• Maria Clara Vaiano* com edição de Luiza Monteiro
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Homens conversando em banco de praça, São Paulo, SP, c. 1910 (Foto: Vincenzo Pastore (Casamassima, Itália, 1865 - São Paulo, SP, 1918) Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Vincenzo Pastore)

Homens conversando em banco de praça, São Paulo, SP, c. 1910 (Foto: Vincenzo Pastore (Casamassima, Itália, 1865 - São Paulo, SP, 1918) Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Vincenzo Pastore)

No final do século 19, o Brasil sonhava com modernidade. Em 1889, um golpe militar liderado pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca resultou na proclamação da República e no fim da monarquia, destituindo o imperador Dom Pedro II. Junto com a medida vieram promessas de mudanças urbanas e o desejo de mostrar o país para o mundo.

Mas, na prática, a nação republicana que nascia ainda era marcada pelo atraso. E a modernização foi feita a qualquer custo: destruindo patrimônios históricos, culturais, arquitetônicos e excluindo parte da população — sobretudo negros, ex-escravizados e indígenas — desse processo.

Registros de um Carnaval; que ocorreu no bairro de São José, em um Recife de 1927 (Foto: : Francisco Rebello)

Registros de um Carnaval; que ocorreu no bairro de São José, em um Recife de 1927 (Foto: : Francisco Rebello)

Com ideia de jogar luz sobre os aspectos pouco falados desse período da história brasileira, o Instituto Moreira Salles (IMS) inaugurou, no último dia 13 de setembro, a exposição Moderna pelo avesso: fotografia e cidade, Brasil, 1890-1930. Fruto de dois anos de pesquisa, a mostra em São Paulo reúne 311 itens que revelam um outro lado da chamada Primeira República.

Com curadoria de Heloisa Espada e assistência de Beatriz Matuck, a seleção traz filmes silenciosos, revistas e, principalmente, fotografias apresentadas em diversos formatos, como cartões-postais, álbuns, estereoscopias e projeções em lanterna mágica. “A República que substituiu o Império se afirmava como o que era novo, não era interessante manter o passado. E aqui a gente mostra o processo de destruição”, explica Espada, que é doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

Apagando a história

Carnaval; sombra de folião, praça da Independência, Recife, PE, 1928 (Foto: Crédito: Francisco Rebello (Margão, Índia, 1890 - Recife, PE, 1965) Coleção Francisco Rebello)

Carnaval; sombra de folião, praça da Independência, Recife, PE, 1928 (Foto: Crédito: Francisco Rebello (Margão, Índia, 1890 - Recife, PE, 1965) Coleção Francisco Rebello)

O acervo de vídeos e imagens expostos no IMS faz um contraponto ao que fotos oficiais da época mostravam sobre a modernização de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Belém e Porto Alegre. Inspirados na Belle Époque — nome dado ao período entre 1871 e 1914 em que, sobretudo na Europa, noções de progresso passaram a ser atreladas a avanços na ciência e tecnologia —, os projetos políticos de reforma no país apagaram boa parte de nossa história. 

Um exemplo é a política do “bota-abaixo”, que no início do século passado redefiniu radicalmente a estrutura urbana do Rio de Janeiro, na época capital do país. No período entre 1903 e 1908, a cidade então administrada pelo prefeito Francisco Pereira Passos quis deixar para trás a pecha de lugar insalubre e passou a valorizar medidas de saneamento, demolição e civilização.

Só que, muito além de criar e alargar avenidas, o resultado foi o fim de moradias como cortiços, estalagens e velhos casarões, onde vivia a população mais pobre. E assim esses cidadãos foram obrigados a se mudar para o subúrbio ou viver nos morros.

Demolições entre as ruas do Rosário e Ouvidor, avenida Central, atual avenida Rio Branco, Rio de Janeiro, RJ, 1904 (Foto: João Martins Torres Acervo Instituto Moreira Salles)

Demolições entre as ruas do Rosário e Ouvidor, avenida Central, atual avenida Rio Branco, Rio de Janeiro, RJ, 1904 (Foto: João Martins Torres Acervo Instituto Moreira Salles)

Na mostra do IMS, o “bota-abaixo” é apresentado sob o olhar do fotógrafo João Martins Torres, que retratou a destruição e a construção do Rio de Janeiro que conhecemos. Segundo a curadora, ele fotografou o Morro do Castelo e o desaparecimento de ruelas para abrir a Avenida Central, onde na época se instalaram lugares frequentados pela classe média alta, como o teatro municipal.

A exposição também destaca o trabalho do fotógrafo franco-brasileiro Francisco du Bocage. Com sua câmera, ele acompanhou as mudanças ocorridas no Centro Histórico de Recife no início do século 20. A reforma dessa região da capital pernambucana deveria seguir padrões suíços, de modo que casarões e edifícios coloniais caíram por terra. Junto com eles, boa parte de construções arquitetônicas de estilo barroco.

Na amostra se é possível se deparar com retratos de uma Recife demolida feitos por um botânico suiço (Foto: Francisco du Bocage (Portugal, 1860 - Bezerros, PE, 1919))

Na amostra se é possível se deparar com retratos de uma Recife demolida feitos por um botânico suiço (Foto: Francisco du Bocage (Portugal, 1860 - Bezerros, PE, 1919))

Para Heloisa, outra forma de destruição também é retratada. Fotografias de quase 120 anos atrás feitas pelo botânico suiço Jacques Huber mostram uma festa tradicional de outro ângulo: o Círio de Nazaré, celebração católica anual que acontece há mais de 200 anos em Belém, durante 15 dias em outubro . “As fotos da mostra são de 1903 e 1904. A gente vê a predominância de uma população negra, o que é importante para mostrar as questões etnográficas brasileiras”, pontua a especialista.

Progresso sem arte

Em meio a tantas mudanças no cenário urbano do país, o cinema passou a fazer parte da vida dos brasileiros. Entre os registros dispostos na mostra em São Paulo estão imagens do interior do Cine Pathé, terceiro cinema fixo do Rio de Janeiro, fundado em 1907 pelo fotógrafo Marc Ferrez.

Produções cinematográficas também são exibidas. É o caso do filme Reminiscências (1909), do mineiro Aristides Junqueira, no qual ele registra sua própria família, em uma das cenas mais antigas do cinema nacional.

Expressões faciais em múltipla exposição (rosto de menina); fotografias tiradas por câmera construída pelo autor, São Paulo, SP, c. 1890 (Foto: Valério Vieira (Angra dos Reis, RJ, 1862 - São Paulo, SP, 1941))

Expressões faciais em múltipla exposição (rosto de menina); fotografias tiradas por câmera construída pelo autor, São Paulo, SP, c. 1890 (Foto: Valério Vieira (Angra dos Reis, RJ, 1862 - São Paulo, SP, 1941))

Há ainda o curta Cerâmica Horizontina (1920), de Igino Bonfioli, que mostra o cotidiano de uma fábrica. Esses materiais são apresentados no IMS em contraponto a registros de residências burguesas e retratos de estúdio da elite. É possível conhecer obras cinematográficas como Lábios sem beijos (1929), dirigido por Humberto Mauro, e Limite (1931), do diretor Mário Peixoto e estrelado por Olga Benário.

Apesar da ânsia pela modernidade, o país pecou na conservação de produções desse período. “Havia muita produção de cinema de ficção, mas poucas coisas sobreviveram. E o que sobreviveu são principalmente filmes oficiais do governo”, observa Espada. As produções apresentadas na mostra são alguns dos poucos remanescentes da época, achados por Heloisa na Cinemateca Brasileira de São Paulo.

A mostra Moderna pelo avesso: fotografia e cidade, Brasil, 1890-1930 tem entrada gratuita e está em cartaz até 26 de fevereiro de 2023, no Instituto Moreira Salles (Av. Paulista, 2424, São Paulo - SP). Saiba mais no site da exposição.

*Com edição de Luiza Monteiro.