• Natacha Cortêz
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Você sabe o que é passabilidade? A palavra é usada para dizer quanto uma mulher ou um homem transgênero “são identificados” como uma mulher ou um homem cisgênero. É também parte de um debate que divide a população trans que quer – ou não – se submeter a procedimentos invasivos. Esses procedimentos incluem desde o enxerto de próteses de silicone nos seios entre mulheres até a ingestão de hormônios para o crescimento de pelos corporais entre os homens. Recentemente, um outro passou a fazer parte da lista: a feminização facial. Trata-se de um conjunto de cirurgias que suaviza traços do rosto para que fique com as características comumente associadas a um “rosto de mulher”. Mexe-se no contorno para eliminar ângulos marcados, raspa-se extremidades e o pomo de adão – caso seja protuberante –, corta-se o couro cabeludo para diminuir a testa, levanta-se as sobrancelhas e aumenta-se as maçãs. É possível também raspar nariz, preencher queixo e lábios, ou qualquer outra região em que se deseje “saliência”.

Em Blumenau, Santa Catarina, há um centro médico especializado na técnica, o Transgender Center Brazil, que atende gente do mundo todo. Desde 2015, já operaram mais de 400 pacientes. Pelo conjunto de cirurgias que formam uma feminização (de três a sete procedimentos), cobra-se de R$ 20 mil a R$ 60 mil. A popularização da cirurgia vai ao encontro de uma maior entrada das pessoas trans no mercado de trabalho. Um exemplo vem do site Transempregos, voltado para a inclusão desses profissionais nas empresas. Quando a plataforma foi criada, em 2014, 12 companhias queriam usar seus serviços. Atualmente, já são 46.

Foi em 2015 que a modelo paulistana Jaqueline Cardoso, hoje com 24, decidiu fazer o procedimento. “Olhava no espelho e achava que tinha algo errado no meu rosto”, lembra. Jaqueline nasceu em 1995 e desde criança entende-se como mulher. Aos 6, gostava de brincar com as bonecas que ganhava do pai. Aos 13, começou a tomar hormônios. Ela, que há quatro meses vive em Londres, não sabe dizer ao certo quando deixou de ser vista como menino para ser vista como menina. “Lá em casa, foi tão natural que, quando deram conta, tinham uma filha de cabelos compridos, não um filho.” Na escola e na vida adulta não foi diferente: o preconceito e a violência não foram “entraves”, diz. “Sei que sou privilegiada e diferente da maioria das pessoas trans que conheço. Não precisei sair de casa nem fui abandonada.”

Na outra ponta da discussão, está a executiva paulistana Danielle Torres, 36, que iniciou a transição de gênero há sete anos e, até então, preferiu não se submeter aos procedimentos: “A liberdade do meu gênero é permitir-me amar quem sou, do jeito que sou”. Em 2005, quando entrou em uma empresa de consultoria, na qual agora é sócia-diretora da área de seguros, ainda performava no gênero masculino. Em 2011, ganhou uma promoção e foi expatriada para os Estados Unidos. No novo país, teve um ataque de pânico. O episódio seria o primeiro de uma série que a acompanharia por três anos. Ela tinha certeza de que era algo físico, até que se deu conta de que não, o problema estava em não poder viver plenamente como mulher. Recorreu à terapia e ali decidiu enfim começar sua transição, que se deu dentro da empresa e foi “bem aceita”. Aos poucos, foi inserindo signos femininos na sua estética – deixar o cabelo crescer foi o primeiro, grandes brincos de argola vieram logo depois. Como Jaqueline, Danielle também teve privilégios. Na profissão e na vida pessoal, sua transição de gênero foi acolhida e respeitada. Aqui, as duas falam de suas histórias e refletem sobre suas decisões: a de fazer e a de não fazer a cirurgia de feminização facial.

Jaqueline Cardoso: "Eu precisava ser feliz comigo mesma"

Jaqueline Cardoso (Foto: Coletivo Amapoa)

Jaqueline Cardoso (Foto: Coletivo Amapoa)

“São Paulo. 10 de setembro de 2015. Acordei da cirurgia me sentindo mais leve. Sabia que dali para a frente minha vida seria outra. Tinha 20 anos quando fiz a feminização facial, a tal cirurgia que mudou a forma como me vejo e sou vista. Não me arrependo. Pelo contrário, sou muito grata pelas mudanças que vieram com o procedimento. Graças a ela, hoje trabalho como modelo, em Londres, cidade em que posso exercitar muito livremente minha identidade. Além disso, infelizmente, na sociedade em que vivemos, a aparência é importante demais. Esteticamente, me parecer mais com uma mulher me livra de alguns preconceitos e perigos. Me livra de olhos maldosos. Eu, que já viajei por diferentes países, sei que a violência contra as pessoas transgêneros acontece em todo lugar. E no Brasil é pior: a violência é externalizada e você pode apanhar na rua. Pode, inclusive, morrer. 
 
Todo dia ficamos sabendo de uma trans que foi assassinada. Em Campinas, cidade da minha mãe, tem uma história de uma garota que teve o coração arrancado. A verdade é que, quando uma trans sai de casa, ela nunca sabe se vai voltar viva. Essa é uma das razões que me levou para a feminização. Mexer no meu rosto me livrou de ser imediatamente reconhecida como trans nas ruas. E, por isso, me livrou do perigo de ser atacada. Claro, outros perigos vêm quando você passa a ser ‘apenas mulher’. Como o de ser estuprada e assediada só pelo fato de ser mulher. 

Jaqueline Cardoso (Foto: Coletivo Amapoa)

Jaqueline Cardoso (Foto: Coletivo Amapoa)

Me entendo como mulher desde que nasci. Meu pai me dava lindas bonecas de presente na infância. Aos 13, comecei a tomar hormônio por conta própria. Minha família não sabia. Aliás, não contei para ninguém. Quando deram conta, tinham uma filha de cabelos compridos, não um filho. Cheguei a tentar o suicídio. Não deu certo, ainda bem. Foi aí que meus pais souberam e me deram apoio total. Meus amigos e as pessoas que realmente importam também. Isso me ajudou a lidar com quem não me entendia ou não me respeitava. Consegui estudar, me formar em um colégio técnico, não precisei sair de casa nem fui abandonada. Tive uma vida privilegiada e bem diferente da maioria das pessoas trans que conheço. 
A feminização foi a primeira cirurgia que fiz – anos depois, coloquei silicone nos seios.  
É que, além da necessidade de me sentir mais segura, olhava no espelho e achava que tinha algo errado no meu rosto. Eu tinha o osso da linha da sobrancelha acentuado, que me incomodava demais, deixava o olhar pesado. As pessoas viviam me perguntando se eu estava brava. Era uma coisa que me magoava. Uso a expressão ‘olhar forte’ para não usar olhar masculino.  Minha dúvida era: me acham com cara de brava ou me acham com cara de trans? O osso em volta dos olhos mais saltado é uma marca dos homens.

Pesquisei ‘transexuais cirurgia’ no YouTube e encontrei muitos vídeos de feminização. Já estava procurando uma cirurgia plástica para o rosto. Achava que mexer no nariz resolveria o que eu via de errado. Descobri que não, eu também precisava da frontoplastia – é como um lifting da testa. Também na internet, encontrei o médico que me operou. Ele entendeu o que eu queria, e ele queria fazer o que eu queria. Demorei ao menos dois anos entre o tempo em que pesquisei sobre a cirurgia e o momento em que estava na mesa de operação. Tive de juntar dinheiro, é um procedimento caro. Na época, gastei uns R$ 19 mil.  

No maxilar e no queixo, precisei fazer preenchimento, para deixar o rosto mais longo. Eu tinha a parte inferior do rosto pequena e retraída. Na feminização, o médico faz um corte no seu couro cabeludo e puxa a pele. Ele abre sua cabeça, literalmente, descola sua pele e raspa a estrutura óssea, lixa ela. A recuperação total levou um ano. Nesse período, o rosto vai se adaptando ao novo formato. Um dia fica inchado, no outro dia você fica bonita, no outro fica feia. Hoje, entendo que a passabilidade vai muito além de uma cirurgia. Apesar da feminização, precisava ser feliz comigo mesma. Meu conselho? Se vai te deixar mais feliz, faça. A gente merece se amar e se sentir a gente mesma.”

Danielle Torres: "Passabilidade é questão de ângulo"

Danielle  Torres (Foto: Coletivo Amapoa)

Danielle Torres (Foto: Coletivo Amapoa)

“Uma brincadeira de que gosto é tirar selfies com as mais variadas expressões. Seleciono as fotos mais interessantes, um sistema de inteligência artificial analisa os traços do meu rosto e ‘adivinha’ meu gênero. É divertido. Verto ‘Dani ela’ para ‘Dani ele’ brincando com a expressão do meu rosto, ângulo e a maneira como a foto foi tirada. Seria uma brincadeira inocente, não fosse o fato de eu ser transgênero.

Precisei de muita terapia para aceitar quem sou. Custou-me tempo para entender que a androginia que carrego é a forma que encontro para viver em paz com o meu corpo. Natural. Ao longo da vida passei por tantas decepções e opressões que meu primeiro instinto era rejeitar quem sou. Deixo claro que não estou generalizando meu processo. Aprendi que cada um tem a sua necessidade e isso deve ser respeitado. Minha posição jamais será a favor ou contra qualquer tipo procedimento. Isso não me cabe. Fato é que sofri muito com minha aparência ao longo da vida, especialmente no começo da afirmação do meu gênero. Cada vez que me chamavam de homem, que se referiam a mim como ‘ele’ ou qualquer denominação masculina, era como se tirassem de mim o meu direito de existir. 
Eu chorava. Queria que tudo cessasse e, honestamente, no começo da transição estava disposta a realizar qualquer procedimento capaz de tirar a horrível sensação de não pertencimento. Almejava ser uma mulher cisgênero e estava disposta a não medir esforços para me aproximar desse ideal. 

A minha psicóloga foi um contraponto importante no meu processo. Sugeriu que eu não tivesse qualquer pressa e que me permitisse o tempo necessário para acalmar meus conflitos internos antes de tomar decisões irreversíveis. Ao me familiarizar com os relatos de outras meninas trans, que haviam passado por todo o processo, com as intervenções cirúrgicas disponíveis, um ponto chamou minha atenção: algumas diziam que o conflito de gênero ainda existia, apesar de todos os esforços delas.

Danielle  Torres (Foto: Coletivo Amapoa)

Danielle Torres (Foto: Coletivo Amapoa)


Uma frase então me marcou: ‘Não importa o que eu faça, nunca irei menstruar’. Sei que é óbvio, mas foi um choque. Materializar os limites do meu corpo enquanto mulher trans fez-me perceber que talvez jamais encontrasse uma saída para o meu dilema. Então, ocorreu-me que existem mulheres com ciclos irregulares e algumas que não menstruam. Deixam de ser mulheres por isso? A partir dessa subjetividade, comecei a entender que encontraria o meu eu feminino em um diálogo com mais ênfase em meu espiritual do que no meu corpo. 
Minha alma estava em paz. Fui Victoria, a escritora, desde criança. Tudo o que não me era permitido no social encontrava na escrita. Contava para mim mesma fábulas, histórias de princesas, guerreiras e mulheres comuns. Permitia-me no meu delicado coração vagar de maneira livre. O dilema com meu corpo, entretanto, estava longe de qualquer estabilidade. Isso só mudou a partir do momento em que aceitei que meu conflito seria meu ponto de equilíbrio. Nesse sentido, assumir minha androginia foi o caminho que encontrei para aceitar que não sou nem feminina nem masculina: eu sou eu. 

Tenho a sensação de que o corpo feminino é por si diverso. Existem mulheres de diferentes estaturas, rostos e formas. Algumas com busto, sobrancelhas arqueadas, bumbum empinado, e outras completamente diferentes. Dessa forma, se me comparasse com qualquer padrão feminino não condizente com meu tipo físico, só encontraria dor em meu caminho.

Uma reflexão final permitiu-me alcançar as minhas conclusões: se fizer uma série de modificações em meu corpo, será que ao final eu mesma me reconhecerei? Talvez o social se inquietasse e cessasse de invadir minha privacidade. No pior cenário, nada mudaria e eu apenas teria alterado minha estrutura visando agradar terceiros, que muitas vezes nem sequer conheço. Isso não significa que não farei nunca tais procedimentos, apenas afirmo que se fizer será por ser algo que faz sentido para mim. 

Voltando às selfies. Algumas que tiro ressaltam ângulos mais femininos, enquanto outras enfatizam traços mais masculinos. Já não vejo problemas nisso. Minha identidade é clara desde que sou muito nova. Se tivesse tido o direito de crescer sendo eu mesma, talvez nem sequer me importaria na vida adulta se pareço ele, ela ou ‘ile’. Passabilidade é questão de ângulo, estado de espírito e, claro, pode ser aprimorada por meio de procedimentos cirúrgicos. Se a pessoa trans sente-se melhor com estes procedimentos, que ela seja muito feliz! É isso que importa. Para mim, a liberdade do meu gênero é permitir-me amar quem sou, do jeito que sou. Algo que aprendi é que o amor cura. O resto é passageiro.”

BELEZA: CARLOS ROSA (CAPA MGT) COM PRODUTOS NARS E LOWELL / PRODUÇÃO-EXECUTIVA: VANDECA ZIMMERMANN