• Carolina Camargo, de Nova York
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Quando criança, o sonho de Elza Andreatta, 95 anos, era ser bailarina. O pai, Vitorio, nunca deixou que ela fizesse uma aula sequer. Dizia que não era “coisa de moça direita”. Adolescente, Elza prometeu a si mesma que, assim que tivesse uma filha, a colocaria para estudar balé. Em 1965, chegou Monica. Quando a menina completou 4 anos, o desejo se realizou.

Nascida e criada em São Paulo, Monica foi inscrita na escola da professora italiana Carla Perotti, que ensinava a versão clássica da dança com o método da Royal Academy of Dance (RAD), de Londres. O que Elza não sabia era que estava não só oferecendo um futuro para a filha como influenciando o destino de mais de 200 crianças e adolescentes. “Minha mãe e minha tia Arley amavam balé, mas foram proibidas de estudar dança pelo meu avô. Viraram pianistas frustradas”, afirma a bailarina, coreógrafa, diretora e fundadora do Ballet Paraisópolis, que desde 2012 funciona na segunda maior comunidade da cidade de São Paulo, com 120 mil habitantes.

1 - Na 9ª avenida, da esquerda para a direita,Maria Daniela, Mariana, Ana Carolina, Giovana, Luiz Fabiano, a fundadora e diretora Monica Tarragó, Yasmin A., David, Geise, Yasmin S., Isabela e Kemilly; 2 - Da esquerda para a direita: No primeiro plano, Luiz Fabiano e Giovanna. 2. Da esquerda para a direita: No primeiro plano, Luiz Fabiano e Giovanna (Foto: Gigi Stoll)

1 - Na 9ª avenida, da esquerda para a direita,Maria Daniela, Mariana, Ana Carolina, Giovana, Luiz Fabiano, a fundadora e diretora Monica Tarragó, Yasmin A., David, Geise, Yasmin S., Isabela e Kemilly; 2 - Da esquerda para a direita: No primeiro plano, Luiz Fabiano e Giovanna. 2. Da esquerda para a direita: No primeiro plano, Luiz Fabiano e Giovanna (Foto: Gigi Stoll)

Antes de Paraisópolis, a professora chegou a montar um projeto no Jardim Cristal, ao lado de Interlagos. “Utilizava o espaço de uma creche pública para as aulas. A cada mês, o valor investido tinha de ser dobrado. Infelizmente, o local teve um surto de meningite e foi lacrado por um mês”, recorda. Moradora do Morumbi, teve uma outra ideia. “Abria a janela todos os dias e via Paraisópolis. Pensei: ‘Tenho que cuidar do meu entorno!’ Todos os motoristas, faxineiras e babás do Morumbi vêm de Paraisópolis, mas os moradores do bairro adoram falar mal da comunidade”. Em 2010, procurou Gilson Rodrigues, 35, presidente da União de Moradores. “Minha mulher [Juliana] sempre quis ser bailarina. Tínhamos uma vontade de montar uma escola de balé. Monica é um anjo que caiu do céu! Nossos sonhos se encontraram”, conta Gilson.  

Ensaio
Depois de aprender o método da Royal Academy, Monica rodou São Paulo em busca de outros mestres, como as brasileiras Ady Addor (1935-2018), Jane Blauth (1937-2012), Neyde Rossi, 81, e o argentino Ismael Guiser (1927-2008). Entre viagens, companhias de dança e turnês, Monica passou 12 anos lecionando no Portal do Morumbi para 120 crianças por ano em diversas turmas e faixas etárias. A rotina era puxada. Durante o dia, dava aulas. À noite e aos finais de semana, ensaiava e se apresentava com o grupo Trilha, de Flávia Goldstein. Foi então que a vontade de ter um programa social entrou em cena. Da ideia inicial à concretização foram dois anos. No começo, as aulas eram lecionadas em uma pequena sala dentro do próprio centro comunitário. Convencer os moradores que a dança é um caminho possível foi um desafio. “Para que ensinar balé em uma comunidade que não tem educação de qualidade, que não tem atendimento médico básico. Até hoje precisamos provar que a dança é uma profissão como outra qualquer”, diz.  

Atualmente, o Ballet Paraisópolis tem 200 alunos e mais de 2 mil nomes na fila de espera. Além das aulas de dança clássica e contemporânea, os jovens aprendem inglês, recebem dicas de nutrição e fazem fisioterapia. “Falo com um por um, todos os dias. Faço questão de ver os boletins da escola. Se alguém não vem, sou a primeira a ligar para saber o que está acontecendo.” O custo mensal do projeto é de R$ 50 mil. Só o aluguel da sede custa R$ 10 mil. Hoje, o Itaú é o patrocinador, mas a equipe ainda aguarda que o banco faça o aporte total do projeto pela Lei Rouanet até o final do ano.

Do número total de alunos, apenas 10 são do sexo masculino. Monica é constantemente procurada por meninos dizendo que adorariam fazer parte do projeto, mas que jamais teriam autorização dos pais. As participações no Festival de Dança de Joinville, o mais respeitado do Brasil, e o reconhecimento pelos prêmios recebidos fazem com que a situação avance. Este ano, David Rocha Santos, 15 anos, ficou em primeiro em Dança Contemporânea – Solo Masculino – Júnior. O grupo também ficou em primeiro lugar em Dança Contemporânea – Conjunto – Júnior. No ano passado, Luiz Fabiano Lima Dias, 13, conquistou segundo lugar na mesma categoria. “Monica está salvando a vida de cada criança que entra no Ballet. Está provando que é possível sonhar grande e, com dedicação, alcançar objetivos. O impacto é gigante. Mesmo que não se tornem bailarinos profissionais, essas oportunidades e experiências serão levadas para a vida”, afirma Gilson.

Além do preparo físico, qualidade de vida e benefícios para a saúde, a dança traz responsabilidade, organização, foco, disciplina e compromisso para o cotidiano dos alunos. Como parte do projeto, Monica também faz questão de reservar vagas para que crianças com deficiências frequentem as aulas. “Temos jovens cadeirantes e com Down. Desde o início, trabalhar a inclusão foi um ponto muito importante.”

Espetáculo 
Em um dos salões do hotel The Plaza, em Nova York, cerca de 400 pessoas observam 11 bailarinos se apresentarem durante o baile de gala da BrazilFoundation, que aconteceu no dia 12 de setembro. “Minha mãe era professora de balé e fiz aulas por muitos anos, quando visitei o projeto fiquei impressionada com o talento dos jovens bailarinos. Também me impactou saber da fila de espera”, relembra Patricia Lobaccaro, ex-CEO e presidente da fundação, que já arrecadou mais de US$ 40 milhões e apoiou mais de 600 organizações sociais de 26 estados brasileiros. 

Ballet Paraisópolis (Foto: Gigi Stoll)

Ballet Paraisópolis (Foto: Gigi Stoll)

Convidados pela organização neste ano, o grupo viajou especialmente para o evento, sendo anunciados como a grande atração da noite. Na cidade, os jovens puderam fazer aulas em renomadas academias de dança, como Alvin Ailey e American Ballet Theatre, além de conhecer escolas como a Juilliard. “Estão levando o nome de Paraisópolis para o mundo. A comunidade está orgulhosa!”, diz Gilson. No ano que vem, a primeira turma do Ballet Paraisópolis completa sua formação depois de oito anos de estudos. “Na comunidade, temos talentos ocultos, crianças que são o futuro. Precisamos reforçar nosso papel como agentes de transformação, trazendo arte, cultura e educação para Paraisópolis. Só com mais alternativas culturais é que se ajuda a evitar tragédias como a que aconteceu no Baile da 17”, desabafa Monica, que promete não deixar de sonhar.