Sorvete de frango, queijo e pão: a bizarra história da sobremesa na Europa

Historiadora especializada em estudos sobre alimentos revela os estranhos sabores de sorvete do passado e como a sobremesa se tornou mais acessível

Por Lindsay Middleton* | The Conversation


Nobres comendo sorvete em uma caricatura francesa, (1801) Gallica; domínio público

A English Heritage [agência de preservação natural ou cultural da Inglaterra] agora está vendendo o que chama de “a melhor coisa desde o pão fatiado” em 13 de seus locais – sorvete de pão integral, sobremesa inspirada em uma receita da era georgiana. O anúncio dele menciona vários outros sabores georgianos estranhos testados pela English Heritage antes de chegar ao pão integral, como parmesão e pepino.

A English Heritage não está sozinha em seus esforços para seduzir os visitantes com guloseimas históricas. Em Edimburgo, o National Trust for Scotland's Gladstone's Land possui uma sorveteria ligada à leiteria que existia lá em 1904. A propriedade vende sorvete de flor de sabugueiro e coalhada de limão com base em uma receita de 1770, e os visitantes podem fazer vários passeios turísticos gastronômicos.

Embora o sorvete de pão integral, elogiado por seu sabor de nozes e caramelo, possa ser um sabor mais familiar para os consumidores contemporâneos do que outras ofertas históricas, as delícias geladas consumidas na Grã-Bretanha nos séculos anteriores tinham uma enorme variedade de sabores e formas.

Agnes Marshall, a autoridade em sorvetes no final do século 19, publicou dois livros de receitas especificamente sobre “ices” ["gelos"] (1885) e “fancy ices” ["gelos chiques"] (1894). Eles incluíam sabores de um espinafre gelado "à la crème", que era elaboradamente moldado e colorido, a pequenos sorvetes apimentados servidos em xícaras.

Alguns dos diferentes designs de sorvete feitos por Agnes B. Marshall — Foto: Dominic Winter Auctioneers

Este último consistia em um patê de frango temperado com curry em pó e molho inglês, gemas de ovos e anchovas. Ele era misturado com molho de carne, gelatina e chantilly, antes de ser congelado em copos decorativos e servido “para almoço ou segundo prato”.

Textos mais antigos contêm sabores ainda mais estranhos ao lado de ofertas típicas de doces.

L'Art de Bien Faire les Glaces d'Office (1768), do gourmet francês Monsieur Emy, tem receitas de sorvetes de trufas, açafrão e de vários sabores de queijo.

A história do sorvete

Na época em que Marshall estava publicando, o sorvete era muito mais acessível ao público do que nos séculos anteriores. Antes dos anos 1800, o gelo era coletado de cursos de água congelados e armazenado em depósitos congelados subterrâneos, que, em sua maior parte, eram restritos a grandes propriedades com as terras, riquezas e recursos necessários.

A partir da década de 1820, no entanto, o gelo começou a ser para a Grã-Bretanha a partir da Europa continental, depois, foi trazido dos Estados Unidos. Ele era armazenado em poços de gelo e armazéns.

A importação de estoques maiores de gelo reduzia os custos, enquanto inovadores projetavam aparelhos para congelamento mecânico.

Levaria muito tempo até que o gelo fosse facilmente produzido em casa. Mas com ele ficando mais barato, o sorvete se tornava mais prontamente disponível, e os implementos eram concebidos para que sorvetes pudessem ser feitos em casa. Os livros de receitas de Emy e Marshall retratando máquinas de sorvete e o freezer patenteado de Marshall alistavam a mesma técnica de congelamento do Sarbotiere et son Seau (recipiente de congelador e balde) de Emy.

Gelo e sal eram colocados ao redor de um balde, dentro do qual uma mistura de creme ou água era mexida ou girada até congelar. A inovação de Marshall foi a panela rasa, que deu uma maior área de superfície para um congelamento mais rápido. Equipadas com esse tipo de freezer (e talvez com a Ice Cave patenteada por Marshall, para armazenar os sorvetes), as donas de casa de classe média podiam produzir sorvete em suas próprias cozinhas.

Sorvete e lazer

Atualmente, o sorvete é adequado para atrair visitantes em propriedades patrimoniais – não por causa da história de como era produzido em casa, mas devido às suas conotações de férias. Seja um “99” [tipo de casquinha], um “oyster” [sorvete salgado] saboreado na praia ou o jingle de um caminhão de sorvete, o sorvete tem vínculos culturais e emocionais claros com recreação e diversão. Isso também era verdade no passado.

Na Grã-Bretanha do século 19, vendedores ambulantes (muitos deles imigrantes italianos) começaram a vender penny licks [copos para servir sorvete], ou “hokey-pokey”, em barracas ou carrinhos nas ruas. Em contraste com as iguarias imaculadamente moldadas no livro de receitas de Marshall – que exigiam a compra de vários equipamentos –, estes sorvetes podiam ser apreciados em qualquer lugar. Também eram baratos, como está implícito no "penny" [“centavo”] do seu nome.

Os clientes compravam seu sorvete em um copo do tipo “lick”, comiam-no e, depois, devolviam o recipiente ao vendedor para reutilização. Com o crescente número de resorts à beira-mar e a ascensão da indústria do lazer ao longo do século 19, os sorvetes passaram a ser apreciados durante as férias, em excursões diárias e também em eventos públicos, como exposições ou feiras.

Crianças cercam um vendedor de sorvete em 1909 — Foto: Wikimedia Commons

É a portabilidade do sorvete, bem como o seu apelo culinário, que o levou a ocupar um lugar duradouro no nosso tempo de lazer – uma iguaria deliciosa que pode ser saboreada, com uma só mão, como parte de uma experiência mais vasta. O ato de comer sorvete preparado a partir de uma receita georgiana ou vitoriana [em locais históricos da Inglaterra], portanto, conecta os visitantes de hoje a uma longa tradição de desfrutar de sorvetes de forma recreativa.

Embora seja improvável que as propriedades patrimoniais adotem as formas menos higiênicas de consumo de sorvete, servir receitas históricas dá aos visitantes a chance de saborear uma nova camada sensorial do passado. Esse gosto pode ser ligado a histórias maiores. Do sorvete podemos aprender sobre a evolução tecnológica, a mudança de atitudes em relação ao saneamento, as viagens globais, a disponibilidade de ingredientes ao longo do tempo, as tendências, a moda e os hábitos de lazer.

Mergulhar na história da comida – das latas em nossos armários a uma xícara de chá ou um sorvete na praia – pode trazer uma nova perspectiva tanto para o passado quanto para o presente.

* Lindsay Middleton é Historiadora de Alimentos e Associada de Intercâmbio de Conhecimentos da Universidade de Glasgow, no Reino Unido. Este texto foi originalmente publicado em inglês no site The Conversation.

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