• Marília Marasciulo
Atualizado em
O que deve mudar na ciência dos EUA (e do mundo) sob o governo de Joe Biden (Foto: Kevin Lamarque-Pool/Getty Images)

O que deve mudar na ciência dos EUA (e do mundo) sob o governo de Joe Biden (Foto: Kevin Lamarque-Pool/Getty Images)

Foram quatro anos difíceis para a ciência nos Estados Unidos. No período em que ocupou a presidência, o Republicano Donald Trump negou a emergência climática, oficializou a saída dos EUA do Acordo de Paris, rompeu com a Organização Mundial da Saúde (OMS), dificultou os pedidos de vistos para estudantes estrangeiros e adotou uma atitude negacionista diante da pandemia de Covid-19. Mas tudo isso deverá mudar a partir de 2021 quando, em 20 de janeiro, o Democrata Joe Biden passa a assumir o cargo.

A maior expectativa é que o país retome o protagonismo científico que foi um dos principais motores para a hegemonia econômica no pós-guerra. “A ciência norte-americana realizada em universidades com financiamento estatal é uma das mais importantes do mundo”, diz o doutor em Ciência Política Augusto Neftali, professor do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). “E o governo tem grande impacto em definir quem receberá fundos e quais áreas serão priorizadas, tanto do ponto de vista de investimento quanto regulatório, por exemplo, favorecendo empresas de tecnologia verde ou fósseis.”

A prioridade imediata de Biden deve ser conter a pandemia de Covid-19, que na primeira semana de janeiro de 2021 registrou 227,6 mil novos casos da doença e 18,5 mil mortes, de acordo com o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA. Os demais focos deverão se concentrar em desfazer o legado de Trump, que levou à saída do Acordo de Paris e da OMS, assim como mudar o direcionamento da economia para as matrizes energéticas sustentáveis e inovação tecnológica.

Há também a promessa de romper com a ideologia do nacionalismo e isolacionismo, o que deve ajudar a alavancar o país na reconstrução da economia pós-Covid, atraindo talentos e investimentos. “O ambiente privado dribla um pouco as questões políticas e sociais, mas de certa forma o governo de Trump restringiu muito as regras para vistos de imigração”, analisa o empreendedor Gustavo Simões, cofundador da Nanox Tecnologia, uma empresa brasileira especializada em nanotecnologia. “A gente espera que essas regras fiquem mais flexíveis com Biden, até para atrair mais investidores, o que melhora o ambiente de intercâmbio de empreendedorismo e inovação.”

Entre cientistas, pesquisadores e empreendedores, o clima é de otimismo. Eles acreditam que Biden deve voltar a fortalecer as agências internas e trazer de volta a ciência para o centro das tomadas de decisão. “Sem sombra de dúvidas, é um passo muito importante ter de volta nos Estados Unidos um governo que reconheça a importância científica e acadêmica”, afirma Neftali.

Para entender melhor o que deve mudar, saiba quais ações relacionadas ao meio científico Joe Biden provavelmente deve adotar em seu mandato de quatro anos na Casa Branca — e que prometem refletir positivamente não só no cenário dos Estados Unidos, mas também do mundo todo.

Resposta mais agressiva 
à Covid-19

O enfrentamento mais rigoroso à pandemia foi um dos temas centrais da campanha de Biden e sua vice-presidente, Kamala Harris. Logo após a eleição, a chapa Democrata anunciou a criação de um conselho consultivo formado por especialistas em saúde pública com a missão de moldar a resposta do país à crise, que conta inclusive com a participação da brasileira Luciana Bório, médica especialista em biodefesa que atua como pesquisadora sênior de saúde global no Conselho de Relações Exteriores dos EUA.

Conter a pandemia de Covid-19 é a prioridade de Joe Biden no início de seu mandato (Foto: Drew Angerer / Equipe / Gettyimages)

Conter a pandemia de Covid-19 é a prioridade de Joe Biden no início de seu mandato (Foto: Drew Angerer / Equipe / Gettyimages)

Uma das promessas é incrementar os programas de testagem e rastreamento da doença, em conjunto com políticas públicas voltadas a prevenção e tratamento. Em resumo, o recado de Biden é que, sob seu comando, as decisões serão tomadas com base na ciência. “Lidar com a pandemia do novo coronavírus é uma das batalhas mais importantes que nosso governo enfrentará, e serei amparado pela ciência e por especialistas”, disse Biden em comunicado divulgado no dia 7 de dezembro de 2020.

Permanência na Organização Mundial da Saúde

Enquanto candidato à presidência, Joe Biden se comprometeu a reverter a decisão de Donald Trump de retirar o país da OMS — se nada for feito, os EUA, que fazem parte da constituição do órgão desde 1948, sairão em julho de 2021. Isso teria efeitos graves no orçamento da organização, visto que o país é historicamente o maior financiador da Organização Mundial da Saúde, responsável por cerca de 15% da renda da entidade. Em 2018 e 2019, a verba norte-americana destinada à OMS foi de US$ 893 milhões.

Em maio de 2020, Trump declarou sua decisão de romper relações com a organização e realocar o financiamento para outras instituições. Durante a campanha, Biden declarou que garantir a permanência do país na OMS será uma de suas primeiras ações como presidente, a fim de fortalecer a saúde global.

Em um artigo de opinião publicado no respeitado periódico The Lancet em 1º de dezembro de 2020, especialistas de diversas entidades e universidades norte-americanas sugerem o que deve estar na agenda da administração de Biden na área da saúde. Entre os tópicos, o apoio à OMS e a despolitização da organização. “Colocar a OMS no vórtex das tensões geopolíticas, como ocorreu durante a pandemia de Covid-19, é destrutivo e os EUA não devem causar ou aumentar a politização da OMS”, clamam os autores. “Estados membros, incluindo os EUA, devem se comprometer a manter a integridade científica e a neutralidade política da OMS.” Para eles, Biden e sua equipe devem pressionar por reformas na Organização Mundial da Saúde, em especial por uma governança mais inclusiva e maior participação da sociedade civil.

Retorno ao Acordo de Paris

Outro compromisso do novo governo é o retorno ao Acordo de Paris. Firmado em 2016, durante o governo de Barack Obama, junto com outros 196 países, o tratado tem como objetivo conter o aquecimento global. O acordo estabeleceu a meta de reduzir as emissões de gases do efeito estufa e assegurar que o aumento da temperatura no planeta seja menor do que 2 ºC acima dos níveis pré-industriais.

A saída dos Estados Unidos do pacto foi anunciada em 2017 e entrou em vigor no dia 4 de novembro de 2020. No mesmo dia, o então quase confirmado novo presidente disse no Twitter: “Hoje, a administração Trump deixou oficialmente o Acordo Climático de Paris. E em exatamente 77 dias, o governo Biden se reunirá a ele”.

A missão, porém, não é simples. “Um dos grandes desafios da administração Biden será implementar de fato uma agenda de incentivo a uma economia sustentável que seja capaz de ser aprovada no congresso”, aponta o professor da PUCRS.

Compromisso com a redução de emissão de carbono

Uma das propostas de Biden é que, até 2035, a produção de energia dos Estados Unidos seja livre de carbono. Outra missão é contribuir para que o país alcance a emissão de zero carbono até 2050. Para isso, o democrata pretende investir US$ 2 trilhões, o que corresponde a cerca de R$ 10,8 trilhões no câmbio atual, a fim de reduzir as emissões de carbono. O país já tinha uma política para reduzir a emissão de gases responsáveis pelo efeito estufa, adotada pelo governo de Barack Obama, e que foi revogada por Trump em 2017.

A equipe responsável pelas políticas ambientais está sendo formada. Dois nomes já estão certos: Gina McCarthy, que chefiou a Agência de Proteção Ambiental no governo Obama, será a conselheira sênior da Casa Branca sobre mudanças climáticas; e Jennifer M. Granholm, ex-governadora democrata de Michigan, responsável por ajudar a renovar a indústria automotiva do estado promovendo incentivos e investimentos à energia limpa, será a chefe do Departamento de Energia.

Depois da vitória, Biden também se comprometeu a fazer com que, até os 100 primeiros dias de seu mandato, o país seja sede de uma conferência climática com as maiores economias globais. “Faremos tudo isso cientes de que temos diante de nós uma enorme oportunidade econômica para criar empregos e prosperidade na nossa pátria e exportar produtos americanos limpos para todo o mundo”, declarou o presidente eleito.

Fim do isolacionismo 
científico 

Um dos pilares da ciência norte-americana é a colaboração internacional e a importação de mentes inovadoras. Esses dois fatores erodiram durante os quatro anos de Trump, principalmente diante da retórica nacionalista que o colocou no poder e condenava a presença de imigrandes no país. “As ações isolacionistas de Trump fizeram o protagonismo dos Estados Unidos regredir mundialmente”, avalia Simões. “Ao fechar as portas para muitos visitantes e imigrantes não europeus, ele tornou o país menos atrativo para estudantes e pesquisadores estrangeiros”.

Uma das apostas é que Joe Biden deve acabar com o isolacionismo científico adotado por Donald Trump (Foto: Joe Raedle / Equipe / Gettyimages)

Uma das apostas é que Joe Biden deve acabar com o isolacionismo científico adotado por Donald Trump (Foto: Joe Raedle / Equipe / Gettyimages)

Primeiramente, sete países islâmicos foram afetados com a proibição, imposta na primeira semana do governo Trump, em 2017, sob a justificativa de combater o terrorismo. Muitos estudantes intercambistas foram afetados pela Ordem Executiva 13769, impedidos de embarcar nos seus países de origem ou entrar nos Estados Unidos.

Um dos casos foi reportado pelo The Harvard Crimson, o jornal da Universidade Harvard: o iraniano Shahab Asoodeh cursava pós-doutorado em Engenharia Elétrica no Canadá e planejava continuar os estudos nos Estados Unidos. Mas, assim que a proibição passou a valer, foi comunicado pela imigração de que seu visto havia sido suspenso.

Com maior abertura e flexibilidade nas relações internacionais, espera-se que Biden ajude os Estados Unidos a voltarem a ser um santuário para pesquisadores que não têm condições de exercer ciência de ponta em seus países. “Em todo o mundo, as pessoas vêm para este país com otimismo implacável e determinação em relação ao futuro. Eles estudam aqui, inovam aqui, e fazem da América quem nós somos. Donald Trump não entende isso — precisamos de um presidente que entenda”, publicou Biden no Twitter, em julho.

Busca pela supremacia cibernética

Uma guerra fria vem sendo travada entre Estados Unidos e China, e ela não diz respeito a supremacia nuclear e diplomacia. Atualmente, os dois países disputam uma corrida pela hegemonia em inteligência artificial (IA). Segundo o relatório AI Index de 2019, feito pela Universidade Stanford, os chineses já publicam tantos artigos acadêmicos sobre IA por ano quanto a Europa. O impacto das publicações norte--americanas, contudo, ainda seria 50% maior.

Em dezembro de 2020, o governo chinês alegou ter atingido novo patamar na supremacia quântica, ao desenvolver um sistema capaz de calcular em minutos o que um supercomputador levaria mais de 2 bilhões de anos para conseguir. A invenção seria superior ao computador quântico do Google, anunciado em 2019, que calculou em minutos o que um supercomputador levaria “apenas” 10 mil anos.

Em fevereiro, a Casa Branca anunciou que pretendia dobrar os investimentos anuais para pesquisas em IA não militar para US$ 2 bilhões, valor considerado baixo, na análise da revista Fortune. Embora Biden não tenha tomado uma posição clara sobre o desenvolvimento de inteligência artificial, entre suas promessas de campanha está investir US$ 300 bilhões em quatro anos para pesquisa e desenvolvimento de tecnologias inovadoras, como veículos elétricos, materiais superleves, 5G e a própria IA.