• Silvia Chakian
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Coluna Silvinha (Foto: Pamella Moreno)

Coluna Silvinha (Foto: Pamella Moreno)

A Lei 14.214/21, que recentemente instituiu o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual no Brasil, acabou dando visibilidade à precariedade menstrual que impede milhões de meninas e mulheres de terem acesso a condições básicas de higiene pessoal durante os ciclos, com impacto significativo para sua saúde física e mental, qualidade de vida, socialização, escolaridade e desenvolvimento.

A questão não é nova, já foi objeto de pesquisas, estudos, campanhas e até documentários, como o curta-metragem indiano que ganhou o Oscar 2019, "Absorvendo o Tabu".

Apesar disso, nunca chegou a ser tratada com o destaque devido, sob a óptica necessária da saúde pública. Entre os pontos principais, a legislação que teve origem no PL 4.968/19, da deputada Marília Arraes, e contou com adesão das propostas de outros 34 parlamentares, com aprovação pela Câmara e pelo Senado, prevê a distribuição de absorventes para estudantes de baixa renda e mulheres em situação de vulnerabilidade, abrangendo aquelas em situação de rua e as que estão sob custódia do Estado, no sistema prisional.

Acompanhei os debates acalorados entre os apoiadores do veto presidencial e, portanto, contrários à iniciativa (sim, eles existem) e seus defensores, com a curiosidade de tentar entender o raciocínio de quem relaciona a distribuição de absorventes a um privilégio. Isso num país com índices alarmantes de pobreza feminina como o nosso, em que absorventes são vendidos a alto custo, tributados como cosméticos.

Há desonestidade – ou, na melhor hipótese, falta de conhecimento – no argumento de haver incompatibilidade da medida com a finalidade dos estabelecimentos de ensino, porque não há como ignorar as estatísticas de que uma entre quatro estudantes no país já deixou de ir à escola por falta de condições de comprar absorventes durante o ciclo menstrual, que dura aproximadamente cinco dias.

Considerando que a média de idade para a primeira menstruação é de 13 anos, não é difícil identificar o tamanho do prejuízo para aquelas que não terão acesso a condições básicas para a higiene menstrual ao longo da vida escolar, muitas vezes agravado por doenças causadas pelo uso de métodos precários durante o ciclo. Chama ainda mais atenção a misoginia do argumento de que a iniciativa afrontaria o “interesse público”.

Os defensores do veto sustentaram que não haveria possibilidade de custeio das despesas com as dotações orçamentárias do SUS, porque absorventes não se enquadrariam nos insumos padronizados e na relação de medicamentos necessários, como se as mulheres escolhessem menstruar e os absorventes não fossem essenciais à sua saúde.

Mais grave, mencionou-se que, “ao estipular beneficiárias específicas, a medida não se adequaria ao princípio da universalidade, integralidade e equidade do SUS”, o que é revelador de como as políticas públicas necessárias à garantia de direitos fundamentais de meninas e mulheres estão sendo marginalizadas, relegadas à categoria de “particular”, vistas como demasiadamente específicas, para que as demais, aplicáveis a ambos os sexos, recebam o status de “universal”.

Dizer que a distribuição de absorventes para meninas e mulheres em condição de vulnerabilidade social e econômica, indispensável à saúde, ao acesso à escola e à condição de vida digna, contraria o interesse público escancara que o paradigma que está sendo levado em conta é exclusivamente masculino.

É triste e revoltante o abismo existente entre aqueles que pensam as políticas de saúde pública para mulheres em nosso país – em sua maioria, homens brancos com seus privilégios – e a população feminina que mais delas necessita: meninas e mulheres pobres, majoritariamente negras.

Um imenso descompasso que vem impactando negativamente as estratégias imprescindíveis para garantir direitos básicos às mulheres, não somente relacionados à pobreza menstrual, mas também à prevenção da mortalidade materna; à intervenção precoce do câncer de mama e colo do útero; ao planejamento familiar, que pressupõe acesso a contraceptivos e laqueadura; e à interrupção legal de gravidez decorrente de estupro.