• Redação Galileu
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Frase colocada na entrada de Auschwitz que, em alemão, diz

Frase na entrada de Auschwitz que diz "o trabalho liberta" em alemão (Foto: Creative Commons / DzidekLasek )

“Geralmente eu penso em seguir os outros e por um fim nisso. Mas a vingança impede que  faça isso. Eu queria e quero viver, para me vingar da morte do meu pai, da minha mãe e minha querida irmãzinha”. Essas palavras foram deixadas por Marcel Nadjari, um judeu grego que, aos 26 anos, sobreviveu ao campo de concentração nazista de Auschwitz, graças ao seu persistente desejo de vingança.

Ele era um dos 2,2 mil membros da Sonderkommando, uma unidade de judeus que eram forçados à uma tarefa infame: eles levavam outros judeus na câmara de gás para depois queimar seus corpos, extrair dentes de ouro e jogar as cinzas perto de um rio. “Se você ler sobre as coisas que nós fizemos, você vai dizer: como alguém poderia fazer isso, queimar seus colegas judeus?”, escreveu. “Foi isso que eu disse no início também, e pensei muitas vezes”.

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Na certeza de que um dia as suas próprias cinzas também seriam carregadas pelo Sonderkommando, ele preencheu 13 páginas com sua experiência no campo de concentração, guardou cuidadosamente dentro de uma garrafa térmica, e as enterrou próximas ao crematório III.

Foram 36 anos sob a terra, até que um estudante de engenharia florestal, por acidente, encontrou os manuscritos enterrados a 40 centímetros de profundidade. O tempo e a umidade do solo estragaram boa parte do material, escrito em ídiche. Quando encontrado, apenas 10% do conteúdo era legível.

Foi aí que o historiador russo Pavel Polian entrou na história. Ele estava trabalhando em uma nova versão do livro “Scrolls from the Ashes”, sobre os Sonderkommando, e pediu uma cópia dos escritos de Marcel Nadjari ao arquivo do Museu de Auschwitz. O historiador, no entanto, estava com dificuldades na restauração do documento. 

Enquanto escutava uma rádio russa, o especialista em tecnologia da informação, Alexander Nikityaev, soube a respeito do trabalho de Pavel e decidiu oferecer ajuda. Empregou a análise de imagens multiespectrais, que analisa o objeto pelo comprimento da onda magnética. Assim, quase todo o conteúdo da carta foi recuperado. No final de novembro a carta foi traduzida para o inglês.

Uma das 13 páginas deixadas por Marcel Nadjari. A direita o original e à esquerda o texto recuperado. (Foto: Reprodução / Institut für Zeitgeschichte)

Uma das 13 páginas deixadas por Marcel Nadjari. A direita o original e à esquerda o texto recuperado. (Foto: Reprodução / Institut für Zeitgeschichte)

Visão do holocausto

Apenas 110 Sonderkommando sobreviveram à Auschwitz. Desses, somente quatro deixaram registros da época, sendo o mais completo escrito pelo judeu polonês, Salmen Gradowski. Nenhum, porém, é tão visceral quanto o de Nadjari. “Nós todos sofremos coisas que a mente humana não pode imaginar”, escreveu.

“O crematório é um prédio grande com uma chaminé larga e 15 fornos. Abaixo do jardim há duas grandes salas. Uma é onde as pessoas tiram suas roupas, a outra é a câmara da morte”, relata. “Pessoas entram nuas e quando completam 3 mil pessoas dentro, a sala é trancada e o gás liberado. Após seis ou sete minutos de sofrimento, eles morrem”.

“As embalagens de gás eram sempre entregues pelo veículo da Cruz Vermelha alemã com dois homens da SS. Eles jogam o gás por aberturas e meia hora depois nosso trabalho começa. Nós arrastamos os corpos daquelas mulheres e crianças inocentes ao elevador, que os levam para o forno”. “Um ser humano acaba virando uns 640 gramas de cinzas”.

Contrariando sua própria expectativa, Nadjari sobreviveu. “Eu não estou triste que vou morrer”, escreveu. “Mas eu estou triste porque eu não vou ter a chance de me vingar como eu gostaria”. Ele estava preso em outro campo de concentração, o Mauthausen, quando a Segunda Guerra Mundial acabou.

Após a guerra, Nadjari retornou à Tessalônica, onde se casou e teve um filho. Em 1951, quando a criança tinha um ano, se mudou com a esposa, Rosa, para Nova York. Em 1957 tiveram uma filha, chamada Nelli, em homenagem �� “querida irmãzinha”. Morreu em 1971, aos 53 anos, nove anos antes das cartas serem encontradas, sem nunca tê-las mencionado.

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