• Adriana Ferreira Silva
  • Do home office
Atualizado em
Jup do Bairro (Foto: Isac Oliveira)

Jup do Bairro: a cantora fez questão de reunir uma equipe de sua quebrada para o ensaio de Marie Claire (Foto: Isac Oliveira)

Na adolescência, Jup do Bairro se deliciava com a reação dos vizinhos, que não conseguiam esconder o constrangimento quando ela lhes entregava um de seus fanzines e, ao folhear, eles davam de cara com imagens de pênis e vaginas ilustrando textos sobre corpo e sexualidade. "Eu era a caricatura da bichinha evangélica: timidinha, bochechinha alta. As pessoas abriam imaginando se tratar de um panfleto da igreja e, apesar da vergonha, ninguém tinha coragem de falar nada. Guardavam na bolsa. Foi assim que me entusiasmei em causar essa excitação nos outros", diz ela. Dessa época, Jup guarda as bochechas fofinhas, o jeito de boa moça e o dom de nos tirar da zona de conforto com provocações como o EP Corpo Sem Juízo, que a consagrou como cantora revelação no Prêmio Multishow em 2020. Com produção da DJ BadSista, o álbum traz um mix de metal, funk, rock com participações de Linn da Quebrada, da funkeira Deize Tigrona e do MC Rico Dalasam, entre outros, em letras que tratam de depressão, transformação e amor. Lançado graças a um financiamento coletivo, o disco arrebatou a crítica e foi celebrado por seus inúmeros fãs. "Mas não acho que fui capa de jornais, recebi elogios ou ganhei prêmios porque fiz mesmo o melhor disco do ano ou por ser uma revelação. Isso aconteceu porque ficou insustentável não falar de corpos como o meu", acredita.
 

"Começam a colocar a gente numa caixinha LGBT sem nem querer saber se fazemos rock, reggae etc. Daí, daqui um tempo, vão dizer que essa onda acabou"

Jup do Bairro

Jup tem razão. Como ela, artistas queer, trans e travestis –Pabllo Vittar, Majur, Liniker, Linn, Bixarte ou Tertuliana Lustosa– são onipresentes na mídia, sedenta por novidades. Mas, como a própria Jup destaca, é preciso atenção para não encaixar esta numa "tendência". "Começam a colocar a gente numa caixinha LGBT sem nem querer saber se fazemos rock, reggae etc. Daí, daqui um tempo, vão dizer que essa onda acabou." Fato é que, graças a essa visibilidade, uma novíssima geração tem referências antes inimagináveis. "Quando eu era criança, existiam a Vera Verão e a Lacraia, ambas com uma imagem pejorativa, da bicha preta engraçada. Era um exemplo, mas não para ser seguido", lembra Jup. "O Jorge Lafond era um ator incrível. A Lacraia, superdançarina, mas a ambos cabia exclusivamente a comédia. Hoje, recebo mensagens de pessoas dizendo que se identificaram com uma música ou uma fala minha. Por isso, é importante tratar de nossas dores tanto quanto das alegrias. Não faço música que começa pelo refrão e dura 15 segundos para viralizar no Tik Tok."

Do mix de experiências boas e outras nem tanto, Jup construiu a personagem que hoje chama a atenção por sua musicalidade, mas também por um pensamento afiado, bom humor e propósito. Essa paulistana de recém-completados 28 anos sabe, por exemplo, que é preciso trabalhar em coletivo para deixar um legado e alavancar uma cena. Por isso, fez questão de que as fotos que ilustram este perfil fossem feitas por uma equipe de parceiros de sua quebrada, o Valo Velho, na zona sul de São Paulo. Foi ali que, na adolescência, ela descobriu que a arte era uma licença para falar sobre seu corpo e tudo o que passava por sua cabeça. "Para mim, a questão de identidade de gênero veio antes da sexualidade. Eu entendia que tinha nascido num corpo errado. Como passei muito tempo frequentando a igreja, era um castigo. Eu era um anticristo."

Foi o pai de Jup, Celso Pires, quem primeiro a ajudou a compreender o que estava por vir. "Ele costumava soltar frases de efeito como 'não vai ser fácil ser quem você é' e 'procure ter calma porque, muitas vezes, as pessoas não vão estar abertas a te entender'. Mas só percebi o que ele dizia depois que ele morreu". Ao perdê-lo, aos 13 anos, Jup passou a escrever para desabafar.  "A arte me deu o aval para pintar as unhas, transicionar meu corpo, minhas falas, meu cabelo. Fazia tudo aquilo porque era 'artista'. Deixei de ser o Julio Cesar Lourenço Mata Pires, uma criança tímida, recatada, cristã, que não conseguia esboçar seus sentimentos, e passei a descrever o que estava acontecendo não só comigo, mas com todos ao meu redor", diz ela. A transformação, que teve início pelo fanzine, logo passou ao palco do Sarau do Valo, criado por Jup e amigos do bairro, onde ela primeiro apresentou seus poemas, acompanhada por um DJ.
 

"A arte me deu o aval para pintar as unhas, transicionar meu corpo, minhas falas, meu cabelo. Fazia tudo aquilo porque era 'artista'. Deixei de ser o Julio Cesar Lourenço Mata Pires, uma criança tímida, recatada, cristã, que não conseguia esboçar seus sentimentos, e passei a descrever o que estava acontecendo não só comigo, mas com todos ao meu redor""

Jup do Bairro

Graças a um vídeo de uma dessas sessões postado no Facebook, Jup recebeu o primeiro convite para se apresentar em uma ocupação no centro de São Paulo. "Eu tinha só três poesias, então, baixei umas bases no Youtube e, para engrossar o repertório, decorei a letra de três músicas", lembra ela. "Como eu não tinha computador, nem sabia o que era um pen drive, pedi emprestado de uma prima e levei, no ônibus, CPU e monitor. Quando contei que minhas músicas estavam ali, as pessoas me deram uma olhadinha sem saber se eu era ingênua ou se fazia parte da performance. Na dúvida, usei uma balaclava para não ser reconhecida depois caso desse tudo errado", lembra, rindo. Deu certo, e Jup foi convidada para ser mestre-de-cerimônias de um dos palcos da Virada Cultural, onde conheceu Linn da Quebrada, que se tornaria sua parceira em diversos trabalhos. Ela passou também a ser atração do então efervescente circuito de festas underground paulistanas, e fez fama por suas performances intensas, em que, por exemplo, simulava vômito com um líquido tingido por corante. "A galera tava ali de boa, curtindo Jorge Ben, e eu vomitando no palco!”, descreve. Nessa época, passou de Ju P. a Jup do Bairro, referência ao fato de ser a única a sair das festas e não pegar o ônibus sentido centro. "Acabou fazendo muito sentido com a minha história, porque é aqui no bairro onde me criei que me fiz, me refiz e me refaço."