• Paola Deodoro
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Cura, de Deborah Colker (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Cura, de Deborah Colker (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Deborah Colker está em busca da cura. Melhor. A coreógrafa e bailarina está em um processo de imersão tão profundo sobre os contornos entre a cura e a doença, que do universo de questionamentos e buscas nasceu um novo espetáculo. Cura começou a ser concebido em 2018, atravessou uma pandemia e estreia hoje, 25 de setembro, em uma transmissão ao vivo pelo Globoplay.

Envolvida pela doença genética incurável de seu neto Théo, de 11 anos, estabelece uma diálogo que envolve fé, ciência, maternidade, aceitação, respeito, discriminação. Para levar essa conversa para o palco, Deborah estabeleceu parcerias potentes como com o rabino e escritor Nilton Bonder, responsável pela dramaturgia, e Carlinhos Brown na concepção musical. Ela também percorreu caminhos geográficos. Foi a Moçambique, foi à Bahia, se encantou pela história do orixá Obaluaê, filho de Nanã, criado por Iemanjá. que abre o espetáculo, contada pela voz do próprio Théo.
Em uma intensa entrevista por zoom, Deborah faz questão de deixar claro que teve muito cuidado para não sofrer interferências da pandemia da Covid em sua criação: "A Covid tem vacina. Existem protocolos que você pode seguir. O que eu estou falando é de algo que não tem cura. Algo que não tem vacina. Está em outro lugar".

Debora Colker apresenta seu novo espetáculo: Cura (Foto: Cafi / Divulgação)

Debora Colker apresenta seu novo espetáculo: Cura (Foto: Cafi / Divulgação)

Marie Claire - Você está prestes a estrear Cura, um trabalho inspirado no seu neto Théo, que tem epidermólise bolhosa, uma doença incurável. Mas o Théo já está com 11 anos. Desde quando você pensa em criar algo inspirado em processos de cura.
Deborah Colker -
Desde a morte do Stephen Hawking, em março de 2018. A chave virou para mim. Eu vi nos jornais do mundo todo e fiquei pensando muito. A morte dele me chamou atenção para a vida dele. Gente, era para esse cara ter morrido com 24 anos e ele viveu até 70! Ele viveu mais 50 anos, escreveu livros, teorias, se comunicou com códigos. Um cara genial, com uma doença horrível, todo troncho, só mexia uma pálpebra. Ele inventa um programa de computador para se comunicar através da pálpebra. Se separou da mulher, casou de novo com a enfermeira. E a gente aqui dizendo que o cara não tinha cura. Isso é cura! Foi isso que me aconteceu. A cura existe. Eu passei o tempo inteiro buscando a cura para o Théo e ouvindo todo mundo me dizer que não tinha cura. Eu já tinha sentido isso com Cão Sem Plumas. Você vai para o Nordeste, interior de Pernambuco, e pensa: isso é inadimissível. Cadê o respeito, a dignidade da vida? Mas são pessoas, são guerreiros, que moram naquele lugar e são apaixonados por aquele lugar. Trabalham em regime de escravidão. É inominável! João Cabral de Mello Neto escreve sobre isso em 1950. Nós estamos quase em 2022 e as pessoas querem falar sobre o novo normal… Vai à merda! Eu vi aquilo tudo, aquela lama, e pensava onde está a vida? Por que as pessoas estão vivas, felizes? Por que tanta gente com doença rara está viva? A cura está em diferentes situações. Eu ficava assistindo as Paralimpíadas agora e um jornalista perguntou sobre superação. E o atleta falou: como assim superação? Eu treinei feito um louco, isso é o meu trabalho. Então é um outro olhar. Para a gente realmente mexer na essência da discriminação e da inclusão a gente tem que mudar o nosso olhar, o nosso pensamento. Eu tive essa oportunidade. Sempre me achei uma pessoa liberal, uma artista, gosto das misturas, acho a falsa normalidade um saco. Mas você só entende o que é discrimação quando acontece com você.

Marie Claire - Até então você nunca tinha pensado em colocar a história do Théo no seu trabalho?
Deborah -
Não diretamente. Cão Sem Plumas já traz a minha indignação, a minha revolta com as situações. Mas foi bacana porque Cura, no lugar de eu ficar tão raivosa, ele me pega mais pela dualidade. Eu trago neste espetáculo a história do orixá Obaluaê, que é o orixá da cura e da doença. Então eu estou um pouco nesse clima de que você tem que gritar, mas tem que calar. Tem que agir, mas tem que esperar. Às vezes tem que aceitar, mas tem horas que não precisa aceitar nada. A ciência é minha parceira, mas ela demanda paciência, vontade política, situações econômicas. Então você tem que se fortalecer de outras maneiras. Com a dança, com a música, com a poesia… Para você ter paciência você precisa lutar. Lutar com você mesmo. A paciência não significa ficar ali, quietinha, bicho-preguiça. Não! Ela é ativa!

Cura, de Deborah Colker (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Cura, de Deborah Colker (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

MC - Você começou a criar este espetáculo em 2018. Mas no meio do processo, o mundo acabou - como disse o seu parceiro de criação, o rabino Nilton Bonder. A pandemia da Covid-19 alterou de alguma maneira o formato do seu trabalho? Tem pandemia em Cura?
Deborah -
Não. Absolutamente. Eu tive muito cuidado para não criar interferências porque a Covid tem vacina. Existem protocolos que você pode seguir. O problema que nós temos é a pessoa que está no poder desse país. Mas se você colocar a máscara, se não aglomerar, se tiver um controle, a gente vai conduzindo para um fim. O que eu estou falando é de algo que não tem cura. Algo que não tem vacina. Está em outro lugar.

Cura, de Deborah Colker (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Cura, de Deborah Colker (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Marie Claire - As suas criações sempre têm elementos cênicos fortes, quase uma assinatura de cada trabalho. Pensando nos seus espetáculos, a gente sempre lembra de uma roda, uma parede de escalada, uns vasos...Qual foi a primeira imagem que você imaginou quando pensou em Cura?
Deborah -
Tem a coisa da pele. Então tem uns movimentos com uns tecidos, umas bandagens, como uns curativos. Tem pessoas que precisam fazer curativo todos os dias, para o resto da vida. Quando você faz uma coisa todo dia, isso se transforma em uma dança. Você se apropria daqueles movimentos. Cada um tem o seu cotidiano, escovando os dentes, penteando o cabelo de uma maneira. As coisas que você precisa fazer é a sua própria dança. Esse espetáculo é muito delicado. Ele é grandioso, mas ele é muito pequeno. Tanto é que ele parte de uma coisa minha, mas ele não é meu! Eu fui para a Bahia, eu fui para a África. Eu sou uma criadora de espetáculos. Eu preciso transformar tudo em imagem, em corpo. Tudo começa no corpo. E aí eu pensei sobre o que o ser humano precisa para proteger o seu corpo. E aí me veio o curativo. Curativo vem de curar mesmo. Então esse foi um caminho. O outro foi Obaluaê. O que Iemanjá faz para proteger o Obaluaê? Ela cobre o corpo do menino de palhas. Então essa é uma outra imagem forte aqui. Uma outra coisa é que para conseguir a cura a gente tem que ter o direito de pedir. Mesmo que não tenha cura, você tem que pedir, ter fé. E eu construí um lugar de fé para mim. Então eu construí esse muro, com essas caixas que estão todas enfaixadas também. É como se tudo precisasse de proteção. Também construí umas rampas, porque quando você está doente, está em outra dimensão.A doença gera uma outra situação gravitacional, outro equilíbrio. E aí tem uma canção do Leonard Cohen, "You Want It Darker", que eu tinha que trazer. No início do nosso processo, o Bonder se vira para mim e fala: Deborah, você sabe qual é a grande cura, né? É a morte. Eu fiquei chocada. Não é possível! E é a única coisa que a gente sabe que a gente tem na frente. Esse caminho iluminado, de como você vai receber isso, é a grande história. O que aconteceu, na verdade, é que esses personagens me conduziram. O Théo, o Obaluaê, o Stephen Hawking, Jesus e Leonard Cohen me levaram, me conduziram para as bandagens, para as rampas, para as palhas, para as caixas. Então esse espetáculo tem um significado, ele é quem comanda. Eu não fiquei pensando que queria fazer uma coisa espetacular. Não. Quando eu fui falar dos doentes eu precisei de um espaço inclinado. Quando eu fui falar do orixá, eu precisava cobrir os bailarinos para que eles pudessem se tornar esses Obaluaês. Para conseguir falar da pele, da cura, eu precisava das bandagens. Então fui caminhando de acordo com a dramaturgia. Há algum tempo a minha composição estética é comandada pelo significado, por o que eu quero dizer ali.

Cura, de Deborah Colker (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Cura, de Deborah Colker (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Marie Claire - Você já conhecia a história de Obaluaê? Pois o tipo de doença parece ter uma proximidade com a do Théo. A questão da pele, das marcas. Em qual parte do processo de criação essa história chegou em você?
Deborah -
Essa história chegou para mim em 2019, já estava trabalhando há um ano e meio neste processo. Eu fui para a Bahia e encontrei o Zebrinha, coreógrafo maravilhoso do Balé Folclórico da Bahia. A gente foi primeiro para a África, para Moçambique, e direto de lá a gente foi para a Bahia. E eu tinha combinado com o Zebrinha de fazer umas aulas com ele, lá na sede dele, no Pelourinho. Ele perguntou o que eu queria, por onde a gente começava, e me ofereceu mostrar a dança dos orixás. Aí ele ficou ensinando Oxum, Ogum, Oxalá, os gestos de cada orixá. E aí no meio da aula ele começou a contar a história de Obaluaê. Quando ele começou eu fiquei de boca aberta. Ele foi mostrando os movimentos. Eu olho, eu vejo, eu escuto, eu falo a cura. Quando terminei, eu sentei do lado dele e falei: Zebrinha, eu tenho uma história que toca com essa aí. Pedi para ele gravar essa história, eu fiquei com ela guardada, meio sem saber o que fazer. E o engraçado é que eu tinha chamado o Bonder, desde 2018, e a gente leu milhões de histórias antigas, incríveis. E eu ali vendo com quais eu iria trabalhar. Mas o meu processo de criação sempre é longo, tem muita improvisação, muita composição, muitas viagens, muitos livros, muitos filmes, sempre. Aí de repente me vem essa história! Fiquei com ela guardada um tempo, mas um dia eu mostrei para o Théo, contei a história para ele. Outro dia eu fui colocar ele para dormir, ele gosta de histórias de terror, mas aí eu falei: Lembra aquela história que eu te contei, que te mostrei aquela gravação? Está aqui o texto. Fala aí. E então ele falou e eu gravei a narração, mas totalmente sem saber. Quando o Théo gravou eu falei para o Bonder: acho que eu encontrei a história! É lindo porque tem a questão da rejeição e da adoção. A Clara, minha filha, veio para mim e disse: Imagina, essa história não é minha! E eu falei para ela que ela é Nanã e Iemanjá, as duas. Toda mãe tem esse processo de rejeição com o filho. Proteção extrema e rejeição, é normal. Isso independe se nasce com doença rara ou não. Então é bonito porque é uma história de rejeição, de aceitação, de adoção. Iemanjá olha o bebê, cheio de marcas, na beira do mar, e acha ele lindo. É isso!

Marie Claire - E sobre a África. Você foi para Moçambique e viveu experiências de uma dança muito orgânica. O que você viveu lá e trouxe para o seu trabalho, o movimento, a fluidez, a relação com a dança?
Deborah -
Eu trouxe canto e dança, né? Uma coisa inédita para a gente. Então veio todas essa vontade de fluidez, de naturalidade. Mas eu também trouxe dois bailarinos/cantores de lá. Eles ficaram três meses aqui comigo. Então a gente trocava aula de dança contemporânea por aula de Ifé, movimentos, cantos, foi uma residência mesmo. O ritmo deles é uma coisa inacreditável. A maneira como eles pisam no chão. A Companhia ficou com eles três meses, batendo aquele pé, fazendo aquelas aulas, aprendendo, se movimentando. Foi bem bacana. Eu queria muito ter levado a companhia para lá, mas seria impossível. Foi o melhor caminho ter trazido eles. Foi uma experiência incrível. Para gente e para eles. Eles fizeram aula na escolha, foi demais. E assim é, vou contar isso pela primeira vez, só para você: em 2019 a gente teve um espetáculo em São Paulo, acho que o Vero ou o Rota. Repertório da companhia mesmo. E eu botei eles para dançar no espetáculo. Loucura! Eles são bailarinos, mas tem outra base, principalmente de dança contemporânea. Então foi um negócio ali, foi demais.

Marie Claire - E ninguém percebeu? Teve diferença aparente entre as performances?
Deborah -
Ah, eu sei fazer essas coisas! A galera fica falando da minha companhia, que tem uma técnica impecável e tal. Um é de dança de rua, outro de balé clássico, outro de dança contemporânea... E ninguém sabe, ninguém sente. Eu faço todo mundo virar rei, imperador no palco.

Cura, de Deborah Colker (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Cura, de Deborah Colker (Foto: Leo Aversa / Divulgação)

Marie Claire - Então, este rigor técnico que o público sente exige muito ensaio, muito treino. Como vocês fizeram para ensaiar durante um ano e meio para um espetáculo novo durante uma pandemia?
Deborah -
Foi intenso. Em março ficamos de férias. E depois de abril até meio de agosto a gente ficou com aulas no Zoom. Também foi o período em que a gente fez as músicas, eu com o Carlinhos Brown, os ritmos, lembrando os detalhes. Em setembro a gente voltou para a companhia três vezes por semana, horários reduzidos, máscara, álcool, não pega transporte público, todo o protocolo, tentando sobreviver. Aí em janeiro de 2021, sem patrocínio, perdemos Petrobrás e ninguém queria saber de nada enquanto nada se definia. Eu achei que a companhia ia acabar, vai quebrar. 2020 foi desesperador. Aí em janeiro a gente começou a entender o que dava para fazer e começamos a voltar, se reestruturar. Comecei com nove bailarinos, depois 11, agora são 13. Em março a gente conseguiu a Cidade das Artes, onde vai ser a temporada. Mas já começamos a ensaiar lá, porque os espetáculos são complicados, né? Coloquei o cenário, Só que as datas mudaram e eu voltei para a companhia. Eu ia estrear em Londres, depois ia estrear no Municipal em não sei quantas datas… Então eu fui para a Globoplay, porque eu precisava estrear. E aí eu entendi que bacana, porque vai democratizar. Estão querendo aniquilar a cultura e a educação neste país. Então a Globoplay é sinal aberto, público gigante. Mesmo sem pandemia, tem muita gente que conhece a companhia, mas que não vai ver. Me param na rua, conhecem da televisão, elogiam sem nunca ter visto. Então, que bom! Agora vai um espetáculo inteiro, ao vivo, para a televisão. Super bem filmado, 11 câmeras. E depois, em 6 de outubro, começa a temporada presencial. Mas estrear ao vivo assim, é bom demais. Eles têm uma contagem regressiva de 10 minutos. Fica tudo escuro e precisa estar tudo prontíssimo. 3, 2, 1, ao vivo, no ar!


+ Estreia ao vivo:
com sinal aberto da Globoplay, dia 25 de setembro, as 20h

+ Temporadas presenciais:
Rio de Janeiro - 6 a 30 de outubro, na Cidade das Artes 
São Paulo - a partir de 4 de novembro, no Teatro Alfa