• Clarice Cardoso
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Bella Camero em cena do longa Marighella, de Wagner Moura (Foto: Divulgação)

Bella Camero em cena do longa Marighella, de Wagner Moura (Foto: Divulgação)

Quando decidiu se mudar para São Paulo, Bella Camero tinha em mente o que queria para sua carreira de atriz: ia escolher projetos cujas histórias ressoassem junto ao público. Naquele 2017, embarcou em dois projetos: “Urubus”, que acaba de vencer o prêmio da crítica na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; e “Marighella”, que tem batido recordes de público desde a estreia nacional, no último dia 2. Reconhecimentos que falam por si só.

“Foi um momento em que botei muita energia nisso, eu queria juntar o meu trabalho com as minhas ‘armas’, que são meu corpo e minha voz”, disse à Marie Claire.

Não que essa mesma potência não se visse em trabalhos anteriores. Conhecida pela atuação em "Malhação", ela deu vida a grandes jovens e mulheres também em "Magnífica 70" e "Confissões de Adolescente". “O que eu sei fazer é jogar luz sobre histórias que eu quero contar. Tanto ‘Marighella’ como ‘Urubus’ são um aprofundamento em histórias silenciadas.”

O belo filme de estreia de Claudio Borelli retoma um episódio de 2008 quando um grupo invadiu a Bienal Internacional de Artes de São Paulo e pichou as paredes do segundo andar do pavilhão. Bella interpreta Valéria, uma estudante de arte que cruza o caminho de Trinxas (Gustavo Garcez), o que os levará à ação na 28ª Bienal.

“Normalmente, as pessoas vêm o pixo como algo feio, mas entendi que é, na verdade, a expressão de uma voz que é continuamente silenciada, uma maneira de gritar pelos muros altos da cidade que estamos aqui, estamos vivos. O pixo é mais do que um spray na parede, é a voz de muita gente”, conta a atriz.

Logo viria o projeto “Marighella”. O longa de Wagner Moura narra as ações do ex-deputado, poeta e guerrilheiro Carlos Marighella, interpretado brilhantemente por Seu Jorge, ao liderar um grupo de jovens da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de orientação comunista que atuou na década de 1960. Nisso, surge Bruno Gagliasso como o inspetor Lúcio, inspirado no delegado Sérgio Fleury, em sua caçada marcada por tortura e violência para eliminar Marighella e seus aliados.

Bella dá vida a uma jovem companheira de luta de Marighella que deixa o conforto de uma família de classe média para se juntar à luta armada. “É uma personagem feminina muito forte e que condensa várias revolucionárias”, explica. O desafio de encarnar tantas mulheres em uma foi tomado com seriedade. “Mulher não é uma categoria universal, era isso o que eu precisava passar. Para isso, tenho de estar sempre ciente do meu lugar enquanto mulher branca, cis, LGBTQIA+...”, reflete.

Como parte de sua atuação com formação, Bella atua em conjunto com A Tenda das Candidatas, uma organização que atua para capacitar e formar mulheres, sobretudo negras, indígenas e LGBTQIA+ para a política. Em 2020, duas veradoras que participaram do projeto foram eleitas. A aula magna de lançamento foi realizada no último dia 4 com Anielle Franco e para 102 lideranças de todos os estados. 

"Leio muito, estudo e acompanho os movimentos sociais, sempre à frente do seu tempo. O feminismo é super importante, mas ele tem que ser continuamente atualizado para o contexto atual."

Bela Camero
Seu Jorge protagoniza longa sobre o ex-deputado, poeta e guerrilheiro Carlos Marighella (Foto: Divulgação)

Seu Jorge protagoniza longa sobre o ex-deputado, poeta e guerrilheiro Carlos Marighella (Foto: Divulgação)

Levar “Marighella” para as telas brasileiras foi uma tarefa árdua. Foram muitos os empecilhos e adiamentos da estreia -- um deles comemorado pelo filho do presidente e vereador no Rio, Carlos Bolsonaro (Republicanos), que comentou em seu Twitter à época: “Noutros tempos, o desfecho seria outro, certamente com prejuízo aos cofres públicos”. Diretor e equipe foram à imprensa denunciar: "Censura!"

Atualmente, quando o filme realiza exibições populares em parceria com movimentos como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) e o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), até o cardápio dos encontros se tornaram alvo de polêmica diversionista.

“Isso para mim é a reafirmação do quanto querem abafar a história”, crava Bella. “A gente é ensinado a escolher um lado, a eleger vilões e heróis, mas este não é um filme que quer defender Marighella ou a luta armada. A gente quer contar uma história para que as pessoas assistam e criem sua própria opinião. Só que é isso: um povo pensante é muito perigoso.”

Antes de chegar a seu próprio país, “Marighella” cumpriu uma extensa agenda por festivais internacionais. Em Berlim foi ostensivamente aplaudido de pé, em 2019, com placas e cartazes que remetiam também à vereadora Marielle Franco

"Foi muito duro ver essa tentativa de derrubar o filme, é uma tentativa contra a memória, contra um pensamento, contra um povo que tem opinião, contra, enfim, a nossa arte que quer ser motor e estímulo do pensamento. Há um projeto de alienação e apatia."

Bella Camero

Coincidentemente ou não, o filme tem encontrado novos obstáculos mesmo após de lançado: a falta de salas, especialmente nas periferias. “Marighella” chegou com uma semana de atraso à Baixada Fluminense (RJ) após pressão popular.

“É um escândalo privar os moradores da Baixada de assistir ‘Marighella’, o belo filme do Wagner Moura”, protestou em suas redes o biógrafo e jornalista Mario Magalhães. O roteiro é baseado em seu livro homônimo editado pela Companhia das Letras.

Após um tortuoso caminho e quase dois anos de medidas de restrição por conta da pandemia de covid-19, o filme já levou mais de 200 mil pessoas aos cinemas, um feito considerável considerando-se o momento ainda inicial de retomada gradual das atividades. Foi a melhor bilheteria nacional do ano, e o filme brasileiro mais visto em toda a pandemia.

Se o roteiro é por vezes binário, a fotografia, a trilha e as atuações não se furtam em explorar complexidades e ambiguidades no drama. Certamente, o maior trunfo do filme é jogar luz a um passado recente e encoberto, um passado em que não imperam a simplicidade ou a correção de condutas que hoje em dia parte do campo político exalta, avalia Bella.

“A gente sabe sobre a ditadura, mas sabe a versão de quem contou. Foi muito doloroso para as pessoas no filme entrarem em contato com isso, reviver essa memória que deveria estar sendo falada o tempo todo. Para mim, foi um mergulho dolorido, mas importante", lembra.

"Acho que querem que a gente se aliene, fique ali, pequena, apática, e o contato com essa história me trouxe uma demanda urgente e pulsante”, reflete Bella sobre o filme, que foi rodado antes das eleições presidenciais de 2018, mas dialoga de forma atualíssima com a conjuntura de sua estreia.

Ana Paula Bouzas e Bella Camero em Marighella (Foto: Divulgação)

Ana Paula Bouzas e Bella Camero em Marighella (Foto: Divulgação)

Nascida no Rio de Janeiro em 1992, a atriz cresceu em Belo Horizonte acompanhando das coxias a carreira da mãe, a atriz Dida Camero, no teatro. “Minha mãe me criou sozinha e me levava com ela quando estava em cartaz. Essa acabou virando minha profissão sem que eu reparasse. Quando vi, já estava vivendo”, conta ela, que mesmo assim chegou a começar um curso de Engenharia Ambiental. “Eu era uma criança que queria salvar o planeta”, brinca.

Já crescida, Bella vem ganhando notoriedade por interpretar personagens que querem justamente fazer o mesmo. “São jovens que não conseguem olhar para tudo e dizer: ‘Alguém tem que fazer alguma coisa, mas não eu'. Então esse é um convite que eu faço e que a personagem me fez como atriz: vamos levantar e reagir”, convoca.