• Jailson Soares de Souza Filho e Edenise Garcia*
  • TNC Brasil
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O uso de blockchain permite otimizar e tornar os processos da agricultura mais transparentes (Foto: Dan Meyers/Unsplash)

O uso de blockchain permite otimizar e tornar os processos da agricultura mais transparentes (Foto: Dan Meyers/Unsplash)

A Organização das Nações Unidas (ONU) estima um aumento de 25% da população mundial até 2050. Isso significa que passaremos dos atuais 7,8 bilhões para aproximadamente 10 bilhões em 30 anos. O aumento impactará ainda mais a pressão sobre os recursos naturais para geração de energia, água, alimentos e também poderá colocar em risco a existência de diversas espécies de animais e vegetais, junto com seus serviços ecossistêmicos, como o sequestro de carbono pelas plantas e árvores, a estabilização de encostas, a retenção de sedimentos, entre outros.

A preocupação com os impactos e riscos globais é cada vez maior. O relatório global de riscos publicado pelo Fórum Mundial Econômico (WEF, na sigla em inglês) informa que as cinco maiores ameaças estão diretamente associadas à perda dos recursos naturais, mais especificamente a: 1) condições climáticas extremas, 2) falha nas ações de mitigação climática, 3) desastres naturais, 4) perda de biodiversidade e 5) desastres ambientais de origem humana.

No Brasil, o aumento das queimadas na Amazônia e no Pantanal provocou uma reação internacional generalizada para que empresas reavaliem seus sistemas de monitoramento e rastreabilidade visando atender exigências e metas ambientais. Um estudo publicado em julho na revista Science aponta que, nos biomas Amazônia e Cerrado, 20% das exportações de soja e pelo menos 17% das exportações de carne bovina para a União Europeia podem estar relacionadas ao desmatamento ilegal (durante o processo de produção).

Nesse contexto, a Organização para Alimentos e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) aponta que o mundo precisará de 60% mais alimentos e 40% mais água em 2050, se continuarmos no ritmo de crescimento atual. O cenário requer uma mudança para um novo paradigma de produção: maior produtividade em áreas já abertas; mercados mais exigentes por produtos não vinculados ao desmatamento, qualidade, confiabilidade e transparência na origem dos produtos.

A busca por meios sustentáveis para nutrir a população mundial é um dos principais desafios do século 21, e a tecnologia tem evoluído e está sendo aplicada ano após ano para superar esses desafios. No campo, recuros tecnológicos apresentam resultados impressionantes, elevando o setor agropecuário brasileiro a seus patamares mais altos. No entanto, apesar dos avanços em maquinários mais modernos, melhoramento genético, biotecnologia, aplicativos celulares, e outros, ainda existem lacunas.

Uma delas está relacionada à rastreabilidade de produtos agropecuários, que permite identificar a trajetória destes ao longo de suas cadeias de produção. O conhecimento da origem e trajetória de um produto até chegar ao consumidor final é fundamental para detectar, por exemplo, madeira ou carne provenientes de áreas de desmatamento ilegal, confirmar a procedência de produtos com selo orgânico, averiguar as condições sanitárias na produção de itens de alimentação, entre outras possibilidades. Tais lacunas podem ser preenchidas por meio da utilização de novas tecnologias, como blockchain. Mas, afinal, o que é e como ela funciona?

O termo blockchain, ou cadeia de blocos em português, surgiu em 2008 no artigo acadêmico Bitcoin: um sistema financeiro eletrônico peer-to-peer. Nesse texto, blockchain é definido como uma rede que registra todas as informações de envio e recebimento de dados. Dessa forma, cria-se um histórico de transações que são criptografadas e auditáveis, tornando as transações mais seguras e confiáveis. De modo geral, funciona da seguinte forma: inicialmente, são criados blocos contendo informações de transações financeiras; cada bloco possui identificadores, uma espécie de impressão digital chamada de hash.

Hashes são cadeias de caracteres criadas por meio de métodos matemáticos para criptografar informações. Portanto, a cada nova transação, um novo bloco é gerado contendo dois hashes: um referente ao bloco atual e outro referente ao bloco anterior. Assim, os blocos passam a formar uma cadeia, conforme figura abaixo. Com os blocos conectados, ao modificar alguma informação em determinado bloco, o hash do mesmo muda, sinalizando para todos os demais que foi feita uma alteração.

Exemplo de encadeamento de bloco que ocorre na tecnologia blockchain (Foto: TNC Brasil)

Exemplo de encadeamento de bloco que ocorre na tecnologia blockchain (Foto: TNC Brasil)

Outra característica da rede blockchain são os chamados “nós”, que nada mais são do que computadores responsáveis por executar determinadas funções. Existem “nós” que geram ou escrevem em blocos; e “nós” que verificam se um bloco é válido. Todos trabalhando em conjunto para gerar e validar informações.

A tecnologia também pode ser utilizada no âmbito da rastreabilidade de produtos do campo, por exemplo: a carne bovina. Do imóvel rural à mesa do consumidor final, a carne bovina passa por diferentes etapas de produção. No campo, os animais podem trafegar por diferentes estabelecimentos até serem vendidos para os frigoríficos, onde são abatidos e processados.

Isso acontece porque existem fazendas com diferentes sistemas de produção, tais como: sistema de cria (quando o bezerro ainda é amamentado pela mãe), sistema de recria (após o desmame, por volta dos 7 meses de idade) e sistema de engorda (quando o animal tem cerca de 3 anos de idade e alcança peso suficiente para ser vendido ao frigorífico). Os três sistemas de produção podem ser trabalhados em uma única fazenda ou em fazendas diferentes que vendem e revendem os animais entre si. Logo, quanto maior o número de fazendas por onde o animal passar, mais difícil é rastrear a sua origem.

O blockchain também pode ser utilizado para rastrear produtos do campo, como a carne bovina (Foto: Sean McGee/Unsplash)

O blockchain também pode ser utilizado para rastrear produtos do campo, como a carne bovina (Foto: Sean McGee/Unsplash)

Contudo, com o uso do blockchain, as transações de compras e vendas de animais podem ser registradas e controladas por meio de softwares específicos executados em celulares, tablets ou computadores. A cada nova operação de compra e venda, o número de animais transacionados e as informações das fazendas de origem e de destino são gravadas, validadas e compartilhadas com todos os participantes da rede blockchain. Assim, qualquer pessoa com conexão à rede poderá checar a origem do seu produto, desde que com autorização de acesso ao sistema, e com respeito à lei de proteção de dados.

No Brasil, frigoríficos e grandes empresas produtoras e comercializadoras de grãos já estão usando ou considerando o uso da tecnologia para monitorar os seus produtos. A JBS, por exemplo, lançou em setembro a Plataforma Verde, onde promete cruzar informações de seus fornecedores com dados de trânsito animal. Esse cruzamento permitirá desmitificar o complexo percurso que os animais fazem por diferentes fazendas durante o ciclo de vida, permitindo a análise socioambiental de todas as fazendas fornecedoras da empresa.

Archer Daniels Midland (ADM), Cargill, Bunge, COFCO International e Louis Dreyfus Company (LDC) uniram forças e lançaram a iniciativa Covantis, cujo objetivo é modernizar as operações globais de comércio agrícola por meio do uso de blockchain, inteligência artificial e outras soluções.

Diante da necessidade cada vez maior por armazenamento, transmissão e processamento, essa nova tecnologia está mudando radicalmente a forma de interação das empresas com os seus consumidores em vários países. O relatório do WEF em 2018 já apontava oito formas de como blockchain pode ser utilizado, inclusive para preservar o meio ambiente. Uma das iniciativas citadas é a plataforma de gerenciamento de crédito de carbono, sendo implementada na China em parceria com a IBM e garantindo monitoramento, transparência, credibilidade e possibilidade de auditoria. 

A Índia tem apostado na tecnologia blockchain para dar mais segurança e confiança aos produtos da sua cadeia de suprimentos por meio da comprovação do cumprimento de regras sanitárias da agência reguladora do país. Estados Unidos e Irlanda já estão experimentando rastrear as transações de animais, principalmente bovinos, para obter certificações ambientais.

Os benefícios provenientes do uso da tecnologia blockchain são muitos e provam o seu potencial de aplicação em diferentes tipos de negócio. A tecnologia proporciona maior segurança das informações nas transações prevenindo fraudes, oferece mais transparência nas negociações, otimiza processos administrativos, além de assegurar melhor experiência na compra de produtos.

Na área do meio ambiente, será possível identificar produtos relacionados a irregularidades ambientais e/ou sanitárias e, a partir disso, preencher lacunas para alcançar uma produção mais sustentável. Também poderão ser implementados novos modelos de negócio para pagamento por serviços ambientais, como o sequestro de carbono. Em casos de desastres ambientais — como a ocorrência de vulcões, terremotos ou grandes incêndios florestais — o blockchain também poderá ser utilizado para agilizar o gerenciamento de recursos humanitários para uma resposta rápida.

Estamos vivenciando a gênese de uma nova forma de tratamento da informação, onde as aplicações aqui citadas são apenas uma pequena porção do potencial de infiltração desta tecnologia, cujo uso poderá mudar totalmente o nosso modo de nos relacionar com o mundo.

*Edenise Garcia é diretora de ciências e Jailson Soares de Souza Filho é especialista em geoprocessamento, ambos na The Nature Conservancy (TNC) Brasil. Saiba mais em www.tnc.org.br/