• Oscar Nestarez*
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Robô formula suas próprias histórias de terror (Foto: Divulgação)

Robô formula suas próprias histórias de terror (Foto: Divulgação)

Para metade do globo terrestre, o ano de 1816 foi bem atípico. Tanto a Europa quanto a América do Norte enfrentaram anomalias climáticas que destruíram plantações, elevaram preços de alimentos à estratosfera e, em consequência, mataram milhares de pessoas de fome. As temperaturas permaneceram melancolicamente baixas; e o Sol, encoberto pelas cinzas de uma atividade vulcânica sem precedentes, não foi capaz de reacender os espíritos apagados pelo inverno.

Conhecido como “o ano sem verão” e “o ano da pobreza”, 1816 entrou para a história também por conta de outro fato. Pois foi durante uma de suas intermináveis noites que certa escritora, então com apenas 19 anos, esboçou o rascunho de uma das mais importantes obras de horror de todos os tempos.

Acompanhada por seu futuro marido — o poeta Percy Shelley —, a inglesa Mary Shelley estava hospedada na mansão que Lord Byron havia alugado à frente do lago Léman, na Suíça. Completava o grupo o médico de Byron, John Polidori (também escritor). Sem poder sair, os quatro puseram-se a contar histórias assombradas uns aos outros e, após os relatos se esgotarem, passaram a escrevê-los. Nasce aí Frankenstein, ou o Prometeu Moderno.

Dois séculos depois, ergue-se uma nova criatura

Estivesse viva hoje, Mary Shelley provavelmente classificaria 2017 também como atípico. Não só por conta dos avanços (ou retrocessos, dependendo do ponto de vista) pelos quais o mundo passou nestes mais de dois séculos; mas pelo fato de que este é o ano em que outra criatura, inegavelmente assombrosa, ganhou vida: um robô capaz de escrever histórias de horror.

Na verdade, “robô” é força de expressão. Não se trata de uma representação mecatrônica do corpo humano, com voz metalizada e capaz de escrever enquanto degusta uma xícara de óleo quente. Não, é algo bem mais abstrato: um sistema de inteligência artificial que compõe, a partir de um imenso banco de dados, suas próprias histórias assustadoras.

Batizado justamente de Shelley, o algoritmo ganhou vida recentemente, durante o último Halloween. E o cenário também foi um laboratório, ainda que muito diferente daquele de Victor Frankenstein: o Media Lab do Massachussets Institute of Technology (MIT).

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No lugar da corrente elétrica, milhares de histórias do Reddit

Pinar Yanardag, Manuel Cebrian e Iyad Rahwan são os cientistas por trás de Shelley. E os três adotaram um método diferente da corrente de energia elétrica para insuflar vida no sistema: alimentaram-no com 140 mil contos de horror retirados do espaço Nosleep da plataforma Reddit, onde usuários compartilham suas próprias histórias perturbadoras. Assim, por meio da computação cognitiva, Shelley passou a compor seus próprios relatos (supostamente) assustadores.

Mas a inovação não para por aí: as histórias são colaborativas. Utilizando o Twitter, o sistema vai atualizando seu perfil com novos princípios de textos, e os usuários são convidados a participar por meio da hashtag #yourturn (sua vez). A cada final de dia, Shelley dá continuidade às cem histórias mais populares.

E os relatos realmente assustam?

Bem, isto cabe a você, valente leitor(a), decidir. Eis alguns exemplos do trabalho de Shelley (estes, sem a participação de “humanos”):

+ "Meu corpo foi empurrado para dentro do quarto por alguém que estava em algum lugar do corredor. Olhei ao redor somente uma vez e lá estavam eles, no canto do cômodo, enquanto olhavam para mim — sem se mover."

+ "Eu estava do outro lado da rua quando um fantasma surgiu atrás de mim. Estava tão assustado que não pude me mexer. Não pude me mexer. Não era capaz sequer de movimentar os olhos, e comecei a gritar."

+ "A tela piscou e tudo ficou escuro. Fechei meus olhos e me sentei. Então a escuridão diminuiu, e a página na internet era a mesma de antes. Havia um link, no qual eu cliquei. Após alguns minutos, tudo escureceu novamente. Acordei nesta manhã, gritando e chorando."

+ "Eu podia sentir algo me observando. Podia ver a sombra ali com uma expressão de ódio no rosto. Eu estava muito além de assustado, então não tirei os olhos da coisa até me virar e olhar, no espelho, para o que estava atrás de mim!"

Certo, você pode até achar que são microcontos algo insossos, incapazes de fazer cócega nos pés de um Frankenstein. Mas vale lembrar que o método utilizado é o de Deep Learning (aprendizado profundo), ou seja, Shelley tende a melhorar conforme recebe novos inputs. À medida que os usuários vão participando das composições, o sistema vai aprendendo mais e mais, tornando-se capaz de produzir textos cada vez mais complexos. O quanto ele ainda pode evoluir é incerto.

Em todo caso, a trinca de cientistas está otimista. Inardag, Cebrian e Rahwan acreditam que, com a evolução de Shelley, em breve será possível criar a primeira antologia de horror colaborativa entre humanos e máquina. Já pensou? Será praticamente impossível discernir quem escreveu o quê naquela história que eventualmente roubar seu sono à noite.

A nossa imaginação ainda é mais potente

Com Shelley, a inteligência artificial chega a mais uma modalidade artística. Após invadirem a pintura e a composição musical, os algoritmos agora desembarcam no campo da literatura. Claro que podemos questionar a possibilidade de o sistema criar um estilo próprio para suas histórias —assumindo, como estilo, a marca pessoal de um autor ou de uma autora; a forma poética como ele ou ela traduzem, em palavras, suas ideias, suas fantasias e suas visões de mundo.

Ainda que a Shelley consiga forjar esse estilo por meio da combinação de milhares de textos diferentes, acreditamos que a marca da autoria permanecerá singularmente humana. A marca, e principalmente a imaginação. A nosso ver, este ainda é o equipamento mais assombroso, potente e ilimitado que existe e provavelmente continuará sendo. Pois um algoritmo pode aprender a reproduzir fórmulas, a misturá-las, a sofisticá-las para causar efeitos mais intensos nos leitores. Mas (ainda) não pode aprender a imaginar como esses leitores.

Por isso, temos certeza de que, caso aparecesse por aqui neste ano atípico, a outra Shelley, a Mary, respiraria aliviada. Pois perceberia que, ao menos no riquíssimo território do imaginário, ela e tantos outros autores continuam soberanos.

*Oscar Nestarez é ficcionista de horror e mestre em literatura e crítica literária. Publicou Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura (2013, Livrus) e as antologias Sexorcista e outros relatos insólitos (2014, Livrus) e Horror Adentro (2016, Kazuá).

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