• Maria Clara Drummond
  • Colaboração para Marie Claire
Atualizado em

“Ele é o próximo Donald Trump, só que mais jovem, e muito mais gato”, é assim que Samantha Jones descreve Mr. Big no primeiro episódio de Sex and the City, ao ar em junho de 1998. Com a comparação, os autores da série diziam que o personagem de Chris Noth era um bom partido, a epítome do sucesso masculino em plena Nova York da virada do século. A menção ao ex-presidente norte-americano envelheceu mal, se tornou sintoma tanto da mudança de contexto histórico quanto de alguns valores apregoados por Sex and the City. Recentemente, a HBO Max anunciou um reboot de dez episódios da série, e com o novo título: And just like that… . As gravações estão programadas para o segundo semestre de 2021. Será Sex and the City capaz de se adaptar aos novos tempos?

As principais críticas que o olhar contemporâneo faz à série são a ausência de representatividade no elenco e o excesso de privilégio e a falta de consciência de classe de suas protagonistas. Afinal, trata-se de um programa sobre quatro mulheres brancas, magras, com dinheiro, heteronormativas, fissuradas por moda e "alienadas", dizem. Sobre a falta de representatividade no elenco, essa é das grandes faltas da série. Incontestável e imperdoável que uma obra que marcou sua época e influenciou produções pelo mundo tenha ignorado a existência de pessoas negras, gordas, trans, imigrantes, com deficiência e tantas outras visões e vivências. Feita essa observação indispensável, chegamos ao que parece ser o principal objetivo da série: mostrar que mulheres solteiras de mais de trinta anos podem levar uma vida invejável em comparação à monotonia das mães dos subúrbios abastados dos Estados Unidos com suas famílias margarina. Essas, quando aparecem na série, ocupam sempre o lugar de antagonistas, julgando o excesso de álcool, festa, promiscuidade, liberdade e consumo desenfreado de Carrie (Sarah Jessica Parker), Samantha (Kim Catrall), Miranda (Cynthia Nixon) e Charlotte (Kristin Davis). “Eu gastava quatrocentos dólares num sapato antes de ter uma vida de verdade”, diz Kyra, cercada por três angelicais crianças loiras, em “A Woman Right to Shoes”, episódio da sexta temporada.

Miranda (Cynthia Nixon), Samantha (Kim Catrall), Charlotte (Kristin Davis) e Carrie (Sarah Jessica Parker) (Foto: Divulgação)

Miranda (Cynthia Nixon), Samantha (Kim Catrall), Charlotte (Kristin Davis) e Carrie (Sarah Jessica Parker) (Foto: Divulgação)


Até hoje, 22 anos depois da estreia da série, o casamento se mantém como símbolo de status máximo para uma mulher. Faz sentido que a estratégia adotada pelos autores seja a de substituir a família margarina e o marido protetor por outros símbolos de status, como dinheiro, grifes, fama e (muito) sexo. Nos Estados Unidos, 42% dos americanos na década de 1990 acreditavam que sexo antes do casamento era algo imoral. Dez anos depois, o número havia encolhido para 16%. Os dados são de um estudo da Universidade de Chicago. O jeito despudorado que as personagens de Sex and the City falavam sobre o assunto anteviu essa mudança de pensamento. Para o desgosto de Charlotte, nada era tabu durante os jantares e brunches da série: sexo anal, sexo oral, sexo oral com gosto esquisito, sexo tântrico, sexo à três, sexo com vibrador, sexo com amor, sexo sem amor, sexo extraconjugal, sexo sem depilação, sexo anônimo, sexo casual durante a gravidez, sexo com pênis pequeno demais, sexo com pênis grande demais, sexo com homens mais velhos, sexo com homens mais novos, sexo com mulheres. Quase sempre, essas conversas equilibravam humor, honestidade, análise comportamental e subversão, representados pela dialética entre o conservadorismo de Charlotte, a ousadia de Samantha e o cinismo de Miranda, encapsulados por alguma conclusão feita nos escritos de Carrie. “Todas as pessoas casadas param de transar em algum momento. Sei disso porque eu costumo transar com pessoas casadas”, é uma das inesquecíveis frases de Samantha.

Ainda assim, somos lembradas o tempo inteiro que sexo e dinheiro não são o suficiente para que uma mulher solteira seja respeitada. Miranda Hobbes, a mais comprometida com o trabalho do quarteto, compra um espaçoso apartamento no Upper West Side, bairro abastado de Manhattan. Ela também é a única que tem uma faxineira fixa para ajudá-la nas tarefas domésticas – um luxo raro numa cidade tão cara. Porém, ao contrário do que aconteceria com um homem, o sucesso financeiro depõe contra sua desejabilidade. Steve, um dos pares românticos de Miranda, termina o relacionamento por se sentir diminuído (e emasculado) por namorar uma mulher rica. Em outro episódio, Miranda finge ser aeromoça a fim de parecer menos intimidadora para o sexo oposto – e a estratégia dá certo! “O homem solteiro de trinta e quatro anos sem dinheiro nem lugar para morar é considerado um bom partido. A mulher solteira de trinta e quatro anos com um ótimo emprego e um apartamento incrível é considerada uma figura trágica”, diz a personagem.

As principais críticas que o olhar contemporâneo faz à série são a ausência de representatividade no elenco e o excesso de privilégio e a falta de consciência de classe de suas protagonistas (Foto: Divulgação)

As principais críticas que o olhar contemporâneo faz à série são a ausência de representatividade no elenco e o excesso de privilégio e a falta de consciência de classe de suas protagonistas (Foto: Divulgação)


O excesso de glamour que permeia a vida das quatro amigas funciona como um mecanismo compensatório para o machismo que sofrem no cotidiano. É uma estratégia historicamente adotada por outros grupos que também sofrem opressão sistêmica, como negros e LGBTQs – a estética voguing e hip hop são bons exemplos.

Sex and the City escolheu como enfoque o machismo, e não as demais opressões. Isso não deve ser visto como um demérito por si só – embora, é verdade, a série tenha pecado nas diversas vezes que tratou desses outros assuntos de maneira insensível, como no reforço do estereótipo da “angry black woman”, no episódio “No ifs, ands and buts”, e na invisibilização da bissexualidade, em “Boy, Girl, Boy, Girl”. Às vezes, pode ser ainda pior ceder a pressão por representatividade e emendar a questão de forma superficial, até mal feita. No primeiro filme da série, lançado em 2008, Jennifer Hudson interpreta a assistente pessoal contratada por Carrie. É uma personagem negra com relativo destaque na trama. No entanto, o resultado final soou condescendente e meio racista. Por exemplo, Carrie enxerga em Louise um espelho de sua essência, uma fashionista obcecada por encontrar o amor na cidade grande. Ainda assim, Louise acaba desempenhando a função subalterna de… limpar o apartamento de Carrie.

No primeiro filme da série, lançado em 2008, Jennifer Hudson interpreta a assistente pessoal contratada por Carrie (Foto: Divulgação)

No primeiro filme da série, lançado em 2008, Jennifer Hudson interpreta a assistente pessoal contratada por Carrie (Foto: Divulgação)


À princípio, parece promissora a sinopse do reboot: acompanhar os novos dilemas de um grupo de mulheres de cinquenta anos. Há uma miríade de perspectivas possíveis a serem adotadas quando o assunto é discriminação etária. Porém, a julgar pelos dois longas-metragens, só nos restam dúvidas quanto à qualidade das reflexões a serem propostas. O primeiro filme é uma sequência constrangedora de demonstração de riqueza enquanto o segundo é puro suco de racismo contra mulçumanos. Tanto um quanto outro miram no escapismo inspiracional e acertam no wealth porn (em tradução livre, pornografia da riqueza). O característico high-low estilístico que predominava na série é substituído por um vulgar high-high. Não há nenhum indício de arco evolutivo relevante, apenas emburrecimento. Miranda, Charlotte e Samantha, por exemplo, sempre foram personagens arquetípicas e complexas; nos filmes, isso desaparece.

Por isso, é compreensível que as expectativas para os episódios porvir sejam pouco otimistas. Quando solteiras, essas quatro mulheres representavam um modo de vida subversivo; casadas, talvez assemelhem-se mais a Karens – gíria contemporânea difundida na internet que define mulheres brancas, de classe média e idade avançada, que perpetuam o racismo estrutural nos Estados Unidos.

E, antes tarde do que nunca, a cereja faltante do bolo fica por conta da ausência de Samantha Jones em And just like this... – de longe a personagem mais ousada do grupo, e a única que escolheu permanecer solteira, aos quarenta e oito anos, mesmo contando com o amor incondicional de um parceiro dos sonhos, Smith Jarrod.

Em 1998, fazia sentido apostar no materialismo como resposta possível ao machismo. Era uma época especialmente estável na economia norte-americana. Beleza Americana, Clube da Luta e Matrix foram alguns dos filmes mais populares e emblemáticos de 1999. Em comum, tratam do tédio gerado no trabalho de escritório, que embora possibilitem o sonho americano, repleto de bens de consumo, são inúteis para a sociedade e vazios de propósito, gerando uma crise existencial (David Graeber, antropólogo, viria a designar esse tipo de emprego como “bullshit jobs”). Antes, Sex and the City levantava uma questão pertinente para sua época. No episódio piloto, Samantha decreta: "Pela primeira vez na História de Manhattan mulheres têm tanto poder e dinheiro quanto os homens". A pergunta que paira no ar em seguida é: então porque a igualdade de gênero não foi conquistada? No entanto, os dois filmes da franquia estrearam em meio ao contexto da crise econômica de 2008, logo antes do #OcuppyWallStreet. A crescente desigualdade social fez com que a opulência que outrora fora admirável imprimisse deselegância, mau gosto.

Agora, em pleno 2021, estamos imersos em debates cada vez mais complexos sobre gênero, racismo e LGBTQfobia. O contexto mudou, o ethos da série permaneceu igual, e ainda pior, tornou-se uma caricatura de si mesma, aumentando ainda mais o fosso entre a obra e o novo zeitgeist.

Carrie Bradshaw (interpretada por Sarah Jessica Parker), Carrie, uma espécie de proto-influencer, que vive uma vida acima das suas condições financeiras graças ao seu prestígio como celebridade local (Foto: Divulgação)

Carrie Bradshaw (interpretada por Sarah Jessica Parker), Carrie, uma espécie de proto-influencer, que vive uma vida acima das suas condições financeiras graças ao seu prestígio como celebridade local (Foto: Divulgação)


Como fã, opto por fingir que os dois filmes não existem, e tento ao máximo apagá-los da memória. Mas a verdade é que na sexta temporada já era possível entrever indícios da decadência que se concretizaria mais adiante. Em “Splat”, episódio anterior ao final, acompanhamos o dilema de Carrie entre ficar em Nova York ou morar em Paris com o namorado, o artista Alexandr Petrovsky. E então somos apresentados a Lexi Featherston, “a it-girl da década de 80”. Lexi é caracterizada para parecer uma figura patética, inadequada, vulgar, bêbada, drogada, sempre com um cigarro na mão, falando alto. “Ninguém mais sabe se divertir nessa cidade!”, exclama. Ao abrir a janela para fumar, tropeça na cortina, se desequilibra, despenca e morre. No século 19, o casamento era o grande tema das obras literárias da época, e era cristalino o recado de romances como Anna Kariênina, de Liev Tolstoi, e Madame Bovary, de Gustave Flaubert: o único destino possível para a mulher que recusa papéis tradicionais de gênero e desafia a santidade do casamento é a morte. Sex and the City assume uma postura regressiva ao adotar essa mensagem do século retrasado.

Ainda nos episódios derradeiros da última temporada, Carrie Bradshaw decide sair da cidade que ama, abandonar seu emprego que tanto reflete sua identidade, para acompanhar um namorado por quem sequer está apaixonada, só para não chegar aos quarenta anos solteira, como Lexi Featherston. “No final, Sex and the City acabou traindo seu principal mote: que mulheres não encontrariam sua principal felicidade no casamento”, diz o criador da série Darren Star.

Carrie Bradshaw (interpretada por Sarah Jessica Parker) e Mr. Big (vivido por Chris Noth) (Foto: Divulgação)

Carrie Bradshaw (interpretada por Sarah Jessica Parker) e Mr. Big (vivido por Chris Noth) (Foto: Divulgação)


É paradoxal que Sex and the City tenha ilustrado melhor a falácia do casamento como indispensável para a felicidade feminina através de sua personagem mais conservadora, Charlotte York. Seu objetivo explícito é casar com um homem rico, bonito e de boa família. É um desejo mais movido pelo status que pelo romantismo. A cumplicidade, a parceria e a conexão amorosa e sexual presentes dentro de um relacionamento saudável parecem secundários ao casamento enquanto ritual social. Finalmente, Charlotte consegue o pacote completo que tanto almeja com Trey MacDougal. Na realidade, a relação é um fiasco, sem sexo, diálogo, projetos em comum. A partir dessa experiência, Charlotte percebe que companheirismo e sexo de qualidade são mais importantes para sua felicidade que a imagem perfeita, invejável. A lição é mais que adequada para a obsessão atual por levar uma vida instagramável no lugar de vivenciar experiências genuínas.

Já Carrie, que seria uma espécie de proto-influencer, que vive uma vida acima das suas condições financeiras graças ao seu prestígio como celebridade local, escolhe o caminho inverso, ao continuar presa a um homem de aparência perfeita e personalidade tóxica. Seu “final feliz” com Mr. Big reúne todos os clichês mais batidos das comédias românticas que o seriado inicialmente criticava: o homem que muda, conserta seus maus hábitos por amor, o grande gesto romântico, e até mesmo o figurino, um vestido de princesa, que soa quase como uma ironia. E assim, Carrie permanece igual, como nos icônicos créditos iniciais: uma mulher de trinta anos, com um tutu infantil, atropelada pela própria imagem estampada no ônibus.

Resta saber se And just like that... vai aprender com os novos tempos ou vai emular a estagnação de sua protagonista.