vem essa ideia de que a mulher brasileira adora ser paquerada e está sempre a fim de sexo? A resposta para essa pergunta começa com a chegada das caravelas portuguesas e se estende pelo atravessar dos séculos. A professora, curadora e pesquisadora responsável pelo verbete que acompanhou a obra de Santarosa Barreto no MASP, Talita Trizoli, explica que a erotização dos corpos brasileiros no imaginário internacional masculino possui raízes coloniais, uma vez que eles nos enxergam como um território a ser explorado.

"Creio que é possível dividir essa relação de apropriação do corpo feminino em pelo menos dois momentos: o primeiro, ocorreu durante o processo de invasão e ocupação portuguesa, um período em que o corpo de mulheres indígenas e negras era tratado como força de trabalho e válvula de escape do desejo. E dando um salto temporal, temos as construções da identidade brasileira no exterior no pós-guerra do século XX, onde a política de boa vizinhança com os norte-americanos e as relações diplomáticas da Era Vargas foram fomentadas com a mulher brasileira sensual, dócil, sendo a mulata o símbolo desses elementos", detalha Talita.

Fazer um olhar de gênero sobre esses dois pedaços da nossa história nos conduz para essa ideia persistente da hipersexualização e que persegue como um estigma qualquer uma de nós que passe pelas fronteiras. Talita completa: "Acrescentemos a isso dados de classe, raça e as variantes das subjetividades dissidentes, e o matiz se acentua".

Maria Badet, especialista em imigração, meios de comunicação e gênero, presidenta da Casa da Gente e coordenadora da Revibra Espanha, rede de enfrentamento à violência contra a mulher na Europa, ressalta a responsabilidade da mídia, ao longos dos séculos, no reforço desse conceito nascido da época das colônias. "A EMBRATUR, antiga agência que promovia o turismo internacional, por exemplo, durante anos difundiu a imagem das brasileiras associado ao erótico, com fotos delas quase sempre nuas. Somente entre 2004 e 2005 que foi feita uma mudança de proposta de publicidade", relembra.

Morando na Espanha há mais de dez anos, ela afirma que ainda hoje a transmissão das imagens do nosso governo deixa de lado nossos patrimônios culturais e foca na beleza feminina - e nesse escopo entra também a questão do Carnaval. "Fiz uma análise de conteúdo midiático que circula por aqui quando chega a época da festa e identifiquei que as notícias sempre são ilustradas por fotos de corpos de mulheres. Uma contribuição importante para que os estereótipos perdurem", diz

Assim como Talita, Maria Badet destaca o quanto a interseccionalidade aumenta as probabilidades de serem cometidas violências nascidas desse ideal: "Se você for uma imigrante, racializada e transexual, a carga de preconceitos é maior, e com eles, as chances de sofrer violências também. É uma soma do estereótipo com a discriminação, que muitas vezes não aparece no discurso, mas é visível na prática, nas relações, na maneira de olhar e se portar".

Relato postado no perfil @brasileirasnaosecalam (Foto: Reprodução)

Relato postado no perfil @brasileirasnaosecalam (Foto: Reprodução)

Desconstrução em curso

Ressignificar o que é ser mulher brasileira no exterior para, assim, diminuir os índices de assédio e outras violências, é, claro, um processo longo, mas que já está em curso. "Temos uma diáspora no exterior que trabalha para mostrar que o Brasil é mais que samba, mulher gostosa e pelada por meio de manifestações culturais. As interações sociais que se fazem com as comunidades locais contribuem na contramão do estereótipo", diz Maria Badet.

A obra "Brazil", de Santarosa Barreto está pronta para viajar e ser usada como ferramenta nessa discussão sobre a importunação sexual fora do Brasil. Ela fará parte da mostra "Oh, I Love Brazilian Women", que ficará em cartaz a partir de janeiro de 2022 na Apexart, em Manhattan, Nova York, e reunirá trabalhos de artistas brasileiras que tratam da objetificação do corpo feminino.

A curadora responsável, Luiza Testa, conta que suas experiências pessoais, aliadas a um incômodo pontual, contribuíram para a realização da mostra: "Fiquei chocada com uma fala do Bolsonaro há uns dois anos, de que quem quisesse vir para o Brasil para fazer sexo com mulheres, era para vir com tudo. Foi agressivo demais e mexeu comigo. Não pretendo retratar todas as brasileiras, seria impossível, mas estou trazendo uma fração do que é a mulher brasileira com todas as complexidades que essa questão traz".

Para a ela, a exposição se propõe a investigar parte de por que ainda ocupamos o imaginário masculino estrangeiro a partir da linguagem sexual. "Vou dar ali algumas hipóteses. Uma delas é em relação ao controle do corpo. Quando atribuímos uma função à mulher, seja esta para casar, aquela para dormir, controlamos todos os outros papéis da mulher na sociedade. Estamos sempre na tentativa de escapar desses lugares em que fomos colocadas."

Se você for vítima de algum tipo de violência sexual fora do país, denuncie e busque ajuda. O 180 Internacional pode ser acionado e está disponível em 16 países. Há ainda redes de apoio no exterior que oferecem apoio psicológico e orientam como reportar o ocorrido para as autoridades.

Maria Badet, que atua na área, ensina alguns caminhos: "A gente não pode se calar nunca frente à violência. Na Espanha e na Europa, temos a Revibra. E se estiver em um país em que não encontre informações, entre em contato com Casa da Gente, que seja onde seja, tentaremos buscar uma rede local para dar o suporte necessário".

Esta matéria faz parte do especial de Marie Claire sobre as variadas formas de assédio, que pode ser acessado em revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/Assedio. O canal tem todas as reportagens abertas, sem paywall, com o apoio de L’Oréal Paris.