• Vitória Batistoti*
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Urso entrega a bola (Foto: YouTube)

Urso entregando a bola ao juiz de uma partida de futebol, na Rússia (Foto: Reprodução/YouTube)

Um grande urso marrom diante um estádio que segura uma bola de futebol e depois bate palmas enquanto é ovacionado pela plateia. Essa narrativa até parece a descrição de uma de desenho infantil, mas foi um episódio real que aconteceu recentemente durante uma partida de futebol na Rússia.

Antes de a bola rolar entre os times da terceira divisão Mashuk-KMV e FC Angusht Nazran, ela passou pelas mãos de um enorme russo, que também bateu palmas, sentou e ficou de pé à frente de todo o público. O animal estava usando uma espécie de focinheira e estava acompanhado de seu adestrador.

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A cena foi gravada e postada no YouTube, gerando comentários tanto ressaltando a fama de ‘bizarrices’ que a Rússia já adquiriu faz tempo quanto de pessoas consternadas com as possíveis condições que o urso havia sido submetido para realizar os comandos.

“Entendo que a sociedade está cada vez mais questionando o uso de animais para essas situações, as quais chamamos, na área da proteção animal, de ‘uso animal para entretenimento humano’”, afirma Marco Ciampi, presidente da ONG Associação Humanitária de Proteção e Bem-Estar Animal, a ARCA Brasil.

Segundo Campi, o episódio do urso não é um caso isolado. Há outras práticas mais tradicionais que estão incluídas na mesma categoria, como as touradas, vaquejadas, espetáculos em parques aquáticos e as apresentações de circo.

Remontando à memória, quem não se lembra dos elefantes se equilibrando em banquinhos com apenas duas patas, leões atravessando círculos de fogo e ursos fazendo palhaçadas em cima de picadeiros? Toda essa cena selvagem e fascinante, que acontecia debaixo de lonas coloridas e itinerantes, marcou a infância de quem nasceu, aproximadamente, até os anos 2000.

De lá para cá, os espetáculos com astros silvestres passaram a ser cada vez mais esporádicos e até se tornaram ilegais em alguns municípios e estados do Brasil. Isso faz parte de um movimento que teve início no início do milênio, em Pernambuco, e que divide opiniões até hoje.

Elefantes durante apresentação do circo Ringling Bros. and Barnum & Bailey, dos EUA (Foto: Wikicommus)

Elefantes durante apresentação do circo Ringling Bros. and Barnum & Bailey, dos EUA (Foto: Wikicommus)

Por onde andam os bichos?
Em 2000, durante um espetáculo circense na cidade pernambucana de Jaboatão dos Guararapes (PE), um menino de 6 anos foi capturado e devorado por um leão de dentro de uma jaula.

O episódio chocou o país e foi o mote para que a população local se mobilizasse e exigisse o fim da utilização de animais nos circos. O governo de Pernambuco respondeu à altura e proibiu a prática nos espetáculos do estado.

Aos poucos, outros estados e municípios brasileiros foram adotando a mesma medida, porém, somente com leis locais. A federação nunca emitiu uma restrição para todo o país, embora o projeto de lei 7.291 que visa a proibição de animais no circo esteja tramitando no Congresso brasileiro desde 2009.

Enquanto o legislativo não oferece uma medida que valha para todo o Brasil, quem se envolve na causa é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

“Desde 2004, o Ibama está debruçado sobre o assunto de eliminar os bichos de espetáculos circenses, pois acreditamos que inexiste a possibilidade de compatibilizar a segurança do público com o bem-estar animal”, afirma o biólogo Roberto Cabral, coordenador de fiscalização do instituto.

De acordo com Cabral, os problemas de se manter animais em circo começam desde a desobediência da garantia de que cada animal, para ter seu bem-estar mínimo, precisa estar contido em seu habitat próprio, ao mesmo tempo que não apresente ameaça ao seu público: “No zoológico, por exemplo, enquanto os bichos são contidos por fossos ou por muros resistentes e outras estruturas, não há condições de se fazer o mesmo em um circo, que é uma atividade itinerante”.

elefantes (Foto: Ronald Woan/ Flickr)

Foto: Ronald Woan/ Flickr

Na visão do especialista, para assegurar a proteção do público, muitas vezes, os circos prendem os animais de forma a impossibilitar seus movimentos. Porém, durante o espetáculo, o bicho fica solto, o que apresenta um grande risco aos atores da apresentação e à plateia.

“Em situações de tragédia, muitos circos não possuem planos de contingência, então acabam chamando a polícia para resolver a situação, o que acaba criando, como única opção, o abatimento do animal”, analisa Cabral.

Além do plano de contingência, outro ponto que o órgão ambiental analisa é a origem desses animais. Como é proibido por lei federal utilizar animais da fauna silveste, os bichos circenses costumam vir de fora do país. “Isso facilita o tráfico internacional de animais silvestres. Muitos dos circos que fiscalizamos não tinham a documentação que assegurasse que seus bichos não vieram de tráfico ilegal”, menciona o porta-voz do Ibama.

Outro ponto é o dos maus tratos: segundo o biólogo, alguns desses bichos trazem marcas de mutilação – como leões e tigres sem garras e chimpanzés sem arcada dentária. “Não podemos comprovar que isso acontece em todos os circos. Só confirmamos quando recebemos denúncias ou analisamos as cenas como infiltrados. Mesmo assim, é interessante se questionar como um animal foi submetido a um treinamento que não é natural à sua espécie. Por exemplo: como colocar um elefante se equilibrando em um banco, aguentando toneladas de seu peso em penas duas patas?”, questiona.

Para ele, os maus tratos podem vir de outra forma, como deficiências nutricionais e hídricas e as horas de viagens itinerantes que os animais estão submetidos dentro dos caminhões.

Tigre do circo alemão Belly Wien (Foto: Twaalfdozijn/ Flickr)

Tigre do circo alemão Belly Wien (Foto: Twaalfdozijn/ Flickr)

O impacto aos circos
Já de dentro das lonas, o ponto de vista é outro. Essa proibição tem trazido impacto aos principais circos do Brasil, conforme explica Marcos Teixeira Campos, coordenador da área de circo da Funarte (Fundação Nacional das Artes): “Essa discussão de animais do circo não está só acontecendo no Brasil, mas no mundo inteiro. E estamos acabando com os grandes circos. Porém, ao meu ver, o pior não é ver o circo acabar, mas é o preconceito enorme que se criou em cima dos circenses, enquanto os rodeios e as vaquejadas continuam a ser permitidas".

Em junho de 2017, o Congresso Nacional promulgou uma Emenda Constitucional legalizando novamente a prática da vaquejada em todo o território nacional, com a alegação de que ela é uma tradição cultural.

O porta-voz da Funarte também acredita que a condenação que paira sobre os circenses utilizarem animais para entretenimento humano é imparcial. “O projeto de lei que tramita no Congresso proíbe animais apenas no circo, e não em outros locais. Imputaram que a atividade circense é uma prática violenta, sendo que temos animais em filmes, teatros e até em práticas esportivas, como o hipismo.”

Uma alternativa que Campos enxerga como coerente seria a criação de uma legislação que regule o uso de animais em meios de entretenimento, pois isso poderia criar uma igualdade de tratamento entre os adestradores de todos os meios, inclusive os do circo.

Já em relação aos maus tratos, a Funarte afirma combater práticas que machuquem os animais nos momentos de treinamento e apresentação. “É claro que pode existir um mau circense, sempre há pessoas com propósitos ruins em qualquer instituição. Mas dizer, de antemão, que todos os circenses maltratam seus animais é leviano, irresponsável e ofensivo. O treinamento que fazemos são por premiação. Os animais que utilizamos são todos nascidos em cativeiro, nenhum deles foi retirado da selva”, diz ele.

A discussão do bem-estar
Para a médica veterinária Vania Nunes, especialista em bem-estar animal e diretora técnica da ONG Fórum Animal, a sensação de conforto dos bichos vai muito além de se fazer uso de métodos agressivos ou não durante o adestramento.

“Temos que entender que a domesticação é um processo de milhares de anos, e não algo que acontece de uma hora para outra. Não é possível colocar os animais silvestres na mesma classificação que um cachorro, por exemplo", explica. "Quando um animal passa por esse processo, ele é treinado desde jovem e condicionado a seguir as regras de um humano, sem poder respeitar seu comportamento, alimentação e hábitos naturais.”

Nunes também entende que a questão está intrinsicamente conectada ao aspecto ético: “É certo pegarmos um animal silvestre, tirá-lo de seu convívio social com outras espécies para utilizá-lo como forma de entretenimento?”.

No ponto de vista da especialista, vaquejadas, touradas e outras formas de entretenimento humano com uso de animais deveriam ser condenadas, sem ser necessário pensar regulamentos para nenhuma delas.

“Existem leis no Brasil que criminalizam atos que causem sofrimento, que inibam o animal de expressar seu comportamento e atos alimentares e que causem adoecimento mental e físico, além de estresse, medo e ansiedade. Porém, infelizmente, a Constituição ainda coloca no mesmo patamar as práticas ambientais e culturais.”

Movimento mundial
A discussão sobre o lugar dos animais dos animais na indústria de entretenimento humano está acontecendo ao redor do globo.

No Brasil, 11 estados proíbem o uso de animais em espetáculos circenses: Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo e Rio Grande do Sul. Esse movimento de proibição também é encabeçado em outros países da América do Sul, como Argentina, Bolívia, Chile e Peru – alguns com leis estaduais e outras federais.

Em diversas nações europeias e asiáticas a prática é crime. Já os Estados Unidos funcionam tal como o Brasil: alguns estados permitem, outros não. 

Na mesma perspectiva que a proibição de animais em atrações circenses, em 2016, o parque aquático SeaWorld, na Flórida (EUA) afirmou que não irá mais criar orcas em seu cativeiro. Desde 2017, está apostando também em apresentações mais educativas. (Foto: kkinjo/ Flickr)

Na mesma perspectiva que a proibição de animais em atrações circenses, em 2016, o parque aquático SeaWorld, na Flórida (EUA) afirmou que não irá mais criar orcas em seu cativeiro. Desde 2017, está apostando também em apresentações mais educativas. (Foto: kkinjo/ Flickr)

Embora seja contra a proibição e a favor de uma legislação regulamentadora, a Funarte acredita que as limitações do Brasil serão cada vez maiores. “Acredito que não iremos conseguir manter os animais no circo... Mas acho que não podemos difamar toda categoria de profissionais e adestradores de circo como algozes de animais”, afirma Campos.

Quem têm a mesma opinião – porém com uma perspectiva otimista – são o Ibama e as ONGs de proteção animal. Até porque, no ano passado, o Ibama não recebeu nenhuma denúncia de circos com animais em todo o país. 

“Se retroagirmos há algum tempo à Europa, no século passado, podemos lembrar que os circos apresentavam pessoas com deficiência consideradas ‘aberrações’. Felizmente, conseguimos evoluir no aspecto ético do tratamento dos seres humanos. Precisamos ter a mesma evolução no tratamento com os animais”, adiciona Roberto Cabral, do Ibama.

*Com supervisão de Isabela Moreira.

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