• Marília Marasciulo
Atualizado em
Protestos Black Lives Matter, pandemia, tensões geopolíticas e outros assuntos devem ser abordados nas provas de vestibular e do Enem (Foto: Wikimedia Commons)

Protestos Black Lives Matter, pandemia, tensões geopolíticas e outros assuntos devem ser abordados nas provas de vestibular e do Enem (Foto: Wikimedia Commons)

Todo vestibulando sabe que, além das disciplinas clássicas, as provas de ingresso em universidades exigem também conhecimentos de atualidades. Mas não é só decorar os acontecimentos mais importantes — até porque, especialmente em um ano como 2020, a lista seria longa. “Foi um ano maluco, com muitos acontecimentos, a gente tem dito que foi como dois anos dentro de um”, opina a professora de Geografia e Atualidades Thais Formagio, do cursinho pré-vestibular Hexag Medicina.

A habilidade de interpretação e compreensão é mais importante do que o conteúdo em si, que em geral aparece no texto contextualizador da questão. “Mas um conhecimento prévio mínimo do tema ajuda, pois se o aluno não acompanhou nada, ele primeiro vai precisar fazer as inferências para depois responder a pergunta”, explica o professor Alexandre Ferreira Mattioli, diretor de Educação Básica e Ensino Superior da empresa britânica Pearson Education. “Faz parte da preparação para qualquer vestibular acompanhar as notícias.”

Para ajudar o vestibulando a se organizar na hora de revisar os principais acontecimentos do ano, os professores sugerem prestar atenção primeiro ao período em que ocorreram. Provas como a do Enem em geral são finalizadas entre abril e maio (mesmo com a mudança de datas devido à pandemia), portanto notícias após aqueles meses provavelmente ficarão fora das questões. Já em vestibulares como o da Fuvest, tudo o que aconteceu até outubro e novembro pode aparecer na prova.

A dica de Formagio é olhar para os acontecimentos em blocos geográficos de assuntos em geral cobrados nos testes: Oriente Médio, Rússia, China, Estados Unidos e Brasil. A seguir, os professores selecionaram os assuntos que consideram mais relevantes dentro desses blocos para relembrar.

Oriente Médio
O ano de 2020 começou com um grande acontecimento na geopolítica do Oriente Médio: no dia 3 de janeiro, o general iraniano Qasem Soleimani foi assassinado em um ataque aéreo dos Estados Unidos em Badgá. Soleimani era considerado a segunda pessoa mais poderosa do país persa, e sua morte aumentou a tensão histórica entre os dois países, que havia diminuído após o acordo nuclear assinado em Viena em 2015. A negociação de 20 meses liderada pelo então presidente americano Barack Obama garantiu o compromisso do Irã em garantir que seu programa nuclear não tenha caráter militar.

“Aqui, é importante entender que o general representava um novo Irã, que vinha se tornando uma potência econômica, e que seu assassinato retomou também rivalidades regionais, visto que os Estados Unidos apoiam a Arábia Saudita, historicamente rival do Irã”, explica a professora do Hexag.

Ainda no Oriente Médio, em agosto de 2020 uma grande explosão em um depósito no porto de Beirute, no Líbano, deixou ao menos 220 mortos, 110 desaparecidos e 7 mil feridos. Com uma força tão grande quanto a de um terremoto de magnitude 3,3, o incidente abriu uma cratera de 43 metros de profundidade. A causa foi o armazenamento de nitratos, componentes comuns em fertilizantes e explosivos.

Explosão em Beirute, no Líbano, foi causada por nitrato de amônio (Foto: Reprodução)

Explosão em Beirute, no Líbano, foi causada por nitrato de amônio (Foto: Reprodução)

O fato teve graves consequências políticas, visto que o país, dependente de turismo e importações, teve sua principal “porta de entrada” danificada pela explosão — segundo o governo, o segundo maior elevador de grãos foi destruído, piorando a escassez de alimentos que já vinha sendo causada pela pandemia. Dias depois da explosão, dezenas de manifestantes tomaram as ruas e provocaram a renúncia de 30 ministros do governo, entre eles o do Meio Ambiente e o da Defesa, e a ministra da Informação,.

Um mês depois, em setembro, um acordo histórico foi assinado entre Israel, Bahrein e Emirados Árabes, com mediação do então presidente dos EUA, Donald Trump. Segundo os termos do que foi chamado de “Acordo de Abraão”, Israel deve frear a anexação de territórios palestinos ocupados e, em troca, os outros dois normalizam as relações com o país. “O estudante deve prestar atenção ao contexto histórico deste acordo”, observa a professora Formagio. “Israel sempre foi isolada pelo restante do Oriente Médio e há 26 anos não fazia acordos com países árabes. A assinatura representa mudanças na geopolítica local por questões econômicas, não só sociais ou culturais.”

Ela destaca ainda a necessidade de compreender a participação dos EUA: seria uma tentativa de Donald Trump de se fortalecer para as eleições que viriam meses depois, ao mediar o que alguns especialistas consideraram o “acordo do século” e uma tentativa de pacificar o conflito israelo-palestino. “A realidade é que muitos palestinos acharam que o acordo foi uma traição dos outros países”, explica Formagio.

Finalizando o bloco do Oriente Médio, os professores destacam também a situação na Síria, que continua em guerra, e na Turquia, que vem fazendo uma transição de um estado laico para um religioso e conservador, sob o governo de Recep Tayyip Erdoğan.

“De novo, o contexto é muito importante, visto que Erdoğan não está sozinho e esse movimento vem sendo observado em diversos países do mundo”, observa Formagio. Um dos episódios mais marcantes que escancararam isso foi a reconversão da antiga basílica de Santa Sofia, que funcionava como museu histórico em Istambul, em mesquita.

Rússia
Saindo do Oriente Médio, o confronto histórico entre Armênia e Azerbaijão pela região de Nagorno-Karabakh se acirrou em 2020. Os dois países brigam pelo território desde os anos 1990: a Armênia tem o apoio dos russos, enquanto o Azerbaijão tem o apoio dos turcos. Trata-se de um conflito considerado “clássico”, segundo os professores, visto que a região é um território multiétnico. Embora seja reconhecida como parte do Azerbaijão, os armênios étnicos, que são a maioria da população no local (cerca de 150 mil habitantes), não aceitam o domínio azeri.

Entenda o conflito entre Armênia e Azerbaijão em Nagorno-Karabakh. Acima: soldado azerbaijano dispara canhão na linha de frente do conflito (Foto: Azərbaycan Respublikası Müdafiə Nazirliyi / Ministry of Defense of the Republic of Azerbaijan)

Soldado azerbaijano dispara canhão na linha de frente do conflito com a Armênia em Nagorno-Karabakh (Foto: Azərbaycan Respublikası Müdafiə Nazirliyi / Ministry of Defense of the Republic of Azerbaijan)

Antes de chegar de vez à Ásia, porém, uma parada em outra potência é obrigatória: a Rússia. O ano que passou foi marcado pela reforma constitucional que derrubou a antiga Constituição do país e, com isso, zerou os mandatos dos governantes. O resultado é que, em 2024, Vladimir Putin, atual presidente do país, pode se candidatar para a reeleição. Se reeleito, Putin poderá ficar no poder até 2036 — ele ocupa cargos importantes desde 1999 e assumiu a presidência em 2012. A Rússia de Putin vem sendo marcada pela busca por hegemonia, com o envolvimento em conflitos a fim de demonstrar poder.

China e tecnologia
Entrando na Ásia, a China deve aparecer em peso nas provas dos vestibulares, em diversos aspectos. O principal, é claro, é a pandemia de Covid-19, cujos primeiros casos foram registrados em Wuhan. Há também questões de tecnologia envolvidas, com o símbolo máximo no TikTok: a rede social aparentemente inocente explodiu durante a pandemia e se tornou uma febre mundial, competindo diretamente com gigantes como Facebook, Twitter e Instagram.

Mas o que provavelmente costura todos os temas relacionados à China é a disputa crescente entre o país e os EUA. “A China é um gigante que vem crescendo demais e apresenta risco aos EUA por sua inovação tecnológica”, diz Formagio. “Cabe destacar que, no século 21, o novo petróleo são os dados”. Donald Trump alimentou a disputa chamando o Sars-CoV-2 de “vírus chinês” e acusou o TikTok e o WeChat (espécie de WhatsApp usado principalmente por chineses que vivem no exterior) de espionagem, chegando a proibir o download dos aplicativos nos EUA.

Para entender ainda mais sobre a questão dos dados no século 21, os professores recomendam aos estudantes os documentários Privacidade Hackeada e O Dilema das Redes, ambos disponíveis na Netflix.

Estados Unidos
A maior potência global deve aparecer de diferentes maneiras nas provas. Mesmo que a maioria dos exames tenha sido finalizada antes das eleições de novembro, a temática pode aparecer. Neste caso, é importante que o estudante conheça principalmente o perfil do eleitorado de Donald Trump: homens, brancos, cristãos, conservadores e de classe média.

Esse conhecimento se faz necessário para compreender, por exemplo, os protestos antirracismo que tomaram conta do país em maio, após o assassinato de George Floyd, um homem negro, por policiais brancos. É que a postura negacionista de Trump diante dos protestos foi muito criticada e questionada — possivelmente de olho nas eleições, o presidente não queria desagradar seu eleitorado. “O estudante deve sempre buscar fazer associações e pensar no que o trumpismo representa para a geopolítica mundial”, aconselha Formagio.

Estátua do traficante de escravos Edward Colston em Bristol foi derrubada durante protestos Black Lives Matter (Foto: Wikimedia Commons)

Estátua do traficante de escravos Edward Colston em Bristol foi derrubada durante protestos Black Lives Matter (Foto: Wikimedia Commons)

Ainda na temática dos protestos Black Lives Matter, a professora destaca os episódios de derrubada, depredação ou retirada de estátuas de figuras históricas, como a do traficante de escravos Edward Colston em Bristol (que foi derrubada por manifestantes), do estadista Winston Churchill em Londres (que foi pichada) e do Rei Leopoldo em Antuérpia (que foi retirada da cidade pela prefeitura). Além de saber quem eram as principais figuras, é necessário ser capaz de relacionar as temáticas de memória, símbolos e urbanismo.

Brasil e meio ambiente
Nas atualidades locais, a pauta principal deve ser o meio ambiente, em especial as queimadas na Amazônia e no Pantanal. A partir disso, diversas questões de política externa podem ser abordadas. A começar pela relação do país com a Europa, que não está boa, visto que o continente tem expressado repetidamente seu descontentamento com a maneira como o Brasil tem lidado com as questões ambientais.

Cinco perícias realizadas pelo Centro Integrado Multiagências de Coordenação Operacional (Ciman-MT) apontaram ação humana como causa da origem das queimadas na região do Pantanal (Foto: Mayke Toscano/Secom-MT - Fotos Públicas)

Cinco perícias realizadas pelo Centro Integrado Multiagências de Coordenação Operacional (Ciman-MT) apontaram ação humana como causa da origem das queimadas na região do Pantanal (Foto: Mayke Toscano/Secom-MT - Fotos Públicas)

Outros temas relevantes da política externa brasileira e que se associam com os mencionados em outros blocos são a China e os Estados Unidos. A relação com o país asiático, maior parceiro comercial do Brasil, também é desconfortável, muito porque líderes do alto escalão do governo, além do próprio presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, em diversas ocasiões fizeram declarações ofensivas sobre a China.

No início da pandemia, por exemplo, Eduardo Bolsonaro culpou a China pelo novo coronavírus e gerou uma crise diplomática. A situação tem se tornado cada vez mais grave: em entrevista à BBC News Brasil, o diplomata aposentado Roberto Abdenur, que atuou como embaixador em Pequim, avaliou que o país está “metendo os pés pelas mãos de maneira desarrazoada e contraproducente. Eduardo Bolsonaro fala como deputado, como filho do presidente e como presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. É de uma imensa irresponsabilidade, agora ameaçando causar danos graves aos interesses do Brasil com a China”.

Já o “namoro” do Brasil com os Estados Unidos de Donald Trump, que nunca trouxe de fato benefícios para o país (a maior expectativa, de obter o apoio da potência no ingresso à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), não se concretizou), chegou ao fim com a eleição do candidato do Partido Democrata, Joe Biden. Na visão de Formagio, a demora de Jair Bolsonaro em reconhecer a vitória de Biden pode trazer problemas para a consolidação de relações amigáveis com o novo líder norte-americano.

Pandemia de Covid-19
Nas questões das provas, vai ser impossível escapar da Covid-19, que deve permear questões de Biologia, Química, Física, Geografia, História e até Inglês. Entre os destaques de possíveis abordagens interdisciplinares estão as questões ambientais relacionadas à Covid-19, como a redução dos níveis de CO2 e os registros positivos durante o lockdown, a exemplo do ar mais limpo em cidades chinesas e dos córregos transparentes em Veneza.

Na geopolítica, entender a relação de oferta e demanda, a oscilação das bolsas e a relação do petróleo é crucial — com o mundo em lockdown, o preço do petróleo baixou, e houve tensão entre Arábia Saudita e Rússia em relação ao equilíbrio do preço da commodity. Outro ponto importante, e aí entra a relação também com história e, por que não, inglês, é o conhecimento sobre as agências das Nações Unidas (ONU), em especial a Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo a professora Formagio, a pandemia escancarou a necessidade de uma união global, e as agências da ONU seriam uma maneira de conquistá-la.