• Oscar Nestarez
Atualizado em
 (Foto: Flickr/PROLa Tête Krançien)

(Foto: Flickr/PROLa Tête Krançien)

Tem vampiros entrando em ação
A lua brilha na escuridão
Segue o baile no meio do povo
O lobisomem ataca de novo”

O trecho acima é do samba-enredo da Tricolor Independente, escola que abriu o desfile do grupo de elite de 2018 em São Paulo. Adotando como temática os filmes de horror (e enfrentando algumas falhas técnicas que quase tornaram a apresentação um pesadelo — no mau sentido), a agremiação levou os mais famosos personagens do gênero ao Sambódromo do Anhembi. Logo no carro abre-alas, Jason, Leatherface, Pennywise e Jigsaw, entre outros, dividiram os holofotes com a imensa cabeça (e as unhas ainda maiores) de Zé do Caixão, nosso herói nacional.

Já no RJ, a Beija-Flor explorou os 200 anos da publicação da primeira versão de Frankenstein, de Mary Shelley, completados em 2018. Com o samba-enredo "Monstro é aquele que não sabe amar: os filhos abandonados da pátria que os pariu", a escola estabeleceu paralelos entre a criatura literária, que foi renegada pelo próprio criador, e a intolerância racial, religiosa, de gênero e até esportiva.

Mas não foi só no eixo Rio-SP que a ficção de horror ganhou espaço em meio à folia. Jasons, Freddies Kruegers e até algumas freiras da franquia “Invocação do Mal” foram flagrados também pelas ruas de Olinda. E em Curitiba, aconteceu a 11ª edição da Zombie Walk, que, mesmo sob forte chuva, reuniu cerca de 20 mil mortos-vivos no centro da capital paranaense.

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Mamãe, eu quero matar

A julgar por essas notícias, o flerte entre o carnaval e as histórias de horror pode parecer recente. Mas uma rápida pesquisa pela biblioteca ocidental mostra o contrário: ao menos na literatura, faz tempo que a festa inspira criadores de todos os campos. E os soturnos não ficam atrás.

Isso, claro,compreendendo o carnaval como um fenômeno de alcance vasto e origens antigas. O de Veneza, por exemplo, foi cenário para um dos mais famosos contos de Edgar Allan Poe (1809-1849): “O Barril de Amontillado” (1846). É durante o esquindô pelas fantasmagóricas alamedas da cidade que o narrador, membro da família Montresor, coloca em prática um sórdido plano de vingança. 

Poe também serviu-se do ambiente carnavalesco para compor o desfecho do conto “William Wilson”, publicado em 1839. A história, que trata de um narrador acossado pela misteriosa figura que ele acredita ser uma espécie de duplo, tem seu gran finale durante os festejos de carnaval em Roma.

Um sangrento e insólito baile de máscaras

Mas aqui mesmo, no país do carnaval, encontramos quem tenha pintado a folia com cores macabras. Ou, melhor ainda, com traços grotescos — como é o caso de João do Rio, pseudônimo do cronista, jornalista e teatrólogo carioca João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881 - 1921).

João do Rio responde pelo conto “O Bebê de Tarlatana Rosa” (1925). Nas palavras do protagonista, o narrador Heitor de Alencar, trata-se de “uma história de máscaras!” que explora o carnaval como território de manifestação daquilo que está oculto, e que, exatamente por isso, pode ser repulsivo, assustador. E acredite, caro leitor: como legítimo cronista dos excessos, João do Rio trabalha essas sensações de forma memorável. 

Já no velho mundo da Belle Époque, encontramos outro especialista nos horrores ocultos pelas máscaras — e desvelados pelo carnaval: o francês Jean Lorrain (1855 - 1906).

Admirado pelo próprio João do Rio, Lorrain foi a epítome da figura maldita de sua época. Circulava tanto pelos submundos de morfinômanos, bebedores de éter e degenerados, quanto pelas esferas da alta literatura; e o carnaval, como instância de expressão (geralmente extremada), sempre foi figura central de seus contos. Para conhecê-los, recomendamos a coletânea A Vingança do Mascarado, publicada aqui pela editora Antiqua.

Acadêmicos do horror cósmico

Mais próximos do nosso tempo, também encontramos autores que se serviram da farra dionisíaca para assustar. Um exemplo é Thomas Ligotti, o recluso escritor estadunidense que é objeto de culto entre alguns iniciados no horror.

Publicada em 1990, sua novela The Last Feast of Harlequin (“O Último Festim de Arlequim”, ainda não editada por aqui) apresenta um antropólogo que estuda a figura do palhaço como fenômeno cultural. A pesquisa o leva à cidade de Mirocaw, onde um estranho festejo ocorre anualmente.

A partir daí, tem início a descida do narrador rumo a subterrâneos desconhecidos e aterradores. Ondas de suicídio, personagens bizarros e monstruosidades à espreita povoam a narrativa, de evidentes contornos lovecraftianos — Ligotti, inclusive, dedica-a a H.P. Lovecraft. E a conclusão se dá em um verdadeiro desfile de horrores cósmicos.  

Sai o boneco de Olinda, entra o vodu

Por fim, um registro que escapa da ficção , mas que nem por isso deixa de assustar. Trata-se de Kanaval - Vodou, Politics and Revolution on the Streets of Haiti (“Kanaval - Vodu, Política e Revolução nas ruas do Haiti”, ainda não editado aqui). Publicado em 2010, o livro traz fotos e relatos orais de festejos na ilha caribenha documentados pela artista britânica Leah Gordon.

Mas qual o motivo de sua inclusão aqui? Ora, basta uma rápida espiada nas páginas da obra — “perturbadoras” talvez seja um adjetivo apropriado. Enquanto o carnaval espalha cores vibrantes pelo resto do Caribe (e do mundo), no Haiti, onde praticamente não há turistas, a ocasião serve para a população lembrar o passado atroz de escravidão e tirania, e para sublimar o presente de extrema pobreza.

Tendo o vodu como eixo, Gordon nos apresenta imagens e relatos assombrosos, sem dúvida, mas invariavelmente imaginativos. Pois o carnaval é, acima de tudo, território de liberdade para o exercício da imaginação.

Agora, quão solar e feliz este exercício pode ser, nós sabemos faz tempo. Já estava na hora de explorar o lado sombrio da folia.

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